Carlos Carvalho Cavalheiro:
‘O admirável mundo de João de Camargo’
João de Camargo foi um ex-escravizado que no início do século XX construiu uma capela na estrada da Água Vermelha, município de Sorocaba, no Estado de São Paulo (Brasil) e deu início a um culto que aparentemente mesclava tradições africanas com catolicismo popular.
Diz o memorialista Antônio Francisco Gaspar que “em princípios de 1906 era empregado na olaria de Elias Monteiro, na ‘Água Vermelha’, um preto ainda moço por nome João de Camargo” (Gaspar, 1925, p. 23). Nessa ocasião, teria João de Camargo recebido da “espiritualidade” uma missão que seria a construção da igreja “longe do bulício da cidade, distante das orgias e das iniquidades […] para o fim de prodigalizar benefícios àqueles que deles necessitarem” (Gaspar, 1925, p. 26).
João de Camargo, então, construiu a sua capela e começou a atender aos necessitados, dando-lhes conforto com seus conselhos, mas, também, promovendo curas milagrosas e usando de seus dons para a promoção do bem. Como afirmou o escritor e folclorista Bene Cleto, o taumaturgo João de Camargo “até sua morte, em 1942, não cessou um só dia em fazer o bem a seus semelhantes, de sanar suas dores – fossem elas do corpo ou do espírito” (Cleto, 2020, p. 43).
Porém, além de promover curas e atendimento aos necessitados, João de Camargo foi uma liderança comunitária. No entorno de sua Igreja surgiu, organizado por ele mesmo, um bairro com estrutura de casas de aluguel, de Hotéis, armazéns e outros serviços. O terreno no qual esse bairro começou a se formar era propriedade doada a João de Camargo por seu primo Pedro de Camargo. Nessa localidade, as manifestações culturais de origem africana ou afro-brasileiras eram permitidas, ao contrário do que ocorria na região central de Sorocaba, onde tais manifestações eram reprimidas pela polícia e pela vigilância dos grupos de poder e tomadores de decisão (Cavalheiro, 2020).
Bastante sintomático foi o esforço de João de Camargo em constituir uma Banda musical e construir um prédio para abrigar uma escola. Assim, promoveu a educação e a oportunidade de trabalho digno para pobres e negros. Em uma época muito próxima ao fim da escravidão, a exclusão social dos afrodescendentes era visível e esperada. O próprio João de Camargo, ex-escravizado, analfabeto e quase que sem qualificação profissional, teve que se sujeitar a trabalhos grosseiros, pesados e mal remunerados.
Obviamente que João de Camargo foi perseguido. Em 1913, chegou a ser preso e processado por curandeirismo (mesmo que o objeto principal da denúncia do promotor público fosse o ajuntamento de pessoas em torno da igreja). Assistido pelo advogado Juvenal Parada, que promoveu uma qualificada defesa, João de Camargo foi absolvido. Mas, por longos anos sofreu a discriminação e o preconceito social.
Ocorre que a burguesia de Sorocaba tinha um projeto de cidade sintetizado no epíteto de Manchester Paulista: uma associação com a cidade industrial inglesa, símbolo de progresso capitalista. A esse projeto concorria o território negro e caipira criado por João de Camargo (Cavalheiro, 2020).
Em 1929, um relatório da cidade de Sorocaba ao Inspetor Chefe apresenta João de Camargo como um “caso typico de curandeirismo, nos moldes de um ‘Antônio Conselheiro’”… (Cavalheiro, 2020, p. 74). Ora, Antônio Conselheiro foi o líder messiânico que, juntamente com os seus seguidores, defendeu a localidade chamada de Canudos dos ataques das tropas federais brasileiras republicanas, cujo entendimento era de que aquela comunidade era um antro de fanáticos e desordeiros.
João de Camargo faleceu em 28 de setembro de 1942 e com o passar dos anos sua imagem foi sendo modificada, especialmente nos textos jornalísticos. Hoje ele é interpretado como um benfeitor, um líder religioso e comunitário, um “santo”.
E a sua igreja é um local onde o ecumenismo e o ecletismo religioso de fato ocorre.
Tradições religiosas que se mesclam
À primeira vista, parece um caos. Depois, a ordem vai se estabelecendo e cria a harmonia do ambiente. A multiplicidade de imagens de tradições tão diferentes (como kardecistas, candomblecistas, umbandistas, católicas, esotéricas, orientalistas…) se miscigenam, e como numa mistura de diversos líquidos, se decantam e encantam até atingir a perfeita amálgama.
