Rannie Colle: conto ‘Empatia’
Eu a conhecia como a palma de minha mão, nesses quinze anos de casados eu era, não apenas seu amante, mas também o seu melhor amigo e confidente; Suas histórias eram minhas histórias: ou por tê-las vivido junto a ela, ou por eu tê-las escutado tantas e tantas vezes que elas já faziam parte de mim… e, por isso, tudo era tão duro.
– Vamos? – disse Milli empolgada como uma criança que vai ao parque com uma excitação e ansiedade que eu não conseguia entender.
Eu estava deitado no quarto, distraído olhando para o guarda-roupas e para as paredes trincadas com a tinta já descascando e clamando por uma nova pintura: eu havia concordado em ir, só que queria adiar ao máximo a partida… e tentava não pensar nisso… todos os nossos sonhos e nossos triunfantes planos, tudo tinha um começo naquele triste passado que tentávamos esquecer, e tudo tivera sua origem lá, naquela cidade para onde estávamos indo…
– Vamos? Você não consegue me alcançar?…
– Claro que consigo…
Corríamos na beira mar, jovens e presunçosos, com todo um futuro pela frente… Otimista, eu olhava para sua pele morena e seu sorriso encantador enquanto ela me desafiava. E claro, corremos: sempre corríamos na beira-mar pela manhã, e não eram raras essas disputas; depois nos empurrávamos com o perdedor acusando o outro de trapacear, e frequentemente rolávamos na areia indo terminar tudo em um relaxante banho de mar.
Eu tinha que responder alguma coisa, então sabendo que era inútil ficar adiando eternamente o inevitável, eu disse:
– Vamos! – E, por um instante, vi em seu sorriso a alegria radiante de tantos anos atrás. Como poderia o tempo ter feito tamanho estrago em nós?
O suor escorria de minha testa enquanto eu ainda a observava: ela ainda era linda, os cachos negros de seus cabelos, e seus olhos castanhos, sua pele escura e seus dentes impossivelmente brancos, e belos, continuavam a mexer comigo mesmo depois de tantos anos.
Eu sabia que havia concordado por impulso, por estar seduzido, por querer ver aquele brilho de felicidade novamente em seus olhos. E, não obstante, já estava arrependido. Entretanto eu não podia, e nem sei ao certo se queria mesmo voltar atrás.
Foi nesse contexto que, decidido a ir adiante, perguntei:
– Você já arrumou as malas?
– Já… você está pronto?
– Estou, não há nada que eu precise agora, desta vez estarei preparado para qualquer eventualidade. O carro está revisado, e o tanque está cheio. Vamos tomar um café e vamos então, há muita estrada pela frente…
– E o que o meu amor vai querer para o café?
E ela preparou um delicioso café com torradas para mim, como há anos já não fazia. Seu gesto me arrancou algumas lágrimas de felicidade e despertou entre nós um romantismo já há muito esquecido.
Isso nos fez adiar a viajem para após o almoço…
E foi assim que pegamos a estrada de volta para aquela praia, aquela antiga praia no sul em que eu passei as férias uma vez, e onde ela nasceu e nos conhecemos: onde fomos felizes por algum tempo, mas também onde ela foi definitivamente marcada e humilhada.
Teria ela esquecido de tudo? Os anos teriam simplesmente apagado ou atenuado aquela dor? Ou a tornado mais suportável? As lembranças se avolumavam: boas e ruins se sobrepunham umas as outras:
– Olha só, o casalzinho está se divertindo na praia – disse um dos seis caras que nos cercaram enquanto trocávamos um beijo depois de termos caído na areia.
– É, o guri tem fogo! – disse o outro – esses negros acham que podem fazer de tudo! Eles invadem nossa praia, tiram o nosso sossego, nossos empregos, e só falta expulsarem a gente daqui com seu comportamento indecente! O que mais vocês vão fazer agora? – disse ele olhando para mim – Vão fazer sexo na areia? Vão nos espantar com nossas famílias? Assustar nossas crianças? Quando é que vocês vão aprender a serem civilizados e parar com esse seu comportamento asqueroso e imoral?
Pego desprevenido, e espantado com aquela agressividade ante uma simples demonstração de afeto, eu tentei responder:
– Não cara, relaxa, não é nada disso… a gente só tava trocando uns beijos… a gente sempre faz isso… – era inútil, no entanto, porque ódio já estava estampado em seu olhar. Ainda assim tentei tranquilizá-lo: – tudo bem, olha, já estamos indo embo.…
Eu nunca cheguei a completar a frase pois, naquele instante, levei um chute na boca. Depois, três deles me arrastaram para longe dela e me seguraram enquanto se revezavam a estuprando.
