A NARRATIVA DO GOLPE TEM DE CONTINUAR
EXATAMENTE ONDE JÁ ESTAVA: NA LIXEIRA DA HISTÓRIA
O Oscar não é, nem nunca foi, uma premiação voltada para o reconhecimento de méritos artísticos. Está mais para uma festa de fim de ano de grande empresa.
A escolha dos ganhadores da estatueta cabe a profissionais da indústria do cinema: atores, diretores, roteiristas, designers, maquiadores, técnicos de som, executivos, etc.
A visão da maioria deles é a do mundo dos negócios, daí a frequência com que, nas principais categorias, notáveis obras-primas como Cidadão Kane têm sido preteridas em favor de amenidades que tão-somente faturaram alto nas bilheterias (A volta ao mundo em 80 dias, p. ex.).
Dos troféus de cinema cujos agraciados têm motivo reais para orgulhar-se, os principais, claro, são os de Cannes. Mas, eternos colonizados, os brasileiros praticamente ignoramos Cannes e somos presas fáceis do mesmerizante marketing estadunidense, deslumbrando-nos com o evento brega-chique que a Globo transmite todos os anos.
Ainda assim, o que sempre contou para nós foram as categorias de melhor filme, melhor(es) ator(es) e, vá lá, melhor diretor. A importância desmesurada que desta vez se atribuiu ao melhor documentário se deveu apenas a fatores políticos. E se constituiu num total equívoco.
Artisticamente, a transposição da narrativa do golpe petista para as telas foi tendenciosa e panfletária demais, do tipo que arranca aplausos dos que nela já acreditavam e não convence ninguém que tivesse dúvidas.
Politicamente, porque tentou fazer dar certo na arte o que fracassou de forma acachapante na vida real, não passando, enfim, de um jus sperniandi travestido de documentário.
Grupos de interesses se articulando para derrubar governos existem praticamente o tempo todo. Obtêm sucesso contra governos fragilizados e perdem tempo contra governos sólidos. É simples assim.
Dos fatos que explicam o defenestramento de Dilma Rousseff, os principais foram estes:
— a desideologização do PT, que sua ala majoritária, com Lula à frente, promove e impulsiona desde a década de 1980, expurgando as tendências mais combativas; abrindo as portas do partido indiscriminadamente para todos os ambiciosos obcecados em subir na vida de qualquer maneira; e direcionando a atuação partidária, cada vez mais, para as batalhas eleitorais contra a direita, de preferência às lutas sociais contra o capitalismo;
— a política econômica catastrófica que Dilma adotou no seu primeiro governo, quando tentou exumar o nacional-desenvolvimentismo da década de 1950 (alavancar o crescimento da economia à base de investimentos estatais) e incubou uma terrível recessão;
— a tentativa que ela fez de remediar a lambança no seu segundo mandato, entregando o comando da economia para o neoliberal Joaquim Levy, que, claro, acabou sendo abatido pelo fogo amigo dos petistas que discordavam de tal guinada de 180º (repetindo, aliás, o que acontecera no Governo João Goulart, mas Dilma parece ter cabulado as aulas de História…);
— o abandono dos jovens manifestantes de junho de 2013 à própria sorte, permitindo que fossem massacrados pelos governadores reacionários e judiciários estaduais, idem; e
— a insistência em travar até o fim uma luta que já estava perdida desde o dia 18 de abril de 2016, quando foi ultrapassada a barreira decisiva para o impeachment (a necessidade de aprovação da abertura do processo por parte de dois terços dos deputados federais), quando bem melhor teria sido renunciar de imediato e possibilitar um contra-ataque na linha das diretas-já, mediante o qual a esquerda, pelo menos, acumularia forças, ao invés de passar o tempo todo as perdendo na defensiva.
Tudo isso eu apontei quando ainda havia tempo hábil para o PT seguir outros caminhos, mas o Titanic petista preferiu continuar sempre rumando na direção do iceberg, até que o encontrou.
E nos ficou devendo não uma autocrítica flagelante (como seus dirigentes alegam, de má fé, para iludir os desinformados) mas uma autocrítica segundo a tradição da esquerda: a avaliação dos erros pessoais e coletivos que determinaram grandes derrotas, a definição de novas linhas de atuação que as evitem no futuro e a apuração das responsabilidades dos dirigentes que concorreram diretamente para os desastres.
Ou seja, as autocríticas da esquerda objetivam extrair e aplicar as duras lições recebidas da História, não rasgar as vestes como os judeus fazem nas tragédias.
E uma autocrítica de esquerda é fundamental para se virar a página do desprestígio que a péssima condução da política econômica sob Dilma e o progressivo abandono da moral revolucionária à medida que o PT aumentava seu poder acarretaram para toda a esquerda, praticamente imobilizando-a desde a consumação do impeachment, enquanto a direita deitava e rolava.
Caracterizar o impeachment como golpe sempre foi uma forma de o PT fugir do debate fundamental: como e por que se desmoralizou tanto a ponto de perder até as ruas, tornando-se presa fácil para a direita? Pois só admitindo que houve erros — e foram enormes! E foram crassos! — é que poderá começar a acertar doravante e conseguir, ao poucos, reconquistar o apoio popular perdido.
A narrativa do golpe tem de continuar exatamente onde já estava: na lixeira da História. (Celso Lungaretti)
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É fundador e um dos editores do Jornal Cultural ROL e do Internet Jornal. Foi presidente do IHGGI – Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga por três anos. fundou o MIS – Museu da Imagem e do Som de Itapetininga, do qual é seu secretário até hoje, do INICS – Instituto Nossa Itapetininga Cidade Sustentável e do Instituto Julio Prestes. Atualmente é conselheiro da AIL – Academia Itapetiningana de Letras.