Sergio Diniz da Costa: ‘Uva, vinho e amizade’
Rua Dr. Arthur Martins. Aproximadamente 13h00. Um policial militar de baixa estatura, magro, aparência sisuda e rosto marcado pelo tempo acena para que eu pare o carro. Rápida e instintivamente, confiro mentalmente documentos, equipamentos e as condições gerais do veículo. Tudo em ordem. Graças a Deus! Apesar do adiantado da hora para o almoço, acredito que seja apenas uma vistoria de rotina e, por essa razão, não perderei muito tempo. Todavia, por cautela, questiono o policial se cometi alguma infração de trânsito. Não, até então, não cometera nenhuma. Era de fato uma vistoria de rotina. Respirei aliviado. Até o momento em que o PM, ao examinar os documentos do carro, constatou que o licenciamento vencera há pouco tempo. Emudeci. Engasguei. Suei. Contabilizei a futura perda financeira, eventual apreensão do veículo etc. etc. etc.
E agora, José? (lembrei-me do belíssimo poema de Carlos Drummond de Andrade). E agora? As penas da lei, completou o meu juiz interior. Esperei, assim, a minha sentença. Porém, ela não veio. Não da forma como a letra fria do papel haveria de impor. Veio, ao contrário, por meio de uma admoestação, semelhante àquela dos pais para com os filhos, ou do mestre para com o aluno. E a multa? Surpreso, questionei sobre ela, pois, afinal, não é a sanção da lei que coíbe os homens para a prática das infrações? Esse não era, contudo, o pensamento daquele policial. Segundo sua filosofia de vida e de trabalho, há outras formas de educar e punir os homens. O guarda de trânsito, o policial militar ─ segundo ele ─, não tem uma rígida formação profissional para sair às ruas como aquele que detém um poder ilimitado, punindo qualquer um por qualquer infração; não, o rígido tempo de Academia é um tempo de aprendizagem, formação, educação; educação de si mesmo, para um difícil trabalho diante da comunidade.
Ouvi, surpreso e gratificado, as palavras daquele homem simples, que vestia um uniforme descolorido pela exposição diária a um sol inclemente e, somente naquele momento, e mais surpreso ainda, notei o seu sobrenome: VIDEIRA. Fiz-lhe, então, uma observação: videira é uma trepadeira e produz uva. E ele, certamente sabendo disso, arrematou: ─ uva passa, olhe as rugas do meu rosto… Não pude deixar de rir, diante de seu senso de humor. E entre alguns comentários sobre a vida, incluindo a importância da amizade, passamos alguns minutos conversando. Num determinado momento, ele, que não descurara o trânsito, interrompeu a conversa, e para exemplificar o papel orientador do policial, postou-se no meio da rua, com aquele semblante “severo” que eu conhecera minutos antes e determinou que outro veículo parasse; uma senhora dirigia sem o cinto de segurança. Com um simples (mas significativo) olhar, fez-lhe ver que ela se esquecera de algo importante; a motorista, com um sorriso constrangido, rapidamente colocou o equipamento de segurança. A seguir, foi-lhe liberada a passagem. E a senhora, com seu acompanhante, continuou seu trajeto; não antes de proferir (e também seu acompanhante) um sonoro e feliz “muito obrigado!”.
Videira me confidenciou, em seguida, que fizera muitos amigos, agindo dessa forma. Concordei com ele e, para confirmar suas palavras, disse-lhe que gostaria de lhe dar um presente. Imediatamente, ele recusou. Sosseguei-lhe o espírito: era apenas um livro de Direito de minha autoria que, de certa forma, por meio de uma argumentação mais altaneira, também falava de relacionamentos pautados no bom senso e na ética. Diante da explicação, ele aceitou o presente, comentando que, sempre que possível, no quartel acessava sites jurídicos.
Com a ideia do almoço já esquecida (e sem sentir falta dele), me despedi daquele policial, a princípio um estranho, de ar sisudo, mas, de repente, um novo amigo; um amigo que estaria diariamente naquele posto, orientando outros motoristas desatentos; um amigo de farda desbotada pelo sol, mas com ele resplandecendo em seu coração.
Ao continuar meu trajeto, refletindo sobre a conversa que tivera com Videira, lembrei-me de um pensamento do escritor escocês James Boswell: “Não podemos determinar o exato momento em que se forma uma amizade. Quando enchemos um recipiente gota a gota, chega um instante em que mais uma gota fá-lo transbordar. Assim nas relações humanas: as gentilezas se sucedem até que mais uma gentileza faz o coração transbordar de ternura”. Era um pensamento verdadeiro; de fato, naquele momento, meu coração transbordava de ternura e outro pensamento concluiu minhas reflexões: videira é uma planta que dá uvas, dá o vinho… e faz amigos.
Olhei pela última vez pelo retrovisor, para acenar para aquele novo amigo. E, por um instante, tive a impressão de que não o vi com uma farda, quepe e um coldre com um revólver, mas sim com um avental branco e um giz na mão, preenchendo na grande lousa daquela rua mensagens de amizade… para todos aqueles que as quisessem ler.
Sergio Diniz da Costa
Contatos com o autor
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Grandes ensinamentos nesta crônica..
Parabéns, meu nobre amigo!
Gratíssimo pelo comentário, meu JATíssimo amigo!