Provocações sobre o sentido da amizade e o amor
“Guarda teu amigo sob a chave de tua própria vida”
Shakespeare
Voltando o olhar para a etimologia da palavra “amigo”, observar-se-á uma derivação do latim amicus, significando “aquele que se ama”. Decerto, a relação de amizade pode ser qualificada como uma das mais belas de todas as interações; dois indivíduos que se escolhem a fim de partilharem uma história juntos. História, porque se têm as vivências distintas de ambos, uma vez que se tratam de seres dotados de individualidade, as quais se unirão em uma única, tal qual uma sinfonia por eles regida. Observa-se uma junção parcial de vidas e de momentos, eletiva, isto é, não mandatória, pois independe de predestinação de parentesco, relação esta que não por poucas vezes, perde o colorido quando justaposta à verdadeira amizade. O pensamento, a certeza de que o estado de solidão nunca será experimentado quando se pode contar com alguém. Clarice Lispector, escreve uma frase poderosíssima, cuja transcrição se mostra pertinente, segundo a qual: “Um amigo me chamou pra cuidar da dor dele, guardei a minha no bolso…e fui…”
A origem da palavra amigo, remete ao amor puro que emerge da afinidade sem contraprestação. Por isso, uma amizade, poder-se-ia dizer, funciona quase como um medidor de caráter. Explico. Num primeiro momento, é possível indagar: quem gostaria de estar junto de alguém que não emanasse, como se diz comumente “carga positiva” ou “boas vibrações”? Tal ponto nos faria interpretar que o reverso de tais vetores estariam classificados como negativos ou desabonares. Ora, boas pessoas podem apresentar, ou muitas vezes recender a “cargas negativas” e “vibrações ruins”, mas aqui imperioso questionar em quais aspectos aqueles sentimentos ou estados de espírito apresentariam suas formas. Com efeito, a felicidade não é um estado constante, e de forma símile, a dor e a angustia também não o são, de modo que essas interações devem ser compartilhadas pelos amigos, num misto de exultação face ao que é bom, e alento contrapondo ao que é ruim.
Muitas pessoas “ruins” em sua natureza, podem por muitas vezes cercarem-se de companhia. Mas aqui, indaga-se, qual o tipo de pessoa estaria inserido nesta companhia? E “companhia” como estado meramente reiterado – amizade por utilidade e por prazer, consoante se discorrerá adiante – poderia ser denominada amizade real/ideal? Á obviedade que não, quando se pensa nas diferentes versões ou roupagens do que se chama amizade. Aristóteles escreve no livro Ética a Nicômaco, obra dedicada a seu filho, que a amizade pode ser classificada em três tipos: segundo o prazer ou a agradável, segundo a utilidade, e segundo a virtude, esta terceira a qual seria considerada a amizade perfeita.
A primeira modalidade, a agradável, remete a um prazer social, partilhado por gostos e objetos de interesse que desperta contentamento e estímulo mútuos. A ligação segundo o pensamento Aristotélico, pautada na utilidade, associa-se à concepção de reciprocidade, ou seja, a troca de vantagens em uma busca pelo que é cômodo e vantajoso a ambos. Em outro espaço de abordagem, deparamo-nos com a amizade arrimada na virtude, delineando esta que seria a chamada “amizade perfeita”, pela qual objetiva-se o bem mútuo em virtude compartilhada, sentimentos e anseios partilhados por indivíduos bons e virtuosos em seu aspecto constitucional.
Acerca da amizade perfeita, Aristóteles escreveu: “não é possível ser amigo de muitos com perfeita amizade, do mesmo modo que não é possível estar apaixonado por muitos ao mesmo tempo. De fato, a amizade perfeita é como que um algo a mais, que por sua natureza pode acontecer somente em relação a uma pessoa; de fato, não é fácil que muitas pessoas agradem intensamente e ao mesmo tempo a uma mesma pessoa”. Decerto, as palavras do mestre de Estagira refletem a realidade, pois o ditado popular, sabiamente professa que os amigos verdadeiros podem ser contados nos dedos de uma mão, e nessa ordem de pensamentos, relevante se faz lembrar que Epicuro trabalha com a ideia de conquista da amizade, como a materialização da felicidade maior.
Certamente, na contemporaneidade, ápice da chamada modernidade líquida, conceito cunhado pelo filósofo e sociólogo polonês Zigmunt Balman, existe uma mutabilidade de valores, de instituições, de reações, de verdades, ou “versões”, que retratam cadeias de relacionamentos e situações cada vez mais efêmeras. Em meio a essa nova era, então contraposta à modernidade sólida, se encontra a amizade e suas diferentes concepções, inseridas em seu contexto político, filosófico, psicológico e sociológico. O homem como animal sociável – e por decorrência, fadado ou agraciado com a imperiosidade de convívio com seus pares – vai ao encontro da amizade como uma vertente política, a qual, poder-se-ia livremente atestar, supedaneado na lógica aristotélica, é indissociável da ideia de ética, e deve ser analisada em conjunto com a concepção de amor, a qual não é objeto principal da investigação que ora se propõe, mas merece breve tratamento pontual.
