Orlando Ukuakukula: ‘O catchubuim’
Bairro Vidrul. Segunda-feira. 17 de Junho. 5 horas. O Sol ainda dormia e, por isso, receava mostrar seu rosto à noiva daquele dia. Sem ainda véu branco, o céu enciumava-se com nuvens pretas.
Cedo, cedíssimo. Maria Madalena faz a travessia na cama dos filhos, pulando-os para passar para o outro lado, que daria acesso à porta principal de casa. Na casa da tia Maria, as crianças dormiam na sala, num luando feito a capim seco. Seis filhos. Arrumavam-se no sentido contrário do luando, de forma horizontal, para que coubessem. Um lençol estendido, e outro para se cobrirem e darem passos largos de separação entre o corpo e o frio, embora, no lençol, houvesse orifícios que permitiam um vento que não se deixava desperdiçar em junho, época de frio feio.
Nisso, junta-se a necessidade do sonho aberto do cassule, o mais novo dos irmãos, que realiza o desejo de urinar ali mesmo, enquanto se dorme. Virava-se quantas vezes preciso para deixar a cama molhada e convidar os irmãos a mergulharem na praia que ele mesmo causa debaixo do lençol, e que deságua no luando e à beira da porta da saída, dada a saliência do chão inclinado. Assim, ao frio, aos orifícios do já tão gasto lençol, junta-se a urina da criança, que deixa o recinto mais fresco ainda.
Tem nove anos Caimbo. É para a mais velha que tia Maria grita sempre que se põe a despedir, normalmente, ao ir para a venda, no seu negócio de há oito anos, zungueira. Mas naquele dia, Maria Madalena não se despediu da filha para ir à venda. A semana trouxe-lhe outra tarefa. Bairro sem água. Torneiras, também a rascunho nas casas, todas secas, sequíssimas, davam o luxo de embelezar apenas nas casas que tinham. Foi quando, no último salto do pé que lhe sobrava atrás, pancou-se numa das pernas de um filho, não sabia de quem eram as pernas, pois a escuridão, na falta de energia eléctrica em casa, não lhe tinha ajudado muito. No entanto reconheceu logo pelo pequeno grito de dor da filha, era a Vissola. Maria Madalena, pai e mãe das crianças, rezou mil e um Pai Nosso no momento para que sua vida viesse melhorar e que não mais fosse vista inimiga da ENDE, Empresa Nacional de Distribuição de Electricidade, que nela tem uma conta incontável de dívida de luz, e, por isso, lhe tinha sido cortada. Seu dinheiro, fruto das zungas, nunca lhe permitia pagar qualquer conta, a não ser o da barriga, cujo contrato foi assinado desde o dia do seu nascimento, mas que nem lhe atende, também, ao todo. “Até quando, meu Deus.” – falava no seu íntimo.
Não podia gritar isso ali, na sala, onde os miúdos, deitados à cama-chão, fazem daquilo o seu último repouso do dia para deixar suas queixas do cansaço. Maria Madalena, finalmente, não podia se reclamar ali, sob pena de ser ouvido pelo Otchali, o menino mais ousado entre os irmãos, pela coragem de estar a questionar sempre à mãe o motivo das suas tristezas. Seguia andando, depois de pular e pancar a perna da filha; no cúmulo das vicissitudes de dentro de casa, Maria se depara ocasional e surpreendentemente com mais um obstáculo às pernas. Dessa vez, sem querer, bicou uma panela e um prato. Talvez fosse isso lógico pelos compartimentos da casa: um quarto e uma sala apenas. Da sala faz-se também a cozinha, ajeitando tudo ali mesmo. Num canto, o pequeno fogão de duas bocas, sobre uma banca alta, feito mesa, onde embaixo podia colocar a garrafa de gás para ocupar menos espaço. No chão, os baldes para água e sobre eles as banheiras de louça. Na parede, estava pregado um painel onde se podiam pendurar as panelas. Aquela panela e a louça bicadas no chão, são justificadas pela forma feroz com que Miala e Caimbo atacaram a refeição do dia anterior, no jantar.
Nada para amanhã! Nenhuma barriga, naquela casa, tirando a da própria mãe que lhe faz coragem, podia deixar para o dia seguinte um tostão de comida, tampouco Caimbo, o cassule, o que faz se tornarem eternos inimigos dos ratos que circulam entre eles. Maria quase que tira um palavrão na pancada com a louça, mas travou de repente, e tudo que fez foi dirigir-se para a filha mais velha:
– Acorda, Lemba, é hora. – notificou a filha, que já tinham combinado de se levantar muito cedo naquele dia para irem à busca de água no Catchubuim.
A pequena Lemba, de 15 anos de idade, dormia um sono insaciável pelo cansaço constante, já que é a que mais se dedica ajudar a mãe, inclusive nas vendas, algumas vezes. Estava ela no terceiro sono, e não ouviu o sinal da mãe.
– Lemba, Lemba, se mexe – tia Maria reforçou a notificação.
Mas Lemba não acordava. Nem pelo vento que penetrava aos orifícios do lençol, nem pela urina de seu irmão, que formava um lago no chão de casa, nem mesmo pelo grito da sua mãe…
– Ó Lemba, nu tás ouvi? – tia Maria insistia. – Acorda, ó você – Falava, mas já a mexendo a cada palavra, depois de deixar a janela entreaberta, apesar da pouquíssima luz do dia, para clarear um pouco e reconhecer os filhos, ou pela cabeça, ou pelos pés, já que o lençol nunca chegava pra se cobrirem o corpo todo.
Lemba desperta por fadiga e por força da força da mãe, mas com raiva. Não da mãe, aliás, tinha consciência da vida que levavam, e para nada mais serviria acusar a mãe. Ela tinha era raiva dos trabalhos, da vida, e, quicá, de si mesma. Espreguiçava-se e respondeu baixo e com sono para mostrar à mãe que jé lhe ouvira.
– Levanta, vamo. – insistiu sua mãe.
Lemba ficou uns minutos ainda na cama, enquanto tia Maria tirava os baldes e as banheiras para fora, arrumando-os preste a ir.
– Me encontra. Te sperá nué hoje.
Lemba, deitada de cara ao ar, olhava fixamente para o teto de sua pequena casa. Algo lhe tinha ocorrido na cabeça. Lacrimejou, e não se podia perceber se era pelo facto de ter bocejado no momento, ou por algum pensamento que teve naquele instante. Levantou-se. Dirigiu-se ao quarto da mãe onde ficavam as roupas de todos. Trocou-se apenas. Aliás, nem tinha água para, sequer, lavar a boca. Seguiu a mãe.
O Catchubuim é um local distanciado, aproximadamente, 500 metros da casa de Lemba. É um local com estrutura de lagoa, que deságua as suas águas para lá, à estrada, localizado na rua dos bancos, junto aos frescos, e onde, no mesmo local, se lavavam as roupas e, na companhia, tem também uma pequena pracinha; ao lado, amontoado de lixo. Água, omo e sabão penetrando a lagoa, capim, comida e lixo são referências da situação do Catchubuim. Um nome, do ponto de vista linguístico, onomatopeico, porquanto, reza-se ser uma tentativa de reproduzir o som que resulta de um corpo atirado à água ‘tchubuim’ acrescentando, talvez pela estética, o prefixo ‘ca’, um prefixo nominal diminutivo da linguística bantu ‘ka’, portanto, ‘pequena lagoa’.
As banheiras, pousadas no chão, formam um arco-íris terrestre e dão beleza de alívio àquela vida frustrante. Na ausência de alguma regra, que orienta os homens, as ofensas entre as senhoras se apresentam com vivacidade:
– Tira essa tua merda daí!
– Isso nué merda, tem nome.
-Tira isso. Você nu scuta?!
– Eu cheguei primera.
– Cheguei fionconco, cheguei fionconco. Não me viste aqui quando chegaste?!
– Eu?! Tá amarrado. Se te mandaram, vai falá que não lhe encontraste!
Lemba encontrou sua mãe em bringa com uma senhora. Primeiro, admirou o facto de já terem encontrado cheio, quando eram apenas 5 horas. Depois, tentou entender o motivo da briga, mas sem sucesso.
– Essa água nué de ninguém. – interveio ela, tentando acudir a mãe. -Quem quere cartá, vai cartá – continuou ela.
– Mete então tua banheira aí pra você vê. -vou meté memo.
-Nu discote comigo, ó miúda. Vou te rebentá uma…
– Lhe rebenta pra você ver – reagiu tia Maria, acudindo a filha.
– Me rebenta então! – acrescentou Lemba.
- Tchê, nu me trazem azare yhá, hum!…
Todas, de alguma forma, estavam agitadas e em gritaria. Nervavam-se umas com as outras, na necessidade de levarem um pouco de água para casa. Talvez irónico, pois Catchubuim é lagoa com um estilo peculiar, de uma água corrente e que não seca. Todos podem, afinal, carretar água ali. Talvez o tempo de cada um, como é o caso da pequena Lemba, não lhe permitiria demorar, dado o compromisso com outros trabalhos de casa e, depois, com a escola, pois se encontrava na época de exame final, e precisaria estudar para prova. Porém, havia, nesses entretantos, quem ainda podia prestar uma ajuda a outra.
– Me ajuda só na cabeça, mana.
– Eh! Tua banheira pesa yhá…
– Tô te falá, mana.
– Hum. Pega ainda tamé aqui!
Puseram-se a rir as duas na entre-ajuda. A fileira dos que transportavam a água era igualmente bonita. Apesar do peso e cansaço, parecia um grupo, pela forma como a corrente esteve, ainda mais com as variadas cores das banheiras: azul, vermelha, verde eram as que mais se destacavam. Um arco-íris terrestre, de facto. Talvez, a felicidade dure mesmo pouco. Um problema surge à tona:
– Essa água se bebe?
Um silêncio.
– Hã, essa água se bebe? – um jovem, apenas observador, que lá ia, perguntava.
Ninguém respondia até que uma moça, de calções apertados à moda sedutora, marcado o ‘V’ de vingança entre as pernas, reagiu à questão:
– É só pra lavá. –
– Se bebe memo – intrometeu-se outra, que apenas passava com a sua banheira. – nu tá vê é limpa – rematou.
– Tem que meté lá lixivia – disse outra.
– E fervê – mais outra intrometida.
– Se bebe, sim, é só meté lá lixivia – concluiu a última, todas em passagem, indo e vindo com as banheiras.
O jovem ficou confundido. Todos, na verdade, ficaram. Ninguém respondeu de imediato que se bebia. Se fosse para beber, devia haver um procedimento a seguir. Mas, algures dali mesmo, ouve-se que aquela lagoa é fruto de algum desvio produzido pela fonte das águas canalizadas no bairro, e que, por isso, vem mesmo directamente da própria EPAL, Empresa Pública de Água, água ‘potável’.
Lemba e sua mãe encontraram meio termo para se entender com a outra senhora com quem discutiam. Já estavam, no trajecto, perto de cinco viagens no transporte da água. A quantidade de água, que sai da banheira e vai caindo pelo caminho à medida que se transporta, faz rastos do transportante, e na sequência coincidência onde a água bate, forma uma sopa de lodo, que se vê preparado para receber qualquer um que se coloque às pressas, ou no descontrolo à queda. É assim que outra situação emerge. Uma menina, com uns 12 anos na flor da pele, que vinha com a banheira cheia de água na cabeça, tropeça. Tinha três opcõe e apenas segundos para decidir: uma verdadeira prova. Ou largar a banheira nova e rachar, mas ela sair ilesa, ou ela lesar-se e a banheira continuar novinha, ou entregar-se à sorte. Decidiu. Foi motivo de risos para umas e pena para outras. A miúda teve que pensar rápido, só em segundos. Lembrou-se como sua mãe era, a forma como ralha. Calculou a ira da mãe e pôs-se ao sacrifício. Entregou seu corpo, salvando a banheira nova, e ela, pregada ao chão. A terra lhe deslizou a pele, e já era.
As viagens ao transporte da água eram lentas. Caminhava-se às 10h quando Lemba iniciou o trabalho de casa. Tia Maria já não tinha tempo algum. Arrumou-se para a zunga para garantir o jantar daquele dia. Despediu-se dos meninos e foi.
Chão para varrer, louça para lavar, chão para limpar, casa para arrumar, matabicho por fazer.
Desfazendo-se da sua timidez de início, o Sol exibia sua autentica presença. Eram 12 horas e trinta minutos. Lemba se apressava na sua arrumação para a escola. Não conseguiu estudar. Esteve cansada e quase sem forças. Arrumou-se e foi à escola.
Na sala, diante da prova, Lemba adormeceu. Causou a impressão de que estivesse a fraudar. Acusou-lhe o professor. Lemba não reagiu. Chamaram-lhe no nome, mas nada. Agora, causou susto nos colegas arredor. O professor foi se aconchegando a ela. Chamou-lhe duas vezes pelo nome, tentando levantar-lhe a cabeça.
– Lemba, Lemba!
Acordou assustada em bocejo. Saliva entre os lábios a descer à bochecha, que manchou a folha de prova. Olhos vermelhos e com olheiras, sem forças.
– Lemba, Lemba, Lemba! – despertava-lhe o professor, mas Lemba tão somente não conseguia responder. Pela segunda vez, naquele dia, escorreu-lhe lágrimas nos olhos. Agora, mais complexa a situação, não se sabia descrever se era por ter bocejado naquele instante, ou pela fadiga, ou por ter ocorrido algo na sua cabeça, ou, ainda, pelo momento sôfrego no Catchubuim.
Orlando Ukuakukula
Luanda, 18 de Junho de 2024
Contatos com o autor
- O catchubuim - 19 de junho de 2024
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- Orlando Ukuakukula: "Dialogismo de Intervenção Social entre ‘povo no poder’, de Azagaia e ‘Noites de Vigília’, de Boaventura Cardoso" - 14 de março de 2023
Natural de Luanda, é formado em Ensino da Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Modernas, pela Escola Superior Pedagógica do Bengo (ESPB), em Angola. É membro do projecto de investigação científica da Variedade do Português em Angola (VAPA); membro da Brigada Jovem de Literatura de Angola (BJLA) e delegado do município de Cacuaco; coordenador do projecto A Escola & o Livro; colunista do Jornal ROL-Brasil; membro da Academia Intercontinental de Artistas e Petas (AIAP)-Brasil Profissionalmente, é professor e, nas artes, é escritor, cronista, contista, romancista, poeta e declamador. Participou, com mérito, do I Concurso Internacional Poético Cultive-2021, realizado em Genebra-Suíça; co-autor da Revue Suisse D’art et Literature Cultive, com o poema ‘pedaços de Nós’.