Uma janela para o Céu
O velório e sepultamento daquela senhora foi comovente. Participaram os parentes mais próximos, alguns amigos da família, o filho e o então marido, agora viúvo. Este, com a voz enfraquecida pela idade e embargada pela dor da perda daquela com quem foi casado por mais de sessenta anos, dela despediu-se com frases curtas e densas de sentimentos e um beijo na testa. O filho, também com voz embargada, assim também o fez e leu uma carta de despedida, a qual foi embora com ela. Assim foi sepultada aquela senhora, esposa e mãe querida e estimada por muitos da família.
– Pai, vamos embora para casa. Minha mãe está a caminho do Paraíso Celestial…
– Vamos, sim, quero descansar um pouco. Estas últimas horas foram difíceis de suportar. Ela descansou para sempre.
O tempo passou. A dor da perda da esposa e mãe atenuou, diminuiu e permitiu a ambos, pai e filho, ter vidas mais tranquilas, cujo dia a dia se tornou corriqueiro. Mas, o avanço da idade e as circunstâncias da viuvez cobraram seu preço ao pai do rapaz.
– Bom dia, filho! Ainda não se aprontou para ir ao trabalho?
– Hoje é domingo, pai. Não é dia de trabalho. Esqueceu?
– É mesmo. O que vai fazer hoje?
– Vamos andar um pouco pelo bairro? Assim a gente leva nosso cãozinho para passear conosco…
Pai e filho, juntos do cãozinho, saíram a passear pelo bairro. Era uma tarde ensolarada e com aquela brisa denunciante do frio outonal… Uma ótima tarde para um passeio caloroso entre ambos, em que trocaram ideias e opiniões sobre o tempo vivido e as notícias do presente, transmitidas pelos telejornais.
Os dias se passaram. O cãozinho divertia os dois, descontraía e estimulava vários passeios pelo bairro, sempre juntos. Nada de excepcional. Mas, a senilidade avançava na memória daquele senhor…
– Pai, o que você está fazendo com essa bermuda, camiseta sem manga, chapéu, meias e sapatos sociais? Vai sair?
– Quero ir na reunião do clube. Vai haver um almoço lá e quero participar.
– Essa reunião e almoço aconteceram na semana passada e você não quis ir, lembra-se? E troque de roupa. Essas são inadequadas. Aliás, essa camiseta é minha, eu a uso quando vou fazer ginástica…
Alguns dias após o filho levou o pai ao geriatra que atestou demência senil. Era preciso mais cuidados com ele, além de medicação apropriada. O filho contratou duas cuidadoras de idosos que se revezavam para auxiliá-lo no dia a dia:
– Olá, bom dia! Como meu pai passou nessa noite?
– Bom dia! Ele dormiu muito bem. Agora ele quer o café da manhã. Vou prepará-lo.
– O. K. Vou abrir a janela do quarto dele para entrar luz. Está um dia lindo, azul celestial e quente. Será bom para tomar um pouco de sol.
O filho abriu a janela e entrou a luz, o calor do sol e o brilho do céu, os quais compunham uma pintura sem igual, inatingível por qualquer artista ou pintor. Uma obra majestosa e divina que iluminava aquele ambiente e inebriava os olhos dos observadores. E ficou junto do pai enquanto a cuidadora preparava o café da manhã.
– Bom dia, pai! Como dormiu?
– Bem, graças a Deus. E você? Dormiu com sua namorada?
– Dormi sozinho. Não tenho mais namorada faz algum tempo… O dia está muito bonito, vamos passear um pouco à tarde?
– Sim, vamos.
– Quer ir ao shopping? Lá tem várias lojas, restaurantes e áreas de lazer. Será bom para você, inclusive ver o movimento das pessoas.
– Quero ir, sim.
Após o almoço o filho, o pai e uma das cuidadoras foram ao shopping center. Devido à idade muito avançada, o pai fez uso de uma cadeira de rodas. Viram várias lojas e vitrines. Passearam por vários lugares e pararam num quiosque para tomarem um cafezinho.
Num momento sublime, quase mágico, sem tremer as mãos o pai pegou na xícara do café e o degustou deliciosamente, sem se afogar. Assim também o fez com a barra de chocolate que acompanhava o café. Parecia que a enfermidade que o acometeu retroagia e que ele se recuperaria. Foi uma tarde maravilhosa. Todos voltaram felizes para casa.
