O questionamento dos ganhos da independência de Angola na narrativa ‘Noites de Vigília’, de Boaventura Cardoso
Noites de Vigília é, felizmente, a obra que, até nesta data, mais me cria prazer de sobre ela abordar. Sinto-me condenado a fazê-lo. Tem sido prova, por me despertar em relação às várias situações do país, do adágio segundo o qual “quem lê um livro não é a mesma pessoa”. Cardoso transformou minha forma de ver Angola pela brilhante realidade ficcionada do imaginário que cria na sua obra. Desta vez, a condenação da minha análise estará voltada nas marcas que demonstram uma INDEPENDÊNCIA FALHADA, a começar a análise nos paratextos que, com todo conjunto textual, justificam o título da obra.
Considero, em relação à literatura, mais especificamente obras literárias, que nela tudo merece atenção, inclusive um simples risco que possa aparecer na capa. E é exatamente na capa da obra Noites de Vigília que começaremos a nossa análise, como sinônimo de respeito, pedir licença antes de entrar (no texto).
“A etmologia da palavra «paratexto» remete-nos para aquilo que acompanha o texto (para = junto a); ou seja, assinala a direção, intenção e objectivo de atingir um destinatário: o texto” (Matos, 2012).
O paratexto é, então, todo elemento que vai aparecer antes do próprio texto da narrativa. Assim, a capa, a lombada e a contracapa são locais, por excelência, onde se encontram os paratextos, aqui, vamos nos focar na capa.
Três cores, essencialmente, se destacam na capa de “Noites de Vigília”: vermelho, amarelo e preto. Não é mera coincidência que isso represente a bandeira de Angola ou, se quisermos, como nos confundem, a bandeira do MPLA, o que implica que, com isso, o autor nos situa, como espaço, o país onde decorreu todo o evento da narrativa e sobre o que narra, bem como ajuda a entender a razão de eu ter delimitado, como o nome “Angola”, no título que ofereci a esta análise. Além disso, o paratexto icónico (imagem), exibido na capa, é de três indivíduos, representando o povo, com as mãos ao ar e pedra, formando o punho, representando uma reivindicação. Aliás, o próprio título da obra é convidativo. “Noite”, indicando trevas ou escuridão e “Vigília” indicando insónia, ou seja, privação do sono durante a noite. Quão é bom e suave dormir quando há sossego! quando a noite chega! Por que não pode o povo dormir depois de alcançar a independência? Significa que, no meu entender, o autor nos chama a despertar, a questionar, a reivindicar o que costumam, em vários corredores, a chamar de independência. Isso é confirmado, agora entrando no texto, nas falas das personagens e do próprio narrador.
“Quinito olhava vagarosamente para as mercadorias expostas, latas de leite em pó, de conservas, de refrigerantes e cerveja, garrafas de vinho, de uísque, detergentes de várias marcas, comparava os preços e concluía rapidamente que o dinheiro que tinha era um nada que não dava para nonadinha” (Cardoso, 2013).
O parágrafo acima perde lógica se não explicarmos que Quinito, na narrativa, era um antigo combatente, mutilado por causa disso, que lutou para a libertação e independência de Angola, que derramou sangue e que, aliás, lutou no lado do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola), actualmente, o governo no poder. Quinito não conseguia comprar nem leite em pó, mesmo depois da independência, que na narrativa, reza o autor, nessa altura, já ter passado vinte e sete anos, desde 1975 a 2003, como confirma o tempo da narrativa.
– um pouco mais animados, passaram então em revista o que a ambos acontecera durante os cerca de vinte e sete anos em que tinham deixado de se ver. Na corrente do tempo, passava o ano de 2003 (pág10).
Independência significa liberdade, autonomia. Carácter de pessoa independente (Tavares at al, 347).
É assim que, no meu ponto de vista, independência traz, consigo, uma nova forma de pensar e ver o país; o desenvolvimento. Traz um “homem novo”, como está marcado no hino nacional. Significa que desde a data que se proclama, todos, independentemente da origem étnica, raça, cor, tribo ou, até mesmo, grupos partidários, começam a sair beneficiados. Todavia, é diferente do que se constata nas falas das personagens em Noites de Vigília, uma narrativa atemporal, histórica, que se diga.
– (…) arrependido, mil vezes arrependido de me ter metido numa luta sem glória (pág 17).
Ou seja, aquele povo do paratexto, na capa, a ser representado por Quinito e Siundo, no texto, porém uma metonimia do todo, arrepende-se, mil vezes, de ter lutado para a libertação e independência: uma consequência. Pois, quem se arrependeria duma luta com ganho? Quem se arrependeria depois de estar livre? Ou será que exite um grupo dos beneficiados e outro dos não beneficiados? O nosso objecto de análise, que é a obra, responde por ela mesma:
– Quinito, lá perto de Viana onde que morava, vivia numa barraca de papelão que ele próprio tinha construído (pág 19).
– (…) os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais miseráveis (pág 18)
Volvidos 46 anos de independência de Angola, quase meio século, os problemas que Quinito e Saiundo enfrentam continuam, daí metonimicamente representarem todo povo sofredor que, culpa das lutas político-partidárias, orgulho, egoísmo, falta de amor ao próximo, sede e centralização do poder, desunião, rivalidade, continuam a sofrer.
– (…) o nosso sofrimento não tem cor partidária. O que nos une neste momento é o facto de nos sentirmos excluídos da sociedade (pág 30).
Portanto, Noites de Vigília, através das falas das personagens e do próprio narrador, questiona os ganhos da independência, na medida em que relata, depois de consegui-la, ainda assim, o sofre de um povo que se vê distante de usufruir dos sonhos preconizados, quando confirmado, outra vez, na fala de Quinito:
– “se pressentia que a mudança estava para acontecer, que os sonhos que tínhamos sonhado um dia iam se transformar em realidade, que a canção da liberdade ia ser cantada de mãos dadas por todos nós, os filhos desta terra” (pág 24). A obra nos ajuda a perceber que não há ganho algum com a Angola independente, mas que se há, só alguns usufruem disso. É por isso que, e não menos importante:
– A sociedade tem deveres para connosco. É inadimissível que depois de termos dado o corpo ao manifesto, ninguém nos ligue nenhuma. TEMOS, POIS, DE NOS ORGANIZAR PARA QUE POSSAMOS, JUNTO DO GOVERNO, AGIR EM BUSCA DE SOLUÇÕES CONCRETAS PARA O NOSSO CASO (pág 30). E isso tem liança, diriamos intertextualidade, com que Ukuakukula, na sua obra “Dias de Expiação” através de Costa, expõe: “NINGUÉM FALA POR NÓS. NOSSO PROBLEMA É DO TAMANHO DO NOSSO MEDO; SUA SOLUÇÃO É DO TAMANHO DA NOSSA CORAGEM(…)” (Pag 36).
Orlando Ukuakukula
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cardoso, B. (2013). Noites de Vigília. Luanda: Texto editores.
Matos, J. C. (2012). Gramática Moderna da Língua Portuguesa. Lisboa: Escolar Editora.
Tavares, A. C. (s.d.). o nosso dicionário. Luanda: Plátono Editora.
Ukuakukula, Orlando (2022) Dias de Expiação. Crearte Editora. Sorocaba, São Paulo-Brasil
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Natural de Luanda, é formado em Ensino da Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Modernas, pela Escola Superior Pedagógica do Bengo (ESPB), em Angola. É membro do projecto de investigação científica da Variedade do Português em Angola (VAPA); membro da Brigada Jovem de Literatura de Angola (BJLA) e delegado do município de Cacuaco; coordenador do projecto A Escola & o Livro; colunista do Jornal ROL-Brasil; membro da Academia Intercontinental de Artistas e Petas (AIAP)-Brasil Profissionalmente, é professor e, nas artes, é escritor, cronista, contista, romancista, poeta e declamador. Participou, com mérito, do I Concurso Internacional Poético Cultive-2021, realizado em Genebra-Suíça; co-autor da Revue Suisse D’art et Literature Cultive, com o poema ‘pedaços de Nós’.