O adeus ao maestro Ennio Morricone
Quando o cineasta Sérgio Leone inaugurou o subgênero do western spaghetti, em 1964, com o filme “Por um punhado de dólares” (Per un pugno di dollari), trouxe novidades que iam do enquadramento (os famosos closes no rosto dos atores, aumentando a dramaticidade da representação) ao ritmo do filme e as paisagens, com locações na região espanhola de Almeria. Mas um dos elementos que também ajudou a definir a caracterização dos filmes de faroeste italianos foi a trilha musical. E, sem dúvidas, o maior responsável por essa parte foi o maestro Ennio Morricone.
Sendo novidade, enquanto produção cinematográfica, o filme “Por um punhado de dólares”, com um baixo orçamento conseguiu arrebatar aplausos de público e crítica. No entanto, em sua primeira versão, “escondeu” o nome do diretor Sérgio Leone (que assinou a película como Bob Robertson), do ator italiano Gian Maria Volonté (que figurou como John Wells) e do insigne maestro Ennio Morricone que apareceu como “Dan Savio”.
O sucesso, porém, revelou uma parceria de sucesso entre o diretor e o compositor das trilhas musicais. Ennio reinventou a música de filmes de faroeste, trazendo elementos inusitados como assobios, trombetas, gritos, sinos e tantos outros ornamentos sonoros que fizeram de sua música uma escola para outros compositores do gênero como Francesco de Masi. Uma sutileza, talvez despercebida pela maioria, é que esses elementos remetem a grupos e povos subalternizados – como são os icônicos personagens desses filmes – como os mexicanos, os mestiços, os indígenas, os pobres. Talvez seja esse o motivo pelo qual a música de Ennio Morricone nos filmes de faroeste italiano dialogue tão profundamente com os nossos arquétipos.
Basta fazer uma breve pesquisa em canais de vídeos como o Youtube para verificar a grande ocorrência de interpretações que vão desde frequentadores de bares (muito próprio para o Bang-Bang à italiana) a bandas e orquestras. A intersecção da música com o filme é tão estreita que uma referencia a outra. E, de certa maneira, escutar as composições de Ennio Morricone estimula, em demasia, a vontade de assistir a esses filmes.
Com a divulgação do trabalho do maestro nos filmes de Sérgio Leone, logo outros diretores o contrataram para compor trilhas musicais. Outro grande diretor do western spaghetti, Sérgio Corbucci, por exemplo, chamou Ennio para compor a trilha do filme “Vamos a matar, compañeros!”, “Os violentos vão para o inferno”, entre outros. Compôs músicas para Dan Taylor (“O Exército de 5 homens”), Sérgio Leone (“Por uns dólares a mais”, “O bom, o mau e o feio”, “Era uma vez no Oeste”, “Era uma vez na América”), Roland Joffé (“A Missão), Giuseppe Tornatore (“Cinema Paradiso”), Brian De Palma (“Os intocáveis”), e Quentin Tarantino (“Os oito odiados”).
Ennio Morricone compôs trilhas musicais para cerca de 500 filmes, de todos os gêneros e de diversas nacionalidades. Apesar de várias indicações, Ennio ganhou um Oscar, o troféu da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, somente em 2007 pelo conjunto da sua obra, sendo agraciado com uma segunda estatueta em 2016 pela trilha de “Os oito odiados”.
Morricone faleceu nesta semana, no início do dia 6 de julho de 2020, por complicações decorrentes de uma fratura no fêmur. Consciente e em paz, Ennio Morricone escreveu para si um obituário, emocionante texto escrito por um homem sincero e humilde: “Ennio Morricone está morto. Anuncio a todos os amigos que sempre estiveram próximos de mim e também aos que estão um pouco distantes e os saúdo com muito carinho. Impossível nomear a todos. Mas uma lembrança especial vai para Peppuccio e Roberta, amigos fraternos muito presentes nos últimos anos de nossa vida. Há apenas uma razão que me leva a cumprimentar todos assim e a ter um funeral privado: não quero incomodá-los. Saúdo calorosamente Inês, Laura, Sara, Enzo e Norbert por terem compartilhado grande parte da minha vida comigo e com minha família. Quero lembrar com carinho as minhas irmãs Adriana, Maria, Franca e seus entes queridos e que elas saibam o quanto eu as amava. Uma saudação completa, intensa e profunda aos meus filhos Marco, Alessandra, Andrea, Giovanni, minha nora Monica e aos meus netos Francesca, Valentina, Francesco e Luca. Espero que eles entendam o quanto eu os amava. Por último mas não menos importante (Maria). Renovo a você o extraordinário amor que nos uniu e que lamento abandonar. Para você, o adeus mais doloroso.”
Um gênio que fará muita falta neste mundo assolado pela ignorância e falta de cultura. Vá em paz, maestro! Nesta terra, você cumpriu o bom combate.
Carlos Carvalho Cavalheiro
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos