CINEMA & PSICANÁLISE
Bruna Rosalem e Marcus Hemerly
‘Parasita: Entre realidades visíveis e invisíveis.
Ser, não-ser e o nada’
“Não nos esqueçamos que as causas das ações humanas costumam ser
inumeravelmente mais complexas e diversas do que depois sempre as
explicamos, e raramente se delineiam de maneira definida.”
Fiódor M. Dostoiévski
Quanto se pensa em cinema asiático, inicialmente, a tendência precípua é lembrar das produções japonesas mais populares no ocidente. Evidentemente, não se afasta o mérito da festejada obra de Akira Kurosawa, a título de exemplo, responsável por paralelizar o sucesso comercial a criações de viés extremamente artístico, desde situações contemporâneas até adaptações shakespearianas transpostas ao Japão feudal. Impossível não citar sua versão para ‘Rei Lear’ (Ran, 1985) e ‘Macbeth’ (Trono Manchado de Sangue, 1957), as quais retratam os mais densos e complexos dramas humanos. Indubitavelmente, seu astro recorrente, o expressivo Toshiro Mifune, teria o status de estrela hollywoodiana.
Kurosawa ainda assentaria seu nome no novo mundo a partir do seu trabalho mais conhecido, ‘Os Sete Samurais’, (1954) – alguns referem como sua obra-prima – que inspiraria outro clássico dos westerns estadunidenses, ‘Sete homens e um destino’, (1960), popularizando-se com um elenco estelar, com nomes como Yul Brynner, Charles Bronson e Steve McQueen. No entanto, a vertente da sétima arte em testilha não é lembrada tão somente pela ilha japonesa.
O cinema chinês já era extremamente popular quando de sua roupagem muda nos primórdios da imagem em movimento. Imperioso lembrar, o cinema falado surge em 1927 com o filme ‘O cantor de jazz’. Seja a partir de histórias mais sofisticadas em seus contornos teatrais e existencialistas, ou mesmo, derivando as feições de terror voltadas ao sobrenatural das lendas nipônicas e ao body horror, ainda nos anos 50, o tom flagrantemente experimental perpassa a criação asiática desde seus primórdios.
Nas últimas duas décadas, países como Tailândia e Coreia, de modo relevante, têm inovado com realizações que flertam com o horror mais gráfico de violência extreme, que descendem do cinema exploitation dos anos 70 e 80. Produções policiais consagradas que foram elevados ao título de clássicos modernos, como a festejada trilogia ‘Infernal Affairs’ que serviu de inspiração ao filme. ‘Os Infiltrados’, de Martin Scorsese; cita-se ainda, o intenso e visceral filme de serial killer ‘Eu vi o diabo’ de 2010.
No plano internacional, assim como o cinema produzido na Espanha e Argentina, os roteiros altamente inventivos e pouco ortodoxos daquele continente conquistam o gosto de novas audiências. No início do novo milênio, o mundo encantado por toda a poesia do filme ‘O tigre e o dragão’, do tailandês Ang Lee, que já havia alcançado notoriedade desde os anos 90, inclusive adaptando brilhantemente a obra de Jane Austen, com o sucesso de crítica ‘Razão e Sensibilidade’, (1995).
Traçado esse pequeno parâmetro, alcançamos a grande surpresa do Oscar de 2020, o longa ‘Parasita’. A despeito da merecida expectativa em torno do drama cômico sul coreano, a partir do imediato sucesso nos festivais, o filme literalmente ‘roubou a cena’, arrebatando quatro estatuetas em premiações chave da cerimônia, tais como roteiro original, direção e entrou para a história como a primeira obra fílmica não falada em língua inglesa a vencer como Melhor Filme.
No roteiro de Bong Joon Ho, que também dirige a trama, a família de Ki-Taek, subempregada e, posteriormente, desempregada, vive em condições precárias num porão sujo de Seul. Quando o filho adolescente da família começa a ministrar aulas de inglês a uma moça de família rica, os Park, a partir de meios dúbios, aos poucos, os Kim se infiltram no staff da família privilegiada. Valendo-se das mais engenhosas conspirações, gradativamente, vão tomando o lugar dos empregados antigos, e, ao mesmo tempo, se imiscuem de forma indissociável à rotina de seus empregadores.
Aliado a inúmeros questionamentos de ordem sociológica e política subjacentes às diferenciações gritantes de classe econômica, a película suscita situações pouco usuais gerando respostas ainda menos convencionais. As relações grupais que ali se desenham são complexas e um tanto duvidosas. Deparamo-nos, aos poucos, com uma família passível de cometer atos ilegais tentando fugir da extrema pobreza que gera ansiedade com vistas a um futuro incerto e, possivelmente, desesperador.