Aquele dia, há quase vinte anos, terminou comigo espancado e desmaiado na areia, e com ela cheia de hematomas, vomitando e chorando na praia deserta…
Mais tarde, quando vencendo o medo fomos até a delegacia para prestar depoimento, ela reconheceu dois dos policiais que faziam parte dos agressores. Não havia nada a fazer ali. Foi quando, do fundo de minha alma, jurei silenciosamente que me vingaria.
E juntos decidimos de forma sensata que nos mudaríamos para bem longe…
Jamais comentei com Milli o desejo de vingança suscitado naquele momento de ódio, mesmo porque, o passar dos anos o tornou desnecessário e insensato.
Seriam vinte anos tempo suficiente para perdoar e esquecer? – eu pensava comigo mesmo e mais: – Era possível perdoar sem que houvesse sido feita a justiça? Sem que quem perpetrou o mal estivesse arrependido? Sem nunca ter havido qualquer tipo de reparação pelo dano cometido?
Esse tipo pensamento desciam queimando com o café que tomávamos no final da tarde em uma lanchonete, e envenenavam a minha alma me atormentando mesmo muito tempo depois, quando já estávamos de volta à estrada:
– Você tem certeza Milli? Tem certeza que quer voltar para lá?
– Tenho, lá é a minha terra, é onde eu nasci e cresci, e é também onde nos conhecemos… e fomos felizes juntos por um tempo…
– Sim, sim, eu sei meu amor… mas…
– Não fica assim vai, por favor querido… eu sei o que você deve estar pensando… Eu entendo o seu receio…
– É que…
– Olha, escuta: Eles estão bem velhos agora, devem estar até aposentados, se é que estão vivos… e nós estamos mais fortes, e depois, a gente não pode deixar que um acontecimento infeliz destrua tantas outras lembranças felizes que temos, pode?
– Não…
Milli não compreendia minha aflição. Não era isso o que eu temia. Na verdade pouco me importava com eles. Porém estava preocupado com ela: com as recordações que poderiam advir do local e o seu possível impacto em nossas vidas. E, quando ela percebeu que minha expressão continuava taciturna, ela emendou:
– São só as férias amor… A cidade deve ter crescido, é praia, devem ter muitos turistas agora, deve ser praticamente impossível se encontrar sozinho na beira mar como antigamente… e eles não podem mais nos fazer nenhum mal…
– Eu sei, eu sei Milli… mas é que… Tudo bem Milli, você tem razão… mas eu não consigo…
– Bem, só me promete que vai ficar tranquilo? Por mim vai, meu amor? Eu preciso muito rever a minha família…
– Está certo…
Meus medos pareciam ter se provado vãos. Até uma noite, na segunda semana de nossa estadia, quando fomos a um barzinho, eu os reconheci.
Eles realmente estavam decadentes, e confesso que não os teria reconhecido se não fossem pelas suas tatuagens; o tempo infelizmente não havia os separado como faz tantas vezes com bons amigos. Eles bebiam e gargalhavam alto, como verdadeiros bufões, quando um deles nos viu.
Tenho certeza de que não nos reconheceram, pois éramos muito jovens na época, eles mal haviam me visto uma vez, e as feições de Milli mudaram muito nesse meio tempo. Infelizmente, no entanto, algumas coisas não mudam:
– Ei! – um deles gritou – Ei, negro sujo!
Sem poder acreditar no que eu estava ouvindo, os encarei com um sorriso irônico. A indignação só veio quando um garçom foi até nossa mesa, nos pediu desculpas, mas disse que seria melhor para todos que nós saíssemos.
Fiquei atônito: era um menino escuro, de feições latinas, e estava defendendo os racistas…
– Isso é contra a lei sabia? – eu lhe disse, e ele me respondeu envergonhado:
– Eu sei senhor, por favor me desculpe, eu sei que eles estão errados (eles são uns porcos), mas são antigos na cidade, e são amigos de um dos proprietários… e se nós pedirmos para que eles saiam, eles vão depredar o bar, já fizeram isso antes e tivemos um grande prejuízo…
Milli já ia levantando da mesa para ir embora quando eu disse que sentasse. Ela me obedeceu assustada e com um pouco de medo de meu tom de voz…
Aquilo estava me doendo muito. Já tinha passado dos limites do suportável, e embora eu tenha ficado consternado com com o seu pranto quando ela me viu levantar, eu não podia aceitar uma humilhação como aquela, não vinda deles…
Fui, sem medo, até a mesa deles e falei bem alto para que todos naquele barzinho me ouvissem:
– Negro Sujo? – Você é mais negro que eu!
– Quem gosta de negrinhas é um negro sujo e fedido! Traidor da raça!
– Raça? Que raça? Sua bosta! Você não ama sua mãe? Ou é o seu pai que é negro?
Seus olhos ferviam de fúria e ele começava a se levantar:
– O quê? – ele disse me fuzilando com o olhar
– O que eu falei seu racista ignorante! Vocês devem um pedido de desculpas para mim e para a minha esposa sentada ali naquela mesa… ah, e para os seus pais ou avós, sei lá!
