Letícia Mariana: Crônica ‘A menina atípica e o hiperfoco: e agora?
Mais um dia comum. Acordo cedo, escovo os dentes, coloco um pó compacto no rosto seguido de um batom. Sim, seria apenas mais um dia. Busco uma roupa fora de moda que mais parece a da minha avó e corro para tomar um pingado e encher minha mente de cafeína. Pingado é como chamam o café com leite, acho engraçado. É apenas uma manhã monótona, isso se eu não fosse uma menina com espectro autista.
Estou medicada e com alta dose de serotonina. Minha amiga do colégio diz que tenho ‘cara de felicidade’, mas já fui muito melancólica. Parece que estou numa época de ouro, mas mais do que isso: estou hiperfocada. O hiperfoco no autismo poderia ser traduzido como um interesse obsessivo, tipo aquele em dinossauros que muitas crianças autistas têm – não é o meu caso. Meu interesse extraordinário é estudar.
Oras! Isso está me deixando absurdamente chata. Nunca mais escrevi crônicas, contos ou poemas, só escrevo temas de redação, pois o Enem está próximo. Algo dentro de mim sabia que este hiperfoco bateria à porta, então deixei vários livros prontos e alguns adiantados ano passado, assim teria tempo para o último ano do Ensino Médio.
Sempre fui a nerd da classe. Infelizmente, por culpa das circunstâncias da vida, me atrasei nos estudos. Acreditei que ficaria num supletivo qualquer e teria pouca base, mas encontrei um colégio com ensino de alta qualidade, público e que requer bastante disciplina. Fiz amizades e virei, novamente, a nerd da escola.
Numa tarde que seria normal, ouço gargalhadas da minha nova amiga. Ela tem dezoito anos e tudo pra ela é festa! Quando pergunto o que houve, a resposta vem depressa:
– Você precisa ver o seu rosto! – diz a menina. – Está com os olhos vidrados neste livro gigante, muito nerd!
Ela é muito amigável, então levei na brincadeira e aceitei o elogio. Mas o meu vício em estudos está me preocupando.
Não consigo mais assistir às novelas, nada me parece interessante. Tirei os fins de semana para namorar e descansar, ainda assim anseio pela segunda. Nunca gostei de Matemática, mas me animo na hora de estudá-la. Física nunca foi o meu forte, mas adoro quando há um assunto novo para mergulhar e aprender. O que está havendo?
Quanto mais sou elogiada, mais vontade eu tenho de tirar boas notas. Se tiro uma nota baixa – o que é raro – estudo o triplo para gabaritar na próxima.
Até o meu wallpaper do celular é sobre estudos. Gosto de acordar e lembrar que o motivo da minha existência é estudar. Falo para a bibliotecária que estava com saudades da biblioteca, estudo como a minha mãe estudava antigamente, só assisto a videoaulas em último caso.
– Você é muito inteligente! – diz uma colega da escola.
– Ela é a nossa aluna escritora! – diz a professora.
– Nosso orgulho! – afirma outra mestra.
– Quando vai fazer prova da minha matéria? – pergunta um professor.
– Com certeza você passa no provão! – disse a fada em forma de professora, muito animada e orgulhosa.
Esses elogios me animam de tal forma que meu vício apenas aumenta. Era para ser um dia comum, mas é um dia de hiperfoco. É um dia de uma jovem autista que não sofre quando a semana inicia, apenas quer devorar mais e mais livros didáticos. É um dia lindo de uma jovem estranha.
Letícia Mariana
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