Na história americana, vemos inúmeros relatos de pessoas que coabitam casas de maneira parasitária, ou seja, se formos tomar o título do filme, parasita, segundo a definição biológica: organismo que vive dentro de outro, usufruindo de moradia e alimentação de forma danosa ao hospedeiro. Pessoas que vivem atrás de portas, paredes, entradas escondidas ou em uma espécie de alojamento subterrâneo como se fosse duas casas em uma. A família ‘original’ que reside no lugar desconhece a existência de outras pessoas. Estas últimas buscam alimento quando os moradores estão dormindo ou ausentes. Assim passam a viver por algum tempo desta maneira, parasitando o outro, sugando seus recursos e tirando proveito dos pertences alheios. A produção ‘A espreita do mal’, (2019), retrata bem este estilo de vida.
O termo para esta prática é definido por phrogging, palavra inglesa derivada de frog, sapo em português. Isto é, viver ‘pulando’ de imóvel em imóvel. Há dois motivos para isso: a busca por uma vivência fora dos padrões normais, observando sorrateiramente a vida alheia, seus costumes e intimidade. E o outro motivo é a necessidade de hospedagem e alimento. Muitos jovens americanos são considerados phroggers. Em 2013, estudantes de uma universidade de Ohio descobriram um morador habitando no porão da escola. No Japão, em 2008, uma família descobriu que uma mulher estava morando no porão de sua casa.
Em ‘Parasita’ esta situação nos leva a reflexões que vão muito mais além da questão da falta de recursos para viver minimamente bem. O ponto excruciante que a família Kim demonstra ao longo da trama parece ser a insuportabilidade de estar na miséria sabendo que existe diante de seus olhos um fantástico mundo de fartura, conforto e ostentação logo adiante. Um admirável mundo novo diametralmente oposto à sua existência neste universo. E este fato é inconcebível.
No contemporâneo livro do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, ‘Sociedade do Cansaço’, discute questões como a corrida pela alta performance, a realização concomitante de várias atividades em um curto período de tempo, a dificuldade de contemplação, afinal é preciso agir imediatamente de maneira performática e sempre eficaz em diversos ramos seja trabalho, esporte, arte, mercado financeiro, acadêmico, onde não haveria espaço para reflexões, apenas positividade e produção a qualquer custo.
Byung-Chul Han retrata uma sociedade cansada deste ritmo, porém longe de pensar outras possibilidades para isso, afinal o que importa é o acúmulo e não mais a experiência. Pessoas se tornam carrascas de si mesmas, incorporando cobranças incessantes, um ‘ideial de eu’ inalcançável, seguindo a premissa do ‘eu consigo’, ‘yes, we can’. E assim qualquer conquista é possível. Basta querer. Temos então uma sociedade depressiva, transtornada, constantemente inconformada, insuficiente, hiperativa e doente.
Neste meandro, podemos traçar que mesmo sendo evidente que os Kim vivem em condições extremamente precárias, a realidade escancara-se na impossibilidade de possuir o que é do outro e viver nos mesmos moldes. Ou seja, na sociedade performática a qualquer custo, muitas vezes sem escrúpulos de Byung-Chul Han, a saída para a família Kim é infiltrar-se, incorporando os Park quase que por osmose, sem impor limites, condutas e regras. É manipulando, mentindo, trapaceando e usurpando que os Kim poderiam viver aquele sonho. Não importam os meios, mas sim os fins. Ou seja, ‘é porque quero, que conquisto’. Simples assim.
No entanto, o plano macabro escorre por água abaixo. O que presenciamos ao final, é o filho imerso em seus delírios agora comprando a casa e obtendo ‘o que é de dele por direito’. Um recurso defensivo para lidar com a situação caótica que se configurou e sua cruel realidade, difícil de ingerir, já que é privado aos Kim herdar, comprar ou possuir qualquer fragmento da vida dos Park. Aquela vida luxuosa e vencedora aos moldes da sociedade do sucesso, da produtividade e da alta performance não lhe pertence. E jamais pertencerá. Seu delírio é refúgio.
É notório que existem verdades e versões, para Nietzsche, “a verdade e a mentira são construções que decorrem da vida no rebanho e da linguagem que lhe corresponde”. Nesse sentido, a busca pelo que se deduz de direito, muitas vezes, amolda um caleidoscópio de indistinção entre a figura do indivíduo e do rebanho (coletividade). Não raro, sem amarras ortodoxas do julgamento, fazendo com que o conceito de justiça social, que é dinâmico, a depender do período histórico, seja buscado sem qualquer pudor, e em ‘Parasita’ isso é gritante. Em meio aos percalços dos Kim e dos Park, a pergunta que assoma poderia ser: o quanto a invisibilidade de uns é motivação/fundamentação para arruinar o outro, reduzi-lo a nada? Afinal, para os Kim, ao se amalgamar a casa, os Park poderiam nunca ter existido.
Realmente, a linguagem cinematográfica nos instiga a tamanha provocação.
Bruna Rosalem e Marcus Hemerly
Bruna Rosalem
Marcus Hemerly
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Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.