Milli era só lágrimas, seus olhos vidrados não viam nada a sua frente, e ela se repetia constantemente balbuciando encolhida na cadeira: Por que você está fazendo isso? Por que você está fazendo isso? Para! Por favor para! Vamos embora… eu quero ir embora…
Só que eu não conseguia ver, nem ouvir nada além de meu ódio, e em meu ódio, sem querer eu a machuquei despertando lembranças insuportáveis…
– Desculpas? Quem você pensa que é seu mestiço de merda? Quem você pensa que é para vir a minha cidade trazendo uma vadiazinha escura, e ainda por cima me ameaçar?
– Essa cidade é tão dela quanto sua, seu nazista imbecil – e quando eu disse isso percebi que todos no bar olhavam assustados para nós. Só que eu não me importava. Que olhassem.
Foi quando levei um muro na cara e cai. Ainda desconsertado, e meio que por instinto quando ele ia chutar minha boca, peguei um revólver que trazia escondido sob a jaqueta e disparei me levantando em seguida.
Eu havia comprado a arma depois de ter concordado com Milli em voltar para lá. Ela não sabia disso e estava tão assustada quanto os outros. Talvez mais.
Suado, com um ódio implacável, e apontando novamente para aquele verme, que cuspia sangue, eu continuei:
– Há vinte anos! Há vinte anos vocês destruíram a minha vida e a dela…
Ao ouvirem isso, os olhos deles se arregalaram pela primeira vez, e a olharam como se a tivessem reconhecido. Depois me fitaram atônitos, como se estivessem vendo um fantasma…
E eu fiquei feliz ao ver o seu espanto, e o seu medo. Tão feliz que não escutava mais o choro e os soluços de Milli e sua súplica rouca para que eu não fizesse aquilo, para que eu não destruísse as nossas vidas… e para que não a expusesse…
Por isso, quando um outro deles esboçou um movimento, sem pensar, e sem hesitar, eu disparei. Eles estavam com medo e recuavam. Só que eu não consegui parar até deixar os seis caídos, e provavelmente mortos, no chão.
Algumas pessoas tentavam dialogar comigo e me acalmar enquanto a polícia não chegava…
Milli apareceu ainda há pouco na delegacia, para prestar depoimento, entre lágrimas. Depois ela veio me ver. Ela devia estar me odiando, embora não demonstrasse. Eu estraguei tudo… ela só pediu para que eu ficasse calmo, e eu havia falhado.
– Por quê? Eu te pedi tanto, por quê? Eles não te fizeram nada!
– Como?
– Eles não te fizeram nada diretamente! Você sabe disso! Se alguém era para estar cheia de ódio era eu! E não você! Eu é que fui humilhada e ofendida. Você não tinha o direito! Você sabe, eu namorava o Rafael naquela época! Foi comigo e com o Rafael que eles fizeram tudo aquilo… Você sabe disso né? Eu te contei essa história milhares de vezes… Não foi com você! Você nem estava lá! Foi no Rafael que eles bateram, foi ele que eles espancaram, e estupraram depois de mim, e que mataram na minha frente! Tudo bem, você chegou depois, e entrou na minha vida, e me salvou, me deu conforto, e eu vou ser eternamente grata por isso… e eu, eu te amo, de verdade, eu te amo… mas agora você destruiu as nossas vidas… Agora eu vou ficar sozinha… Você foi tão egoísta… por quê?
– Eu… eu te amo também.
O Rafael… o primeiro namorado dela… Eu a conheci alguns dias depois de seu assassinato, e a convenci a ir na delegacia prestar queixa. Lá, vimos dois deles e guardei suas tatuagens em minha memória. Eles eram policiais e aquilo me deixou mais indignado ainda.
Eles nos olhavam ameaçadoramente, eu ainda queria denunciá-los, só que Milli estava muito fragilizada e desistimos. E Milli foi morar com uma tia em São Paulo onde eu já morava…
Por fim, com o tempo, de amigos nos tornamos namorados e dois anos depois nos casamos. Durante todo esse tempo eu sequei as suas lágrimas de tal forma que as confundia com as minhas. Sua dor era também minha dor. Pouco me importava se havia sido ele que estava com ela quando tudo aconteceu…
Pouco importava qualquer coisa agora: ela talvez jamais me perdoasse…
E eu jamais sairia da prisão…
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É fundador e um dos editores do Jornal Cultural ROL e do Internet Jornal. Foi presidente do IHGGI – Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga por três anos. fundou o MIS – Museu da Imagem e do Som de Itapetininga, do qual é seu secretário até hoje, do INICS – Instituto Nossa Itapetininga Cidade Sustentável e do Instituto Julio Prestes. Atualmente é conselheiro da AIL – Academia Itapetiningana de Letras.