A opinião e a ética
A disseminação de redes sociais nos últimos anos permitiu às pessoas se apossarem de uma plataforma de exposição de suas ideias como nunca antes acontecera. Há poucas décadas, quando alguém quisesse expor um pensamento para um grande público deveria fazê-lo por meio de impressos: boletins, colunas de jornal, publicação de livros. Ainda assim, sem a garantia de que o texto seria, de fato, lido por muitos. Ou, então, participar de um programa televisionado ou gravar uma mídia de áudio, os chamados discos. E isso era para poucos.
Hoje em dia a rapidez com que se posta um texto na internet e o alcance de pessoas que esse recurso disponibiliza – uma pessoa do outro lado do planeta pode ler esse texto quase que imediatamente – tornou a exposição de pensamentos algo extraordinário.
No entanto, há algumas questões para se refletir. A primeira delas é que a intensa exposição e difusão de textos não garante a qualidade dos mesmos. O fato de ser fácil e, praticamente, sem qualquer censura prévia, torna a publicação algo banal. Com isso, as ocorrências de crimes e delitos tipificados só têm aumentado, mesmo depois do advento da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), implementada com a finalidade de regular o uso da internet no Brasil, estabelecendo princípios, direitos e deveres para os usuários da rede, assim como estabelecendo parâmetros para a atuação do Estado na repressão desses crimes.
Há, no Brasil, uma cultura de que a internet é um território sem leis. Assim, em postagens e comentários disponíveis nas redes sociais, as pessoas costumam agir como se não precisassem responder pelos seus atos, ignorando, inclusive, que o direito Constitucional da livre expressão está vinculado à responsabilidade por aquilo que se exprime, e, por isso, o texto legal veda o anonimato.
Além de crimes comumente encontrados nessas postagens – como injúria, calúnia e difamação – acresce-se, numa velocidade estonteante, outros delitos como o de difundir inverdades, as chamadas fake News. Quando se noticiou, por exemplo, que se estavam criando vacinas contra o coronavírus em laboratórios de várias partes do mundo, não faltaram vídeos de “especialistas” afirmando que havia um plano maléfico para modificar o DNA dos seres humanos, transformá-los em outros animais, exterminar parte da população mundial e outras asneiras que foram ouvidas e aceitas por quem se determinou a não ser vacinado em plena pandemia!
Há quem possa argumentar que se trata “apenas” da liberdade de opinião. Aliás, é o argumento mais utilizado no momento: “Esta é a minha opinião! Tenho direito à minha opinião!” Porém, esse não é um caso típico de exposição de opinião.
A opinião, se desassociada da ética, é inexistente. Não se pode qualificar de opinião a expressão de um pensamento que não respeita a ética, os valores humanos, os direitos e a dignidade de cada ser humano. Não é opinião colocar-se a favor da escravização do outro; não é questão de opinião difundir ideias de superioridade determinada pelo gradiente de cores da tez; não pode ser classificada como opinião a defesa à tortura, à ditadura, ao fascismo, ao autoritarismo, ao machismo, ao sexismo, enfim, a qualquer ideia que se contraponha ao direito inalienável do outro à sua existência com dignidade.
Opinião sem ética, não é opinião. É atrocidade. É assinar com sangue de vítimas o livro em que constam as assinaturas dos mais terríveis tiranos da História.
Infelizmente, os crimes disseminados pelos meios tecnológicos da informação e comunicação crescem assustadoramente no Brasil. A facilidade com que se produz um vídeo e o coloca à disposição do público tem instigado o uso das tecnologias disponíveis para a difusão de pronunciamentos que ferem os direitos humanos. Segundo o que se noticiou na imprensa em fevereiro deste ano, esse é o caso do deputado Daniel Silveira, que foi detido por fazer apologia ao AI-5 e a destituição de ministros do STF.[1]
Detentor da “imunidade parlamentar”, o deputado entendeu que esse era um direito que lhe cabia, ou seja, o de expressar o seu desejo pela reedição de um Ato Institucional que recrudesceu a ação da ditadura militar no Brasil, suspendendo os direitos civis de todas as pessoas. A partir da edição do AI-5, por exemplo, o lar deixou de ser inviolável e as prisões poderiam ocorrem mesmo sem formalização de culpa. Apesar de contraditório, o deputado extrapolou o uso de um direito – o da liberdade de expressão – para sugerir que esse direito não deveria existir… Coisas que acontecem no mundo da política brasileira. Já tivemos uma República – que pressupõe o atendimento das questões ligadas ao bem comum – que era Oligárquica (um governo dominado pelos interesses de um grupo).
Carlos Carvalho Cavalheiro
30.03.2021
[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/02/17/deputado-que-fez-video-com-apologia-ao-ai-5-e-defendeu-fechar-o-stf-passa-a-noite-detido-na-pf-no-rio.ghtml
- O admirável mundo de João de Camargo - 2 de maio de 2024
- No palco feminista - 26 de dezembro de 2023
- Um país sem cultura é um corpo sem alma - 9 de agosto de 2023
Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos