novembro 22, 2024
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De Angola, José Bembo Manuel entrevista sua conterrânea, a escritora contemporânea Lady Book

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Lady Book é o pseudônimo de Ercídia E. Correia, uma jovem cuja escrita atrai leitores de todas as idades e é marcada por uma estética própria, demarcando-se da escrita-tipo de Angola

Existe todo um leque novo e versátil de escritores, que escrevem diferente da grande geração dos clássicos da literatura angolana.

O Jornal Cultural ROL, por meio da sessão Entrevistas ROLianas, traz uma conversa entre o colunista José Bembo Manuel e a escritora contemporânea angolana Lady Book, Pseudónimo de Ercídia Eslovaquia Correia. Cultora de um estilo próprio e único entre tantos bons artesãos das palavras. Suas obras estão publicadas em Angola, Brasil e Portugal.

Lady Book

José Bembo Manuel – O Jornal ROL agradece por ter aceitado o convite para esta entrevista. Apresente-se aos nossos leitores.

Lady Book: Pode ter certeza que o prazer é todo meu. Eu sou a Lady Book, uma jovem escritora angolana de 20 e poucos anos.

JBM – Quem é, afinal, Lady Book e como surgiu o desejo de mergulhar na escrita criativa?

LB – A Lady Book é a outra faceta da Ercídia Correia. É a autora das obras “Império”, “Império vs Irmandade” e o “Fardo de Amar”, publicada também no Brasil e em Portugal. Ela é uma autêntica sonhadora sempre mergulhada no mundo dos livros. Sou, antes de uma escritora, uma leitora voraz e ler é, sem dúvida, a coisa que eu mais amo fazer na vida. A escrita nasceu do meu desejo de contar as minhas próprias histórias e ser lida, pois sentia que tinha algo a dizer. Na verdade, ainda sinto que tenho muito a dizer. Esse desejo foi cada vez mais alimentado ao ler romances e contar as histórias para outras pessoas, porque sempre fui uma óptima contadora de histórias. Faço isso até hoje com o meu marido e com as minhas amigas mais próximas. Sempre conto-lhes histórias, afinal um escritor é, em sua essência, um óptimo contador de histórias, e isso sempre esteve em mim. Devo aqui precisar que minha mãe é a grande percursora da Ercídia como leitora e depois da Lady Book como escritora, ela sempre me comprou livros de historietas desde que eu era bem pequenina, sempre me contou histórias e sempre leu para mim antes de dormir quando podia. Cresci sabendo que o sonho dela era ser escritora e ela sempre incentivou isso em mim também. É seguro dizer que esse é o sonho dela tornado realidade através de mim, embora também seja o meu sonho.

JBM – Sabemos que vive em Cuba, onde foi para continuar os estudos em Medicina. Como se dá o processo criação dos teus textos dado o distanciamento da realidade que escreve? O que te inspira a escrever?

LB – Tudo me inspira a escrever. Absolutamente, qualquer coisa tem o potencial de provocar em mim o nascimento de uma história. Vou descartando as ideias e eliminando esses pensamentos ao longo do tempo e hoje lido melhor com isso. Antigamente, tinha sempre vários ficheiros words de pedaços de histórias. Quanto à primeira pergunta, tem sido um desafio, eu não vou mentir, os meus livros todos se situam em Luanda, especificamente nos bairros onde já vivi ou passei algum tempo e sempre tenho que lembrar a localização de tal bairro ou como está actualmente. Na escrita do original “Livremente amamos” – sem data prevista ainda para um lançamento – eu precisei perguntar para os meus colegas sobre rotas para chegar até à clínica ‘Endiama’, na Ilha de Luanda (risos).

JBM – No que se parecem a autora e a Ercídia, personagem e narradora da narrativa “Império”?

LB – Elas são muito sonhadoras. No momento da escrita do “Império”, ambas eram estudantes do curso de enfermagem. São também muito simpáticas e possuem muitas amigas. As duas amam muito. A Ercídia, como personagem do livro, é um pedaço muito grande de mim.

JBM – Que escritores influenciaram o teu processo artístico e como se deu essa influência?

