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O leitor participa: Manoel Peres Sobrinho e o conto 'Boiando sobre as águas'

O leitor participa:

Manoel Peres Sobrinho e o conto

‘Boiando sobre as águas’

Jofrey era um homem comum, como qualquer outro que já se tenha visto. Modos comuns. Atitudes comuns. Formação cultural comum. Tinha uma única ambição na vida: tornar-se um grande pescador. Fazer proezas, pescar grandes peixes. Tirar fotos exibindo as suas conquistas. Mostrar suas façanhas nos melhores jornais do país, além de ser entrevistado pelas maiores redes de televisão. Mas, como um pobre diabo, suburbano, o que tinha mesmo de realidade era só um desejo frenético e desenfreado, que alimentava ardorosamente indo matar a sua ânsia num dos rios da sua cidade. Haja vista, um rio já cansado das muitas surras tomadas das inúmeras indústrias periféricas. Mas, ambição é ambição, e ela só pode ser alimentada com o sorver degustoso do objeto desejado.

Por isso, todos os domingos, à tarde, Jofrey pegava suas varas de pescar, anzóis específicos, chumbadas, minhocas e um pequeno cesto de vime e se dirigia ao rio perto do terminal rodoviário.

Um lugar ideal e paradisíaco para deixar-se estar, pensar e pescar. Depois de certa hora, havia uma calmaria infinita, além de um denso volume de água pra se contemplar, resultado do encontro de dois braços de rio: um vindo da cachoeira e outro de uma indústria de tecidos, água essa que movimentava a usina de eletricidade da fábrica.

Como uma verdadeira liturgia religiosa, Jofrey fazia tudo com a máxima serenidade e precisão; sem pressa e muito cálculo de movimentos. Envolvia-se de corpo, alma e espírito naquela atividade quase mística. Desembrulhava a linha das varas, colocava as iscas nos anzóis, lançava as linhas ao rio, fincava a vara no barranco, passava a contemplar a natureza e esperar, esperar… Às vezes, era beneficiado pela Mãe Natureza, que se encarregava de enviar diretamente para os seus anzóis os cardumes que ali existiam e por ali transitavam; mas, outras vezes, permanecia horas e horas de estoica resignação e espera sem uma única beliscada, e só servia, mesmo, pra lavar minhocas, como se dizia dos pescadores desafortunados.

Numa dessas tardes de pescaria, quando absorvido na contemplação da natureza, pareceu ter visto algo, na forma de um homem, boiando do outro lado do rio. Impossível chegar até lá. As águas corriam rapidamente. Lançar a linha pra ver se podia trazer o volume para perto era demasiado improvável. Vivia uma intensa angústia entre o dever cristão de dar um funeral honroso para aquela infeliz criatura, e a possibilidade de se complicar com a polícia. Já imaginava aqueles horríveis interrogatórios:

— O senhor conhecia a vítima?

— Não, não senhor, Delegado!

— O senhor pode provar que estava mesmo só pescando ali, ou tinha outro interesse, como, quem sabe, assassinar a vítima?

— Não, pelo amor de Deus, sou um homem honrado! Cumpro com os meus deveres, nunca tive nada com a polícia.

— Não parece, não, pelo que podemos constatar. Seus gestos denunciam certas características de quem está só dissimulando e pode ser o autor desse assassinato.

— Que é isso doutor! — e desabou a chorar e repetir, à exaustão, que era inocente.

Apavorado e sem saber ao certo o que fazer, resolveu abandonar o local, rapidamente, antes que alguém pudesse ligar a sua presença com o fato da pessoa morta.

Chegou a casa suando por todos os poros e muito mais calado do que fazia sempre. Naquela noite não conseguiu conciliar o sono. Virava na cama de um lado para o outro. Não conseguia tirar aquela cena da cabeça. Aquele corpo, rodando pelas águas, rio abaixo. Estaria mesmo o homem morto? Será, que se insistisse em chegar até ao homem poderia tê-lo salvo? Deveria ter insistido mais, na tentativa de socorrer aquela infeliz criatura?

Era o inferno que ele vivia naquela noite. Começou a amaldiçoar sua mania de pesca todos os domingos. Jurou, até, que se tudo aquilo terminasse bem, nunca mais voltaria a pescar!

No outro dia, mais cansado do que nunca, com os olhos enormes e vermelhos, com uma terrível dor de cabeça e com um mau humor sem precedentes, foi trabalhar.

Em momento algum conseguiu tirar a ideia do morto da cabeça. Aquele corpo rolando, os peixes devorando as suas carnes, sua família angustiada pela demora pra voltar para casa.

Os colegas de trabalho até perceberam nele uma transformação em seus hábitos no serviço. Mas preferiram não dizer nada.

De retorno para casa, às 18h00min, a primeira coisa que perguntou aos familiares foi:

— Quem assistiu o jornal na TV, hoje?

O pai saiu na frente e disse: — Eu!

— Alguma coisa de novo aqui em nossa cidade?

— Não!

— Não?

— Ah, agora me lembro: só o acidente com um caminhão que entrou muito depressa na curva da Rua Alfredo Filipin, e ao dobrar à esquerda para a Avenida Carlos Mariano da Silva, perdeu a direção e foi parar dentro do rio. Estava cheio de manequins masculinos.

— Algum dano mais grave?

— Não! Eles só perderam um.

 

 

 

Sergio Diniz da Costa
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