Pedro Israel Novaes de Almeida: ‘EU, DEUS’
Acordei sorrindo, pois havia sonhado que era Deus.
Ficava acomodado em uma nuvem, trajando branco. Não sentia as agruras da idade, embora contasse com milhões de anos.
Observava a terra e seus habitantes, e a confusão é tão grande que exige dedicação exclusiva. De uma só costela, fiz milhões de seres, produzidos aos pares.
Os ímpares foram surgindo naturalmente, obedecendo à estatística de ocorrência que não prejudicasse a reprodução da espécie.
Muitos humanos duvidavam de minha existência, alegando que, se de fato existisse, não haveria tantas injustiças e sofrimentos. Acontece que não era o único a ter poderes, e lutava constantemente contra aquela entidade nefasta, que adora o inferno e vive tentando, com algum sucesso, atrair adeptos.
A terra andava repleta de templos, nenhum oficial, em minha homenagem, e cidadãos que diziam ter procuração para falar em meu nome. Alguns pediam colaborações as mais diversas, mas jamais havia recebido uma só das tantas ofertas que arrecadavam.
Recebia milhões de pedidos, diariamente. Muitos queriam ganhar na loteria, alguns pediam para o Corinthians ser campeão, e muitos carecas imploravam por cabelos, mas até os milagres têm limites.
Um importante presidiário agradeceu por haver impedido que fosse a um presídio federal, mas isso não foi obra minha, e com certeza foi mais um malfeito daquele outro poderoso.
Recebi uma montanha de pedidos, para que Lula e Bolsonaro não fossem eleitos. Algumas cartas pediam que providenciasse algum raio poderoso, para cair sobre o Congresso Nacional. Resolvi não intervir, mas pretendia dar uma ajudazinha, na hora certa.
Nunca tive preferência por credos, e estranhei a maneira como complicavam minha figura e doutrina. Minhas leis estavam claramente escritas na tábua, e fáceis de serem seguidas, à exceção daquela que impede a cobiça à mulher do próximo, principalmente quando o próximo estiver distante.
Havia feito um mundo perfeito, com animais, plantas e paisagens maravilhosas. Para quebrar a monotonia, algumas tempestades e terremotos refaziam a cena, quando se tornava muito humana.
Deve ter faltado algum ingrediente, pois uma só costela não foi suficiente para gerar populações que soubessem aproveitar tudo o que havia criado. Por obra do outro poderoso, começaram as guerras, as mortes, as afrontas à natureza e o desrespeito a outros animais e aves.
Começaram a eleger os mais desonestos, e a intolerância imperou. Agora que a confusão foi armada, resta esperar que saiam da crise pelos próprios meios.
Suspendi o recebimento de pedidos e a feitura de milagres. Quando acordei, estava cansado. Ser Deus, ainda que em sonho, não é fácil.
O autor é engenheiro agrônomo e advogado, aposentado.
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É fundador e um dos editores do Jornal Cultural ROL e do Internet Jornal. Foi presidente do IHGGI – Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga por três anos. fundou o MIS – Museu da Imagem e do Som de Itapetininga, do qual é seu secretário até hoje, do INICS – Instituto Nossa Itapetininga Cidade Sustentável e do Instituto Julio Prestes. Atualmente é conselheiro da AIL – Academia Itapetiningana de Letras.