UM SAUDÁVEL DEBATE NO CAMPO REVOLUCIONÁRIO
“A troca do trabalho vivo pelo trabalho objetivado,
quer dizer, a manifestação do trabalho social sob
a forma antagônica do capital e do trabalho, é o
último desenvolvimento da relação do valor e da
produção baseada no valor.” (Karl Marx)
Entre revolucionários sinceros há sempre alguns pontos em comum:
- a crença nos efeitos deletérios do capitalismo;
- a crença num modo alternativo de relação social;
- a busca incansável, e até o limite das suas existências, da superação do capitalismo, que implica, sempre, numa retomada de eventuais caminhos fracassados ou lutas perdidas.
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SOBRE A EXISTÊNCIA DE UM DUPLO MARX
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Estou convencido de que há um duplo Marx, ou seja, um Marx da juventude, ainda tateando nas soluções políticas de enfrentamento do absolutismo governamental de sua época, na qual começavam os primeiros sintomas da primeira revolução industrial inglesa que viria a seguir, e outro, derivado de sua análise dos conceitos dos clássicos da economia política, que o levou à elaboração de sua crítica, cujo teor modificou o objeto de seus conceitos sobre o que deveria ser feito revolucionariamente.
Na primeira metade do século XIX, o mundo ocidental europeu estava convulsionado pela transição do modelo monárquico feudal para o modelo republicano como reflexo da revolução francesa. Os preceitos filosóficos iluministas, com suas bandeiras pseudo-libertárias de igualdade, fraternidade e liberdade, trazia como leitmotiv a necessidade de introdução do trabalho abstrato como forma de atendimento das exigências da emergente burguesia comercial e industrial.
Marx, profundo conhecedor da filosofia e do direito graças à sua boa formação intelectual, e com seu sentimento de emancipação revolucionária que dividia o campo das ideias anti-monárquicas absolutistas (os socialistas utópicos e socialistas científicos; os jacobinos e girondinos; e por aí vai), interveio com ideias de aglutinação dos trabalhadores, mais numerosos, obviamente, que a classe patronal e seus representantes da política, no sentido de que eles tomassem consciência de suas próprias forças.
É com a idade de 40 anos que têm início os estudos de Marx sobre a crítica da economia política, começando a se aprofundar na compreensão crítica sobre a natureza da forma-valor. Isto se deu a quando passou a residir em Londres, fugindo das perseguições. Teve, então, acesso ao que havia de melhor sobre economia (as obras dos economistas burgueses Adam Smith, David Ricardo, James Stuart Mill, e outros luminares no pensamento econômico e da positivação dos méritos da relação valor-trabalho) na melhor biblioteca do mundo, a British Library (hoje com mais de 150 milhões de itens), na qual passava horas e horas estudando os clássicos da literatura mundial. Assim ele pôde chegar a conclusões admiráveis.
As conclusões sobre o conteúdo do O Capital geralmente excetuam a importância da primeira parte, que trata do fetichismo da mercadoria e se constitui num importante elemento da teoria marxiana do valor. O excerto dos Grundrisse, intitulado Contribuição para a crítica da economia política, pouco divulgado (apesar de publicado), é certamente um testemunho da virada de Marx no que diz respeito ao caráter político de suas obras anteriores.
Ali, ele demonstra o quão negativa é a relação social sob a forma-valor e, consequentemente, a sua administração política sob qualquer forma. Aqui, nasce outro Marx, cuja correta interpretação nos dá uma nova concepção de luta contra o capitalismo.
Os marxistas tradicionais que se situam no campo da crítica aos modus operandi pós-revolucionários, avaliam que houve uma deturpação burocrática do combate ao capitalismo por dirigentes como Stalin e Mao Tse Tung; já os adeptos da crítica radical à forma-valor e à dissociação de gênero, adeptos das teses marxianas da crítica da economia política, admitem que o capitalismo de estado praticado pelos revolucionários marxistas-leninistas não poderia gerar outra coisa senão uma inevitável abertura para o capitalismo liberal, graças à necessidade de expansão que os fundamentos capitalistas exigem como forma de sobrevivência. Esta é a divisão de concepções no campo marxista.
A compreensão de Marx sobre a natureza da forma-valor fê-lo compreender que a questão principal não é a luta pela justa distribuição do dinheiro, coisa impossível de acontecer graças à sua essência autotélica, tautológica, e de necessidade de uma eterna acumulação na qual, tal qual um moloch insaciável, ele transforma a riqueza material (o objeto em si) em riqueza abstrata (a mercadoria) e assim encaminha a destruição da sociedade a partir de seu modo de relação social destrutivo e autodestrutivo; fê-lo compreender que a questão é a superação da própria forma-valor (dinheiro e mercadorias) como modo de relação social e não a sua administração.
