Graciela De Castro Maria: Conto ‘Karma certo e perfeito’

Karma era um jovem estudioso e trabalhador, dono de muitas virtudes, apesar de uma vida marcada por infelicidades. Morava com a mãe, dona Mara, numa casa agradável, de bom tamanho. Mas a beleza da casa contrastava com o vazio do lar: fora abandonado pelo pai e desprezado pela mãe. Vivia debaixo de gritos, agressões e silêncio — um silêncio que doía mais que qualquer palavra.
Certa noite, ao voltar do trabalho, cansado não pelo esforço do dia, mas por saber que retornava ao mesmo ambiente hostil, respirou fundo e se jogou no sofá:
– Mãe, estou de volta! – gritou. Nenhuma resposta. Sabia bem o porquê: mais uma vez, a mãe estava embriagada. Com desânimo, levou-a ao quarto. Amava-a? Não. Tinha por ela um ódio silencioso, uma mágoa funda e mal resolvida. Desejava apenas o fim do sofrimento. E o que o mantinha de pé era apenas o nome que carregava: Karma, talvez ali estivesse um destino a cumprir.
Naquela noite, pela primeira vez em muito tempo, dormiu em paz. Sem gritos. Sem medo. Apenas o silêncio da madrugada.
– Que bela noite – murmurou, sentindo-se, por instantes, simplesmente… vivo.
No fim de semana, como de costume, Mara saiu pela manhã. Karma sabia que a procurar era inútil – os bares e becos da vila já a conheciam de cor. Resolveu apenas garantir que ela ainda estava viva.
– Lá está ela – disse, ao avistá-la apostando dinheiro num bar de esquina. Evitou confrontos. Manteve o passo e voltou para casa.
No caminho, encontrou um casal estranho à porta de sua casa.
– Quem são vocês? – perguntou, desconfiado.
– Precisamos conversar – disse a mulher, com seriedade no olhar. – Este é seu pai. Ele quer levá-lo para casa.
O espanto o paralisou. Mas algo no ar, no rosto daquele homem, parecia verdade. Os olhos, o semblante… Era como se se olhasse no espelho. Relutante, permitiu que entrassem. Metade do bairro já espiava a cena pelas janelas. A mulher, uma defensora dos direitos humanos, já o conhecia: sabia da violência que sofria, das noites choradas, do menino que não tinha para onde ir.
A casa estava limpa, organizada – exceto pelo cheiro estranho vindo do andar de cima. O homem, Zaqueu, era simpático. Acolheu Karma com carinho e respeito. Pela primeira vez, sentia-se amado. Era bem tratado. Tinha comida na mesa e palavras gentis. Mas havia algo inquietante: o quarto do segundo andar, malcheiroso e proibido, era evitado por todos. O pai sempre sorria, mas sua presença tinha um peso difícil de explicar.
– Kaká, meu filho, cuida da casa, vou sair para trabalhar – disse Zaqueu certa noite, saindo antes do costume. A casa ficou em silêncio.
Karma nunca foi curioso. Mas o cheiro que vinha do quarto era insuportável. A porta entreaberta o chamava. Hesitante, entrou. O que viu congelou seu corpo: cadáveres de crianças, em caixões alinhados, cobertos por um tapete vermelho de sangue seco. O horror subiu-lhe à garganta.
– O que é isso? Quem faria tal coisa?
Correu para fora da casa, tentando respirar. A mente confusa, o coração em guerra.
– Esse homem… tão carinhoso comigo… teria feito isso?
– Mas ele me salvou, me acolheu, me deu um lar! Isso não pode ser sobre mim… talvez…, talvez, essas crianças tenham feito algo errado… Eu não! Eu sou diferente! Eu mereço essa vida!
A luxúria do conforto cegava Karma. Preferiu ignorar a verdade. Pôs seu melhor sorriso e voltou à casa. Nada mudou. Mas ele sabia: algo dentro dele havia se partido.
– Você é uma criança admirável – disse Zaqueu, sorrindo. – Uma das mais perfeitas.
E antes que Karma entendesse o que aquilo significava, antes que pudesse responder ou fugir, foi morto. Sem piedade.
Zaqueu nunca foi bondoso. Nunca foi pai. Apenas mais um homem tomado por ganância, ódio e escuridão.
E Karma… Karma esqueceu o seu nome. Esqueceu que o verdadeiro karma – o certo e perfeito – não é o prêmio pelo sofrimento, mas a consequência das escolhas.
Graciela De Castro Maria
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Natural de Sorocaba (SP), é escritor, poeta e Editor-Chefe do Jornal Cultural ROL. Acadêmico Benemérito e Efetivo da FEBACLA; membro fundador da Academia de Letras de São Pedro da Aldeia – ALSPA e do Núcleo Artístico e Literário de Luanda – Angola – NALA, e membro da Academia dos Intelectuais e Escritores do Brasil – AIEB. Autor de 8 livros. Jurado de concursos literários. Recebeu, dentre vários titulos: pelo Supremo Consistório Internacional dos Embaixadores da Paz, Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça; pela Augustíssima e Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente, Conde; pela Soberana Ordem da Coroa de Gotland, Cavaleiro Comendador; pela Real Ordem dos Cavaleiros Sarmathianos, Benfeitor das Ciências, Letras e Artes; pela FEBACLA: Medalha Notório Saber Cultural, Comenda Láurea Acadêmica Qualidade de Ouro, Comenda Ativista da Cultura Nacional; Comenda Baluarte da Literatura Nacional e Chanceler da Cultura Nacional; pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos, Doutor Honoris Causa em Literatura, Ciências Sociais e Comunicação Social. Prêmio Cidadão de Ouro 2024, concedido por Laude Kämpos.