O inferno que me habita
Ontem eu apanhei. Não, é isso, você escutou bem. Não se afaste, nem diga nada, o terror não tem nome. Hoje sou isto que você vê, a sua expressão é o espelho do meu horror. Sou mulher que aos trinta e cinco anos não conquistou a autonomia, sobre sua vida, seus desejos. Hoje, somente por hoje, reservo meu lugar de fala para invadir sua vida confortável. Depois volto para meu lugar escondido nas sombras do medo e da humilhação. Nada mudará, somente a minha voz soa frágil nesse mundo barulhento de dessemelhanças. São oito anos, conto pra você em dez minutos é rápido. Depois esqueça.
Meu filho está na escola. Às vezes, gostaria que ele passasse mais tempo lá. Seria poupado da dor de não poder fazer nada. Ele tem seis anos, é tímido e assustado, permanece jogando games por horas seguidas, principalmente á noite, quando o pai dele retorna para casa. Trememos quando ouvimos a chave e o movimento da maçaneta. Entramos num filme onde a porta é o limite entre a vida e a destruição dos nossos sonhos. O suspense é porque não haverá uma terceira opção. Tudo perdura em malabares emocional num estreito fio entre estar vivo e estar morto. Você pode não acreditar mas eu me casei , na época tinha 27 anos, com o homem mais gentil que conheci. Tinha palavras amenas, um olhar de quem compreendia os subterrâneos da alma humana. Tão diferente da personalidade autoritária e decadente do meu pai. E eu subjugava minha mãe, figura complacente, submissa, mas extremamente carinhosa com os filhos. Olha como a minha vida é uma tangencia de histórias já contadas. Como nos repetimos como vidas cruzadas, num eterno exorcismo das criaturas que nos possuem tão intimamente. Mas… Ah sim, ele era realmente um farol na noite escura, apontando a direção e os perigos, e eu o segui, o segui até aqui. Mas, essa pessoa com quem me casei, após dois anos, foi se fragmentando como, rebocos de parede quem caem esfarinhando ao chão, revelando o acabamento grosseiro do tijolo em seu interior. Sua voz foi ficando cada vez mais alta, os gestos mais bruscos, o olhar vazio igualando-se a um objeto qualquer, sem modulações. Não demorou muito para que recebesse o primeiro tapa, depois de uma festa, onde desconfiou de que meus olhos haviam encontrado os olhos atrevidos de outra pessoa. Perdi o meu amor por ele, definitivamente aí. O que sobrou de mim após tantas agressões é essa confidência roubada dos meus segredos; e se aqui estou diante de uma assistente social é porque ao longo do tempo também perdi o amor por mim, ou melhor, dizendo, e tentando responder á sua pergunta, não sei mais quem é esta que está sentada em sua frente, pedindo ajuda para ser restituída aos seus próprios sentires. Desculpe, se há pouco a tratei tão mau, é que fiquei reativa á qualquer tentativa de intrusão, mas perdi a noção do que seja intrusão e, portanto, pequenos gestos numa sensibilidade estraçalhada são interpretados como alguém ausentando o outro (a mim) de seus direitos.
Eu não quero contar quantas vezes, como e onde sofri as agressões, quero dizer da dor de ver meu filho sofrendo, quero dizer que as marcas que carrego em meu corpo são pequenos cortes perto da retaliação que carrego dentro de mim, estranhezas que compuseram meus dias destroçados; no início confusa, cheia de culpas, tentando encontrar em mim os erros a mim atribuídos, depois já sem defesas, humilhada, envergonhada por ser apenas uma mulher nascida sob o pecado de Eva. Assim, fomos nós localizadas dentro da grande culpa universal, provavelmente culpa inventada por homens que não amavam mulheres e precisavam de um acordo com Deus para o exercício da violência sobre seus corpos e seu projeto em “ser”. Estou aqui, tentando reaver o que sobrou de mim. Hoje vou embora com meu filho. Ainda humilhada, envergonhada, com muito medo do futuro, mas prossigo com uma certeza: vou procurar o amor dentro de mim, resgatar a minha história, a minha marca dentro das pessoas que acreditaram que posso ter um lugar no mundo e instrumentá-lo com o que aprendi. Ensinarei meu filho que uma mulher não precisa perder o seu rosto no espelho para que um homem se encontre com sua violência e a confunda com força, masculinidade. Não começarei do zero porque nem quando eu nasci comecei do zero. Quando chorei a primeira vez no colo de minha mãe, anunciei que não poderiam calar a minha voz e a minha dor. Eu vim para ser ouvida e ocupar o meu lugar, e sacramento aqui o meu choro do primeiro dia de minha vida. Obrigada e amanhã retorno para o meu segundo dia de vida, com sua ajuda! Como é mesmo o seu nome? O meu nome, meu nome é…
Tânia Orsi
taniaorsi1@gmail.com
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Natural de Sorocaba (SP), é escritor, poeta, revisor de livros e Editor-Chefe do Jornal Cultural ROL. Acadêmico Benemérito e Efetivo da FEBACLA; membro fundador da Academia de Letras de São Pedro da Aldeia – ALSPA e do Núcleo Artístico e Literário de Luanda – Angola e membro da Academia dos Intelectuais e Escritores do Brasil – AIEB. Autor de 8 livros. Jurado de concursos literários. Recebeu, dentre várias honrarias: pelo Supremo Consistório Internacional dos Embaixadores da Paz, o título Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça; pela Augustíssima e Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente o título de Conde; pela Soberana Ordem da Coroa de Gotland, o título de Cavaleiro Comendador; pela Real Ordem dos Cavaleiros Sarmathianos, o título de Benfeitor das Ciências, Letras e Artes; pela FEBACLA: Medalha Notório Saber Cultural, Comenda Láurea Acadêmica Qualidade de Ouro, Comenda Ativista da Cultura Nacional; Comenda Baluarte da Literatura Nacional e Chanceler da Cultura Nacional; pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos os títulos de Doutor Honoris Causa em Literatura, Ciências Sociais e Comunicação Social. Prêmio Cidadão de Ouro 2024