LB – Pepetela é quem, sem dúvida, inspirou mais a minha vida literária. É também o meu escritor favorito. Sempre aprendo muito nos livros dele. O primeiro livro de ficção para adultos que li foi “As Aventuras de Ngunga”, e o meu livro favorito no mundo inteiro é o seu romance “Lueji, o Nascimento de um Império”. Com Pepetela, aprendi a não ter medo de contar histórias difíceis e pesadas, como fiz no “Fardo de Amar” e a não ter medo de dizer o que eu quero. Ambos brincamos muito com os nomes dos nossos personagens e acho que copiei isso dele. Embora nosso estilo de escrita seja bem diferente. Ele é mais do tipo que narra e conta um romance ao mesmo tempo na narrativa, desobedecendo a regra de nunca contar romances. E ele o faz na perfeição, com um equilíbrio que mais ninguém consegue. Eu não consigo fazer aquilo. (Risos). Eu narro romances, mas admiro muito o trabalho dele. Ele é um mestre para mim. Pedro Chagas Freitas também me inspirou. Os textos dele são muito emotivos, dolorosos e lindos. Sempre escreve sobre as emoções humanas e eu também. Temos isso em comum, embora eu considere que ainda não atingi a beleza que ele consegue aportar nos seus textos. Dorothy Koomson também me inspira muito. Tenho quase todos os livros da autora e ela me ensina a escrever com os pés no chão, posso fantasiar muito no “Império” porque esse é o rumo da saga, mas também passo sempre por panoramas e comportamentos reais angolanos. Noutros livros abordo questões mais sérias e sempre causas sociais. Isso aprendi nos livros na Dorothy. Ela é o amor da minha vida literária. Também amo o Paulo Coelho, os livros dele sempre me causam muitas emoções.

JBM – O processo ficcional de Angola está assente fundamentalmente na história tal como a de Pepetela. O que levou Lady Book a afastar-se dessa tendência?

LB – Acho que foi a influência de autores estrangeiros que eu comecei a ler desde muito pequena. Li muito Paulo Coelho, Emma Wildes, Dorothy, Sarah J. Maas, Lisa Keypas, Veronica Rooth, entre outros que escrevem diversos subgéneros como fantasia, romance histórico e até romances biográficos. Isso foi moldando o meu modo de narrar. Quando dei por mim, o meu estilo foi completamente diferente do de Pepetela e, consequentemente, do estilo angolano que é mais o ‘contar’ do que ‘narrar’. Eu sinto orgulho do meu estilo diferente, gosto dele. Gosto de saber que marco a diferença e que, no futuro, outras pessoas vão inspirar-se em mim também para criar novos estilos. Penso que começa uma nova geração a partir de mim e tenho orgulho nisso.

JBM – Houve uma tentativa de descrever a fragmentação de Angola e dos angolanos na construção das obras “Império” e “Império vs Irmandade”?

LB – No princípio não foi propositado, mas como é algo muito frequente em Angola, quase todos os angolanos são oriundos de famílias fragmentadas e têm amigos e primos que vêm de famílias fragmentadas. Acho que nós vivemos numa sociedade que é por si só fragmentada. Isso é onde nós vivemos e chega a ser quem nós somos. A evidência de jovens que têm famílias fragmentadas e que se envolvem no mundo do crime como consequência disso, quer pela busca de alimentação, meios de sobrevivência e as vezes até mesmo busca de segurança, quer pela pressão de grupo, como é o caso da personagem Renata no “Império”, é muito real e presente em Angola, principalmente na capital – Luanda. Acho que os dois livros foram uma chamada de atenção sobre algo que é ignorado ainda por vários pais. Muitos deles perdem o controlo dos filhos e depois preferem não se envolver, há pais que chegam a ser coniventes só para ter paz ou o mínimo de relação possível com esse filho. Para não citar aqui aqueles pais ou aquelas famílias cuja vida criminal do filho é mais uma fonte de renda em casa. E tal como a violência gera violência, filhos que vêm de famílias fragmentadas tendem a formar famílias fragmentadas e é um ciclo vicioso.