O amor, em suas diversas definições pode ser classificado, numa exposição breve, como: uma forma ou objeto do desejo, daquilo que não se tem (Eros); o nobre e o altruístico (Philia), o amor metafísico religioso (Ágape); o amor familiar, que povoa as interações de parentesco (Storge); aquele de feições egocêntricas (Narcisista); o amor idealizado, distante, cultivado (Platônico); além daquele patológico, obsessivo, destituído de proporcionalidade, (Mania), entre outros. À sombra desses conceitos, melhor se adéqua à proposição que neste ensaio se contempla, o amor Philia, pois em relação à amizade, inquestionavelmente se identificam as ideias de doação e abnegação, muito fortes nos escritos de Shopenhauer, quando abordando a concepção de amizade verdadeira e genuína. Em sua obra, o autor defende a aplicação de uma participação desinteressada e afastada do egoísmo, a fim de se alcançar o modelo de amizade virtuosa, similar à perfeita, definida por Aristóteles.
Caminhando para uma conclusão, relegando momentaneamente a vertente analítica dos grandes pensadores, envereda-se, aqui e agora, para uma reflexão voltada para a pop culture, numa passagem que reflete de forma sensível e abrangente tanto a ideia de amor e a ideia de amizade, dependendo da situação que se descortina, ou mesmo, se após tais reflexões, seria possível concebê-las de forma distinta. No celebrado filme de Quentin Tarantino, Pulp Fiction, há uma cena na qual os personagens de John Travolta e Uma Thurmam, Vincent e Mia, durante uma conversa de primeiro encontro, a jovem propõe que é possível saber quando se encontra alguém realmente especial, quando “se pode calar a boca e confortavelmente partilhar o silêncio”. Aqui, ecoa a reflexão.
Tal proposição nos inspira a interpretar que o real laço afetivo, seria aquele do qual nada se espera, ou nada se cobra, mas a tudo se doa, no qual existe a intimidade do conforto que brota da afinidade. Partilha-se a companhia de outrem e consequentemente o prazer que dela se obtém, ao mesmo tempo de forma sistemática, buscando o progresso emocional e pessoal de ambos, dentro daquele relacionamento e fora dele, ao passo que o indivíduo se entrega a tal curso de ação, de forma despretensiosa e impulsiva. Impulsiva, não irracional, na qual, em se tratando de amor, especialmente o amor romântico, coração se une a mente e mente se une a coração, formando um terceiro corpo, um ser aprimorado, resultante da amálgama de dois indivíduos.
Um amigo é aquele que está disposto a ouvir, sem a necessidade pronta de falar, a não ser para dar conforto. Aquele que quando fala, diz a verdade ainda que dura, expõe a realidade muitas vezes áspera, mas a entrega de forma terna e aveludada, anulando ou aliviando os pesares, os quais são substituídos por resiliência e confiança. Após este pequeno espaço de reflexão, propõe-se um exercício de análise e projeção. Pense em alguém que reflita em sua vida, os conceitos acima dissecados, cuja importância em sua trajetória, recente ou passada, são contínuos, em cumplicidade, companheirismo e cuidado. Aquele no qual, se percebe a realização do que por muito se identificou em um seriado de grande sucesso, sobre o tema objeto desse breve ensaio, Friends, no qual se ouvia ritmicamente na abertura daquele sitcom “I will be there for you…”, em livre transliteração: “eu estarei lá para você”, isto é, sempre que precisar, a qualquer momento, para qualquer coisa. Diga então quando estiver com essa pessoa: obrigado pela sua amizade, você é especial…Você tem alguém assim?
Marcus Hemerly
marcushemerly@gmail.com
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Nasceu em Cachoeiro de Itapemirim/ES, em 1989. Formado em Direito, é servidor do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. Autor da obra “Verso e Prosa: Excertos de Acertos”, originalmente publicada em formato físico, coautor em antologias poéticas e de contos. Membro de Academias Literárias, recebeu prêmios e comendas, tais como: “Prêmio Monteiro Lobato”, “Prêmio Cidade de São Pedro da Aldeia de Literatura”, “Grande Prêmio Internacional de Literatura Machado de Assis”, “Medalha Patrono das Letras e das Ciências, Dom Pedro II”, “Medalha Notório Saber Cultura” e foi um dos vencedores do concurso internacional de poesias “Covid Times Poetry” promovido pela ONG “WHD – World Humanitarian Drive”. Foi agraciado com o Título de Doutor Honoris Causa em Literatura, pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Históricos e Filosóficos, com a Comenda Olavo Bilac Príncipe dos Poetas, pela Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes (FEBACLA), o título de Cavaleiro Comendador da Ordem de Gotland, pela Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente, dentre outras honrarias. É colunista de cinema e literatura, contribuindo para sites e jornais eletrônicos