Esse entendimento muda completamente todas as concepções marxistas tradicionais (e suas variantes trotskistas, anarquistas, etc.) de luta política, que entronizou e endeusou o trabalho e o trabalhador como sujeitos da emancipação. A crítica à forma-valor defende um modo de relação social de produção livre das amarras fetichistas do sujeito automático dessa mesma forma-valor, mensuração abstrata da riqueza material. Tal concepção altera totalmente os métodos de luta revolucionária, sem abdicar dela, mas, ao contrário, tornando-a consistente no longo prazo, ainda que mais difícil de ser compreendida.
A teoria crítica da forma-valor e sua luta revolucionária, embora seja de mais difícil compreensão teórica, agora vê seus postulados se aproximarem da realidade, no momento em que o capital, cujo Deus é o trabalho, nega-o aos seus súditos.
CONCORDAMOS NO FUNDAMENTAL
O (ainda mais) jovem Marx… |
O companheiro Dalton Rosado considerou que haveria ganho para nossos leitores se tornássemos públicas algumas ideias que vínhamos trocando por e-mail. Não creio que seja o caso de falarmos num debate, pois se trata mais de nuances do que, propriamente, de visões diferentes dentro do campo revolucionário. Mas, vamos lá.
Há um sem-número de polêmicas de schoolars marxistas sobre os méritos relativos do jovem Marx e do Marx amadurecido (eis um exemplo característico dessas pendengas de doutos acadêmicos, que mais parecem teólogos medievais discutindo o sexo dos anjos…).
Temo que, por eu haver feito uma referência um tanto imprecisa a jovem Marx, o Dalton tenha pensado que eu estivesse tomando partido na discussão bizantina acima referida. E, como as posições defendidas pelo grupo Crítica Radical e pelo Dalton em particular se baseiam nos textos de Marx conhecidos como Grundrisse, de 1857/8 (portanto, do Marx amadurecido), seria este o motivo de sua delicada reprimenda.
Ocorre que, mesmo na minha longínqua fase de aprendizado marxista, quando deglutia cada frase do meu novo ídolo como se estivesse ajoelhado diante da tábua dos dez mandamentos, o único livro marxista importante que não me passou pela garganta foi O capital. Até do igualmente complexo A ideologia alemã consegui terminar a leitura. Mas, depois de umas 50 páginas daquele monumental tratado de economia política, conclui era simplesmente intragável para o meu gosto.
Na minha opinião de leigo assumido no assunto, contudo, nada enxergo de substancialmente errado na leitura que o filósofo e ensaísta alemão Robert Kurz fez de alguns trechos das Grundisse, deles derivando sua crítica do valor.
Nem sequer me pareceram uma grande novidade, pois a antevisão que eu tinha do ponto de chegada da longa marcha revolucionária era exatamente a de uma sociedade sem governo nem Estado e muito menos patrões, na qual se produzisse coletivamente o realmente necessário (não o suntuário e o supérfluo) e se distribuíssem equitativamente os frutos do trabalho para as pessoas, atendendo sempre às suas reais necessidades e deixando-as com tempo livre para buscarem individualmente outras satisfações, de forma a poderem realizar-se plenamente como seres humanos. Valor, preço e dinhei
A minha ressalva ao Marx amadurecido é outra: depois de haver, tanto quanto os anarquistas, acreditado que uma onda revolucionária varreria o mundo, priorizando, portanto, a organização internacional dos trabalhadores, ele foi sendo seduzido aos poucos pela ideia da ditadura do proletariado, lançada pelo jornalista comunista Joseph Weydemeyer em 1852.
Até que o brutal esmagamento da Comuna de Paris (1871) pelos invasores alemães, em conluio com reacionários franceses, impactou profundamente em Marx e ele, quatro anos depois, em sua Crítica ao Programa de Gotha, extraiu conclusões autoritárias do ocorrido. Passou a admitir que a revolução eventualmente ocorresse num só país e tivesse de tomar as medidas necessárias para defender a sua existência.
Engels foi mais explícito ainda nos exageros e radicalismos desta nova visão, ao rebater críticas:
Comuna de Paris esmagada: banho de sangue. |
“Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que existe; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra parte por meio de espingardas, baionetas e canhões – meios autoritários, caso estes existam em tudo; e se o grupo vitorioso não quiser ter lutado em vão, deve manter esta regra por meio do terror que as suas armas inspiram aos reacionários. Será que a Comuna de Paris teria durado um único dia se não tivesse feito uso da autoridade armada do povo contra os burgueses?“
Idem Lênin, que, no seu O Estado e a Revolução (vide aqui), foi buscar em frases trovejantes de Marx sobre a tragédia dos communards a justificativa para a ditadura do proletariado – afinal, o velho barbudo colocara que “quebrar a máquina burocrática e militar do Estado” era “condição prévia de qualquer revolução verdadeiramente popular”.