JBM – No livro “Império vs Irmandade”, vemos a ascensão dos protagonistas e personagens secundários ao nível de narrador. Trata-se de uma estratégia narrativa que procura dar voz e vez a personagens marginalizadas por um sistema político, que privilegia a elite?

LB – É possível. A história do “Império vs Irmandade” saiu de forma muito espontânea de mim. Talvez fosse um grito de pedido de socorro. A nossa sociedade, ainda que por anos ninguém tenha notado e agora está evidente demais, é como qualquer outra em que existe um grupo pequeno muito poderoso e o resto está totalmente à mercê e sem poderio algum. Então eu disse basta à ascensão de personagens como a Cef e como o Márcio que, de outra maneira, teriam ficado sempre às sombras de personagens principais e privilegiadas como o V.J e o Carlos. Foi um acto de insurgência para dizer que já é a hora dos angolanos se empoderarem por si mesmos.

Sobre poucos escritores angolanos ou quase nenhum antes de mim ter vários narradores em um único livro, para a mesma história, não é nosso costume escrever assim. É mais uma forma de iniciar outro padrão de escrita.

JBM – A violência, o erotismo e o feminismo são temas que atravessam as três obras. Encontrou nisso a melhor forma para conquistar o teu espaço?

LB – Com certeza, eu queria marcar um lugar. Ainda quero. Quero ser conhecida como a melhor romancista erótica angolana. É um título que espero conquistar. Fomos poucas que falamos abertamente sobre sexo no nosso trabalho, temos a Bel Neto e outras poetisas da casa Yossu e a Sandra Mateus que escreve contos eróticos também. Mas romancista, que eu saiba, só tem eu. E a minha forma de escrever é muito peculiar e diferente no nosso mercado. É o meu lugar e quero mantê-lo e, quem sabe, inspirar outras gerações.

JBM – A violência, nos ‘‘Impérios’’, tem alguma influência do real. A caracterização da personagem-narradora Ercídia é um exemplo disso?

LB – Eu acho que a maioria dos angolanos podem afirmar que já viveram ou presenciaram a violência nos seus bairros. Infelizmente a segurança pessoal não é algo do qual os angolanos podem se vangloriar. Nós ainda não chegamos nesse ponto, nem vamos chegar tão cedo. Eu já vivi em bairros violentos, já presenciei muitos assaltos, já fui roubada e já fui assaltada, então é seguro dizer que a violência nos “Impérios” tem seu fundo de realidade. Tal e qual a caracterização da personagem Ercídia. A Ercídia “personagem” tem lá sua quota parte de características da Ercídia criadora da saga.

JBM – A violência doméstica, tema central do “Fardo de Amar”, está presente em várias famílias. Alguma razão especial para selecção dos espaços ficcionais (Angola, Brasil e Portugal)?

LB – Eu não poderia falar sobre a violência doméstica sem mencionar as experiências que já presenciei em Angola, no meu bairro, na minha família. É uma característica da nossa sociedade. É um hábito cultural. Ao rejeitar essa forma de vivência e esse hábito nasceu o “Fardo de Amar”. Ao longo das pesquisas e de todo o material que eu tive acesso, que inspirou e segmentou o Fardo, o Brasil esteve sempre muito presente e de forma muito negativa. O Brasil bate-nos em quantidade e em qualidade quando se fala nas características do crime contra as mulheres. Eu precisava falar sobre isso. Unir de alguma forma esses dois povos que têm tanto em comum – o mesmo colonizador, parte da cultura partilhada, o mesmo envolvimento no tráfico de escravos e esse mesmo costume de marginalizar as mulheres. Poder-se-ia dizer que o Brasil e Angola são irmãos de tantas coisas em comum que temos. (risos). Já na escolha de Portugal, eu não sei muito sobre a violência doméstica lá, eu só posso assumir que as mulheres europeias são mais emancipadas que as angolanas e melhor conhecedoras dos seu valor e direitos. O real motivo foi mais porque o Fardo seria publicado primeiro em Portugal e depois em Angola. Queria, de alguma forma, envolver também os portugueses na trama e cativar os leitores de lá, assim nasceu o elo Angola-Brasil-Portugal.

