julho 07, 2024
Não posso
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Paulo Roberto Costa: 'Um operário na noite'

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“Fico a imaginar em que estaria pensando… Que mil pensamentos mirabolantes estariam agora, em turbilhões de ideias, sensações e emoções a rodar em sua mente. Ou, talvez, somente o vazio da indiferença e resignação.”

 

Quase meia-noite. Daqui da minha janela, protegido da noite e do frio deste inverno que já se faz anunciar, posso vê-lo, sentado na calçada, sentado no mundo. Fico um pouco assustado com a solidão da sua imagem. A pequena e insuficiente fogueira ao seu lado, talvez um pouco de álcool numa lata. E seu olhar fixo nas chamas. O vento a remexer seus cabelos sem interromper sequer por um instante o vazio do seu olhar.

Fico a imaginar em que estaria pensando… Que mil pensamentos mirabolantes estariam agora, em turbilhões de ideias, sensações e emoções a rodar em sua mente. Ou, talvez, somente o vazio da indiferença e resignação. Os poucos carros que passam pela rua, solitária a esta hora, não mais o perturbam. Sei que teve que conviver com eles durante o dia todo, passando a poucos passos de si, enquanto enterrava febrilmente a picareta no asfalto duro e quente, em seu trabalho de aparente insignificância. Deve ter tido um dia estafante. Mas sua imagem! Ah, sua imagem! Não retrata apenas a fadiga, mas também uma vida que eu mal posso compreender.

Lembro-me desses dias todos em que ele esteve ali, matraqueando a sua britadeira, jogando o entulho no caminhão, escavando o mundo como se quisesse atravessá-lo de ponta a ponta, e uma infinidade de outras tarefas. Eu pensava que não ia suportar todo o barulho. Todos esses dias… Para mim, um empecilho a mais na vida, pois sabia que teria que ouvi-lo até altas horas da noite, nos momentos que sempre reservo para lutar com meus monstros e fantasmas. Mas, agora…, ali está ele, ao lado do seu pequeno fogo, tentando se aquecer um pouco, à espera, talvez, da mudança de turno, e eu, neste momento, já não consigo sentir raiva dele. Noto que o serviço está quase terminado. As galerias estão fechadas, os tubos de concreto estão enterrados como indigentes desconhecidos, os tapumes que escondiam a feiura da cirurgia na rua para implante de mais uma artéria foram aos poucos sendo retirados. Imagino, então, que talvez amanhã eu já não o veja mais e…, acho que agora vou sentir sua falta.

De certa forma, somos parceiros da mesma solidão desta noite fria; distantes, diferentes é verdade, mas, de certa forma, parceiros nesses caminhos da vida. Minha solidão, porém, parece tão insignificante agora!

É… Sua chama agora se apagou. Ele parece nem notar. Nem mesmo a gritaria de alguns mendigos alucinados parece sequer afetá-lo. Meu Deus! Não sei o que eu daria para conhecer um pouco dele; para saber por onde andam seus pensamentos, num desejo quase que vital para mim, como se isso trouxesse luz às minhas próprias dúvidas e elucidasse meus próprios problemas. Questiono-me até, porque não correr até a rua encontrá-lo, sentar-me ao seu lado e… Não, sei que existe algo de sagrado na solidão humana. Elas variam de homem para homem, mas cada um a tem quase que como um bem, uma mestra, como um mal necessário para sua evolução, e interrompê-la seria quase que um sacrilégio.

Saio de perto da janela, recolho-me aos meus próprios pensamentos e tento esquecê-lo, embora saiba que essa visão não mais me deixará, o que, no momento, parece até reconfortante…

Sergio Diniz da Costa
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