Ora, após tal quebra, se faria, evidentemente, necessária a construção de outra máquina burocrática e militar do Estado, para o novo governo resistir aos inimigos internos e externos. Lênin fez a ressalva que a missão do tal governo seria preparar as condições para sua progressiva obsolescência, até a extinção, com as funções da máquina burocrática sendo assumidas pelos cidadãos comuns como parte de sua rotina e a máquina militar sendo desmontada à medida em que não houvesse mais inimigos contra os quais se defender, pois o socialismo aos poucos se estabeleceria no conjunto das principais nações, tal qual ocorrera com o capitalismo.
Como anarquistas e até o jovem Trotsky profetizaram, foi por tal caminho que se chegou ao pesadelo stalinista, pois ao invés de o Estado ir minguando aos poucos, cresceu desmesuradamente, sob a égide da nomenklatura que gerou. A previsão sinistra de Trotsky em 1903, quando de sua ruptura com Lênin, acabaria se confirmando integralmente: primeiro, o partido substitui o proletariado; depois, o Comitê Central substitui o partido; finalmente, um tirano substitui o Comitê Central.
Para não nos alongarmos em demasia, Marx abriu uma fresta para o autoritarismo, Lênin a tornou uma porta e por ela Stalin entrou, arrombando-a com um pontapé, para impor um totalitarismo assustador, que tornaria execrável a imagem da revolução para o proletariado das nações cujas forças produtivas estavam mais desenvolvidas – o sujeito revolucionário por excelência, na visão de Marx.
A partir daí, as tomadas de poder se deram em países de desenvolvimento econômico tardio e/ou incipiente, acabando todas essas experiências por fracassarem de uma ou outra maneira (ora resvalando para a barbárie como o Camboja sob Pol Pot, ora esmagadas a ferro e fogo como Allende no Chile, ora se descaracterizando e aburguesando como os governos petistas no Brasil). Marx nisto tinha total razão: são as nações economicamente mais pujantes que determinam para onde o mundo marchará, não as miseráveis e/ou periféricas.
Derrocada petista destruiu ilusões reformistas |
A minha visão é inspirada em livros trotskistas como A revolução traída (do próprio) e a trilogia dos profetas (além de várias outras obras) do historiador Isaac Deutscher; Marxismo soviético, do Marcuse; O fantasma de Stalin, do Sartre; Autobiografia de Federico Sánchez, do Jorge Semprún, dentre outros.
Meu enfoque predominantemente político e o predominantemente econômico do Dalton convergem no principal: o capitalismo está nos estertores, devendo ser levado de roldão pelo sinergia da megacrise econômica global que vem engendrando com os desastres ambientais aos quais sua ganância incontrolável nos está arrastando.
Acredito que, em termos imediatos, não devamos participar desse Estado que está podre até a medula, mas sim atacá-lo de fora – até porque não existem esperanças de aperfeiçoá-lo, corrigi-lo ou atenuar sua perniciosidade (isso é impossível, como os petistas acabaram de comprovar).
Não estão dadas, claro, as condições para tentarmos o assalto aos céus neste instante, mas precisamos acumular forças e preparar líderes que, nos momentos cruciais que teremos pela frente, saibam unir os homens para a sobrevivência e, depois, para a reconstrução da sociedade sob o primado do bem comum. [Janelas revolucionárias inevitavelmente surgirão. Precisamos aproveitá-las, como em 1917 e 1949, ao invés de deixarmos as chances escaparem entre os dedos, como em 1968.]
Crítica Radical foi muito atuante na luta por Battisti |
Também é mais ou menos o que já faz o Crítica Radical, ao lançar propostas como o fim do trabalho e o Não vote!, bandeiras que por enquanto ainda não têm chances de empolgarem contingentes mais amplos, mas são sementes plantadas para o futuro e servem para o aprendizado na prática daqueles que terão um papel a desempenhar na construção de tal futuro.
Então, mais premente do que discutirmos qual foi o pecado original (se a definição de valores para medir o trabalho humano ou a emasculação do ideal revolucionário pela concepção autoritária de ditadura do proletariado) é somarmos forças para salvarmos a humanidade do capitalismo.
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É fundador e um dos editores do Jornal Cultural ROL e do Internet Jornal. Foi presidente do IHGGI – Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga por três anos. fundou o MIS – Museu da Imagem e do Som de Itapetininga, do qual é seu secretário até hoje, do INICS – Instituto Nossa Itapetininga Cidade Sustentável e do Instituto Julio Prestes. Atualmente é conselheiro da AIL – Academia Itapetiningana de Letras.