JBM – No segundo milénio, muitos escritores jovens dão-se a conhecer no mercado literário. Como Lady Book avalia a produção literária contemporânea e o mercado literário angolano?

LB – O mercado angolano teve um grande crescimento nos últimos anos. Mesmo não estando no país, eu sempre acompanho. Esse salto de poucos ou quase nenhum escritor jovem e adolescente para uma grande comunidade, que se apoia e se motiva, só pode me deixar muito feliz e motivada também. Saber que eu faço parte de uma geração jovem, madura e fresca é um grande regozijo. A produção literária não cresceu só em quantidade, mas em qualidade também. Existe todo um leque novo e versátil de escritores que escreve diferente da grande geração dos clássicos da literatura angolana, experimentando novos estilos e formas de escrita, existem novas editoras cujos editores são escritores jovens também. Só posso dizer que estou ansiosa para continuar a produzir e fazer parte desse movimento renascentista.

JBM – Que avaliação faz da política do livro em Angola?

LB – Eu acho toda a indústria do livro ainda muito precária. Aliás, a única indústria artística em Angola que funciona com efectividade, onde há entidades e empresas que se preocupam e patrocinam a arte e os artistas é só a música e se desenvolveram graças ao trabalho árduo de indivíduos, que acreditam no seu trabalho e no seu sonho. O Ministério da Cultura tem os escritores totalmente abandonados, alguns supermercados não aceitam vender os livros de escritores angolanos, apenas de estrangeiros. Há poucos eventos só para livros, as televisões e rádios têm poucos programas só para a literatura. Acho que foi nesse último trimestre que surgiram mais 2 ou 3 programas. Os programas de entretenimento raramente entrevistam escritores por mais de 10 ou 15 minutos. As Editoras que fazem a publicação tradicional são muito inacessíveis e as editoras acessíveis só fazem publicação independente e nem todos os escritores jovens podem pagar uma edição completa e para piorar as gráficas cobram por unidade. Não há sequer um mercado literário nas outras províncias. Em algumas, a distribuição e venda ainda é muito difícil.

São todas essas políticas que dificultam o nascimento de mais autores. Ainda há muito preconceito acerca do trabalho de escritores angolanos jovens. Até eu, com três livros publicados ainda passo por isso.

JBM – Como avalia o rácio (relação) produção literária vs leitor em Angola?

LB – Primeiro eu tenho que dizer que a relação entre o número de leitores fixos comparado com a população geral do país, ainda é muito desproporcional. Nós poderíamos ser mais e melhores leitores se os livros fossem mais acessíveis e a única forma de fazer isso é tornar a produção de livros mais acessível e até pública. Deveria ser gratuito publicar um livro ou pelo menos deveria haver mais empresários dispostos a patrocinar esse mercado. Quanto à produção literária artística versus leitor, eu acho que nós ainda podemos criar mais, ainda temos muitos estilos não explorados ou mal explorados no mercado. Nós não chegamos aos 30% da produção literária brasileira, nem vou dizer Portugal ou o gigante americano. Há leitores para todos os gostos e preferências, mas para isso é preciso que sempre haja alguém, criando e fornecendo conteúdos.

JBM – Que conselhos deixa para quem quer se estrear no mercado literário?

LB – Que não se acomode. O mercado está aí de mãos abertas e todos os leitores esperamos por mais material de consumo. É preciso criar e criar e criar cada vez mais. Embora o mercado literário seja, por sua vez, ainda muito desafiador, é possível com o trabalho árduo e grande perseverança.

JBM – Os leitores do “Império” e “Império vs Irmandade” cobram o terceiro volume da narrativa. Para quando as próximas obras?

LB – Eles já podem ficar mais descansados e deixarem de me cobrar. Os “Império 3” e talvez o “4” vão sair em 2022. E isso é uma certeza.

JBM – O Jornal ROL agradece pela entrevista concedida.

LB – Eu é que agradeço. O prazer foi todo meu.

 

 

 

 

 

Jose Bembo Manuel
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