Chegou o dia do aniversário. Mais um ano vivido, porém, sem a esposa ao lado. A falta dela não o impediu de comemorar a nova idade junto a alguns entes e parentes queridos que compareceram. Apagou as velas e, auxiliado pela cuidadora, fez o corte do bolo. Refrigerantes e salgadinhos compuseram o ambiente festivo.
Veio o segundo ano da viuvez. O passar do tempo o atingiu com ênfase: aquele senhor pareceu envelhecer mais do que o efeito do tempo, parecia ter corrido uns seis ou sete anos… Ele definhava paulatinamente, mesmo com o tratamento, os cuidados tidos pela cuidadora e pelo filho. O tempo cobra a vida e a vontade de viver…
Numa tarde em que não foram ao shopping a cuidadora, que estava na casa com ele e o filho, observou a inquietação dele e disse ao filho que ele estava mal. Saíram os três e foram ao hospital para ele ser examinado. O exame acusou pneumonia em um dos pulmões. Era grave e foi internado às pressas, naquele mesmo dia.
O filho pernoitou no hospital nessa mesma ocasião, e revezou os horários com as cuidadoras. Os três primeiros dias foram excepcionais e promissores. O pai do rapaz reagiu muito bem aos medicamentos e tudo indicava que receberia alta em três dias, no máximo. Bastava aguardar.
Passaram os dias e a alta médica não veio. Ao contrário, nas primeiras horas do décimo dia o filho fazia a pernoite junto ao pai e foi chamado pela médica de plantão.
– Olá, Doutora, boa noite. Ou bom dia. Não sei ao certo… Que notícia tem para me dar?
– Preciso dizer a você que seu pai não passará do dia de hoje. Infelizmente a pneumonia avançou e contaminou o outro pulmão. Ele não vai sobreviver…
A notícia caiu como uma bigorna. Ele sentiu o peso da perda que se aproximava. Não havia mais nada a fazer, senão aguardar o inevitável… Voltou ao quarto do pai e uma tristeza muito grande se abateu, chorou muito, até a exaustão, sem nada poder fazer para tê-lo de volta…
Após se recuperar, foi ao banheiro para lavar o rosto. Voltou e sentou-se em uma poltrona próxima da cama em que dormia o pai. Ele o observava com serenidade e, de repente, viu a mãe ao lado do pai, observando-o. Então o filho a chamou: “Mãe!”
Ela o viu sentado na poltrona, contornou a cama em que estava o marido, caminhou pelo quarto até desaparecer pela porta de entrada. O filho não saiu da poltrona nem foi atrás dela. Umas duas horas depois, mais um dia aclarou aquele quarto e uma das cuidadoras de idosos chegou para acompanhar o pai do rapaz:
– Como seu pai passou a noite?
– Dormiu a noite toda. Voltarei no começo da noite para ficar com ele. Até mais tarde.
– Até.
No início da noite o filho retornou ao hospital para aquela que seria a última pernoite. Ele ficou ao lado do pai, de mãos dadas com ele durante algumas horas. O filho alisava o parco cabelo branco e dizia, no ouvido dele, que foi um pai maravilhoso, magnífico, que o amava mais do que ele imaginava. Eram os momentos finais…
Subitamente, o filho foi acometido de um cochilo que o fez adormecer por alguns minutos, uns oito ou dez, não mais do que isso. Enquanto cochilava ao lado do pai, ouviu o aparelho de ar condicionado fazer muito barulho, como se houvesse uma turbina naquele quarto. Passados alguns poucos minutos, ocorreu um silêncio profundo. Parecia que o aparelho de ar condicionado tinha desligado. O filho acordou e olhou para o pai. Chamou por ele e percebeu que não mais respirava. O filho saiu às pressas e chamou a médica de plantão, que atestou a morte dele.
Aquele curto período em que o filho ouviu o ruidoso som foi, com certeza, o momento em que a mãe foi buscar o pai, que a chamou enquanto dormia ao lado do filho. O pai faleceu de mãos dadas ao lado do filho e foi embora de mãos dadas ao lado da mãe, ambos para o Paraíso Celestial.
Esta foi uma janela para o céu: a passagem da vida para a morte, que se abre como uma janela iluminada por uma luz mais forte do que aquela que iluminou o quarto do pai quando morava com o filho. Uma majestosa e divina luz que ilumina e conduz nossas almas para a vida eterna!
Marcelo Augusto Paiva Pereira
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Natural de São Paulo (SP), Marcelo Augusto Paiva Pereira é arquiteto e urbanista