Na igreja de João de Camargo (oficialmente Igreja de Nosso Senhor Jesus do Bonfim), em cada nicho e em cada espaço há imagens de orixás, de entidades da umbanda (como Maria Padilha, Zé Pelintra, Caboclos e Pretos-Velhos), orixás do candomblé, santos católicos, santos populares (como Padre Cícero, Antoninho Marmo da Rocha, Menina Julieta…), mestres juremeiros, deuses hindus, e até mesmo imagens de Buda.
Para completar o sentido eclético do lugar, nas paredes é possível encontrar fotografias e desenhos de autoridades religiosas e políticas como Getúlio Vargas, Papa João Paulo II, Dr. Ferreira Braga (um político local do passado) e até Allan Kardec (codificador do Espiritismo).
Aparentemente, essa mescla de tradições religiosas – em consonância com personalidades históricas e lideranças políticas – não é uma exclusividade da Igreja de João de Camargo. Possivelmente, seja até mesmo um traço cultural de origem africana que não promove a separação entre o sagrado e o mundo dos seres humanos. E nem mesmo se preocupa com uma questão que Peter Berger levantou: a do mercado religioso.
Para esse sociólogo, o fim das religiões oficiais (impostas pelos governos, sobretudo pelas monarquias absolutistas), propiciou a liberdade de escolha. Assim, as religiões acabam por disputar fiéis dentro de uma lógica de mercado. Daí a expressão “mercado religioso” (Beger, 2009).
No ano de 1958, o escritor Aldous Huxley visitou o Brasil. Nessa visita, na então capital do país, a cidade do Rio de Janeiro, ele foi levado a um terreiro de macumba, nome genérico dado a algumas das tradições religiosas afro-brasileiras. O pesquisador Renato Ortiz encontrou uma nota no jornal paulistano “O Estado de S. Paulo” que descreveu essa visita com um certo horror e vergonha, pois, de acordo com o redator, tais manifestações eram testemunhas de nosso “atraso”.
“É profundamente humilhante para todos nós, brasileiros, que o escritor Aldous Huxley tenha podido assistir, em pleno coração do Rio de Janeiro, a uma cerimônia de macumba. Não apenas porque alguns pretensos intelectuais encaminhassem o famoso autor de Admirável Mundo Novo, para o morro do Salgueiro. Mas, pela simples e única razão de ser ainda possível, em mil novecentos e cinquenta e oito, quando caminhamos em plena era atômica não se sabe se para o cataclismo, a realização de torpezas tais na própria capital da República”. Assim, de acordo com Ortiz, a nota jornalística salienta o preconceito em relação às tradições afro-brasileiras na metade do século XX.
Mas o que interessa a este artigo é o trecho em que o repórter anota uma observação que se coaduna com o que esteticamente ocorre dentro a igreja de João de Camargo:
“[…] sobre um altar, estavam juntos imagens de santos católicos, orixás, fetiches africanos e ameríndios, fotografias de políticos, estampas de Tiradentes, figuras de Buda e de Zumbi dos Palmares, além de cerâmicas de bichos, conjunto este que impressionou o escritor inglês. As danças e cantos que seguiram, interrompidos a meio pelo ‘Pai de santo’ para o ‘abraço duplo ao visitante’, prosseguiram depois dedicados a este” (Ortiz, 1999, p. 200).
Esse é um indício de que muitos cultos afro-brasileiros compuseram seus espaços com essa estética que mistura elementos de várias dimensões da vida humana, desde o sagrado, passando pelo político e pelo mítico / heroico.
No entanto, com o passar dos anos, essa estética foi sendo modificada e, atualmente, não é mais comumente vista nos terreiros das religiões afro-brasileiras. Por isso, a preservação da Igreja de João de Camargo é importante, porquanto é um testemunho vivo de uma prática – ética e estética – que deixou de existir. É, possivelmente, um exemplar único. Um patrimônio para todos nós.
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Referências:
Berger, Peter L. O dossel sagrado. São Paulo: Paulus, 2009.
Cavalheiro, Carlos Carvalho. João de Camargo, o Homem da Água Vermelha. Maringá (PR): Editora A. R. Publisher, 2020.
Cleto, Bene. Causos do Leôncio e outros causos. Sorocaba: Academia Sorocabana de Letras, 2020.
Gaspar, Antônio Francisco. O Mystério da Água Vermelha. Sorocaba: Do Autor, 1925.
Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. São Paulo: Brasiliense, 1999.
Carlos Carvalho Cavalheiro
carlosccavalheiro@gmail.com
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos