Queimando livros
Era para ser ficção. Mas a realidade nos mostra que a sanha de estabelecer “o que pode” e “o que não pode” ser lido é daqueles monstros que nunca está bem morto. Mal se superou o episódio da apreensão de livros na Bienal do Livro do Rio de Janeiro do ano passado, e nos deparamos, atônitos, com uma renovada prática, ainda mais intensa: no recente caso ocorrido em Rondônia, um “memorando-circular” da Secretaria de Educação determinava o recolhimento de dezenas de títulos, sob o argumento de trazerem “conteúdos inadequados para crianças e adolescentes”.
A primeira indagação que surge é: o que de tão impróprio haveria em clássicos como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, O Castelo, de Kafka, nos poemas de Ferreira Gullar, ou nos contos de Edgard Allan Poe – para mencionarmos apenas algumas das obras que constavam nesse moderno “índice de livros proibidos”?
Seria a excelência literária das obras – seja pelos aspectos estéticos, seja pelo conteúdo que faz pensar – o que torna aqueles livros “inadequados”? Para usar um trocadilho, parece mesmo uma situação kafkiana, que nem mesmo o defunto-autor machadiano poderia, do Além, compreender.
Embora se tenha tornado lugar-comum nos debates sobre tais episódios, é impossível não ver neles estampados, com crueldade que supera a ficcional, a figura da polícia do pensamento, do 1984 de George Orwell, e o horror paradoxal de se ter bombeiros incendiando livros, do Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Mas há muitas formas de “queimar” livros – e algumas delas dispensam a literalidade do uso de fogo.
Por que a Arte em geral, e a Literatura em particular, sempre são vistas como “inimigas” por alguns, é algo que fica claro nesses episódios. “Com livros podemos transcender a platitude de nosso cotidiano, conhecer lugares aos quais nunca conseguiríamos ir. Através das personagens conseguimos observar o mundo com outros olhos, saboreando vidas que não as nossas e, assim, melhor entender os que nos cercam” – diz um personagem do meu romance O silêncio dos livros, lançado, sintomaticamente, em meados de 2019.
O (tragicamente) curioso, neste caso, é que o personagem está preso por “contrabandear” livros e servirá de mestre, pelos caminhos da Literatura, a outro preso – e eis que, enquanto escrevo este texto, tomo conhecimento de que livros encaminhados gratuitamente para leitura em presídios paulistas foram vetados – a lista inclui obras de laureados com o Nobel de Literatura, como Garcia Márquez e Albert Camus, e da vencedora do Pulitzer Harper Lee.
No universo distópico desenhado em meu romance, os livros são proibidos por serem considerados “antidemocráticos” – numa distorção absurda do significado de democracia, que passa a ser escudo para a intolerância, para a incapacidade de aceitação dos que pensam diferente. Era para ser ficção…
Escritor com estudos em Fotografia, História do Cinema e História da Arte.
Doutor em Direito (Portugal), é Promotor de Justiça em SP.
Autor de O silêncio dos livros (romance), Naufrágios (contos e poemas) e de obra jurídica.
Foi Professor de pós-graduação no GV/Law da FGV/SP.
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Natural de Sorocaba (SP), é escritor, poeta, revisor de livros e Editor-Chefe do Jornal Cultural ROL. Acadêmico Benemérito e Efetivo da FEBACLA; membro fundador da Academia de Letras de São Pedro da Aldeia – ALSPA e do Núcleo Artístico e Literário de Luanda – Angola e membro da Academia dos Intelectuais e Escritores do Brasil – AIEB. Autor de 8 livros. Jurado de concursos literários. Recebeu, dentre várias honrarias: pelo Supremo Consistório Internacional dos Embaixadores da Paz, o título Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça; pela Augustíssima e Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente o título de Conde; pela Soberana Ordem da Coroa de Gotland, o título de Cavaleiro Comendador; pela Real Ordem dos Cavaleiros Sarmathianos, o título de Benfeitor das Ciências, Letras e Artes; pela FEBACLA: Medalha Notório Saber Cultural, Comenda Láurea Acadêmica Qualidade de Ouro, Comenda Ativista da Cultura Nacional; Comenda Baluarte da Literatura Nacional e Chanceler da Cultura Nacional; pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos os títulos de Doutor Honoris Causa em Literatura, Ciências Sociais e Comunicação Social. Prêmio Cidadão de Ouro 2024