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No Quadro de Colunistas do ROL, o angolano Orlando Rafael Ukuakukula!

Orlando Rafael Ukuakukula

O Jornal ROL cada vez mais amplia sua fronteira cultural e se irmana com países lusófonos. De Angola para o Brasil, as Letras de Orlando Rafael Ukuakukula!

Orlando Rafael Ukuakukula, natural de Luanda, é formado em Ensino da Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Modernas, pela Escola Superior Pedagógica do Bengo (ESPB), em Angola.

É membro do projecto de investigação científica da Variedade do Português em Angola (VAPA); membro da Brigada Jovem de Literatura de Angola (BJLA) e delegado do núcleo de Cacuaco.

Profissionalmente, é professor, e, nas artes, escritor, cronista, poeta e declamador.

Participou, com mérito, do Iº Concurso Internacional Poético Cultive-2021, em Genebra-Suíça e coautor da Revue Suisse Dárt et Literature Cultive.

Orlando Rafael inaugura sua colaboração no ROL com um texto saborosíssimo, repleto de termos do dia a dia angolano, devidamente ‘traduzidos’ para os leitores, por meio de um glossário ao final.

CHUVISCOS À CACUACO: A PANDEMIA

É lá, na Retranca e Pedreira de Alexandre, onde tudo começou e transitou para Vidrul, uma das periferias de Cacuaco, num domingo à tarde e agitado. Trovões, escuridão no céu e raios formam marcações de chuva e assustam os moradores que, descalços, com calções ou calças, panos e lenços na cabeça corriam de um ponto para o outro. Aqui, é preocupante chover. Já há quem odeie Deus pela autonomia que dá à natureza, e é por isso que as falácias, nesses momentos, proliferam:

– Isso mais é que, mô Deus! Eh! Chuva de novo? – voavam as reclamações.

– Tira a roupa do fio, Dó!

– As chapas, como ficam? É preciso subir no teto, senão a nossa casa não existe.

Do outro lado, está José Lino Osvaldo, representante da ACBC (Associação das Comunidades Baixas de Cacuaco), descansado no sofá de sua casa, assistia relaxada e despreocupadamente aos programas televisivos; alegria no rosto. Na sua mesa, figura-se cachorro quente, hambúrguer, pizzas, pão com presuntos e sumos de vários sabores para acompanhar. Não se preocupava com a reação que o organismo poderia dar. O mais importante era, com aquele dinheiro, graças a associação, satisfazer suas necessidades, sozinho.

Na estrada, como sempre, proporção de carros, os vulgos engarrafamentos, à medida que a natureza mostra a sua força em cada gotícula mais forte da chuva. Chão molhado e escorregadio; alguns buracos, chamados de valas-de-drenagem, desaguavam suas águas em longos caminhos; algures das estradas, supermercados, bancos, esquadra policial e a nova escola beira à estrada, que impedem passagem quer para táxis, quer para peões. Impõem-se, nesses momentos, os empurrões e insultos. A chuva, que só é chuva, passa a se afigurar como grande pandemia, faz perder o carácter, a ética e a educação do humilde homem bantu, transformando-o em um animal feroz.

– Avança o carro, cabrão! – um taxista ofendendo o outro.

-Cabrão é tó pai, senhor. – respondeu o rapaz.

No outro lado, por onde se desagua a chuva, e onde os passeios já não são passeios, porém lagoas Kavuquila, assemelham-se os comportamentos. Os disparates continuam:

– Tás a me pancar, merda!

– Mas, tio, só culpado? O tio nú tá vê que tá chové?

– Pede apenas desculpa, ó rapaz!

– Desculpa mazé! O tio já me ofendeu memo.

– Te educaram assim?

– Pergunta na chuva. – respondeu o rapaz, irritado.

– A chuva não é culpada. – disse o senhor.

– É sim. Sobe lá onde os Outros vivem. Ali, não se ofendem.

– Porque ali não chove. – retorquiu o mais velho, coincidentemente antigo combatente, pensando em como sua casa deveria estar naquele momento, com a chuva que lhe tirava o sossego.

As discussões fluem. Outras, às vezes mesmo, terminam em brigas. Tudo por causa da grande pandemia e das frustações que causa.

Chegou a noite. Céu escurecido. Lanternas dos telemóveis acesas para alumiar por onde pisar, possibilitando esquivar o lodo, lamas e lixos, que formam uma sopa de letras para quem não gosta de ler. As lanternas justificam a falta de energia eléctrica quando chove. Do contrário, aceita-se mortes por eletrocussão, fruto dos fios dos postos ligados à rascunho. Agora, já com a chuva cessada, as famílias olham-se e as questões, no meio do povo, não param. «onde vamos dormir?» « e as chapas, por onde voaram, meu Deus?».

Só foi preciso amanhecer para os alunos, na sua maioria, não irem à escola. Segunda-feira morta; professores estressados, embora uns alegres porque, pelo menos, não passariam por mais um dia de vergonha, ao leccionar disciplinas que não correspondem com suas áreas de formação. Lama em abundância. E mais: escolas inundadas e demolidas. Lixos a grosso modo. Basta olhar para a esquadra policial e para o famoso Instituto Técnico Médio Privado de Saúde 3AY, a então escola do FAS, onde os alunos, repletos com o dessabor do cheiro da lixeira ao lado, reclamam diariamente das condições precárias e do atentado à vida, embora alguns, como é o caso do Eurico, Doliana e Franciso, conseguem ainda me acenar para uma saudação à distância por já ter sido seus professor ali mesmo. Mas o lixo está no Instituto de Saúde e ponto final. Paradoxo! Não há sorte alguma para os que, de rotina, fazem compras naquele supermercado à beira estrada, a famosa Shoprite, pois, é rio quando chove; tampouco se chega à porta, lá onde os peixes nadam. Do outro lado, o presente que a chuva oferece aos Bancos Sol e Atlântico, é terra barrenta. Mais do que rio, é praia. É tristeza no rosto dos moradores que morrem à fome por lá terem guardado o já pouco do seu dinheiro, fruto da zunga e outros biscatos. No mesmo compasso, a pracinha que sustenta os moradores, estruturada de barracas Pau-a-Pique, onde no linguajar apaixonante do povo “destrocar” tem a mesma carga semântica que “trocar”, “dinheiro pegado” quer dizer “nota grande” e “prejuízo” significa “falência”, os paus são arrastados um a um por força da chuva, desperfilados em tons de desgosto da vida.

Não é tudo isso o mais agravante. É o José Lino Osvaldo ali, em sua casa, no sofá, saboreando a vida. Bastou abrir a janela para surpreender-se:

– Choveu? – interrogou-se admirado.

Estive eu, nessa altura, no teto da minha pequena casa, endireitando os blocos desafastados pela pretérita ventania da chuva, e é de lá onde tenho visibilidade de todo cenário.

Cada um tem o seu direito. Seu dever. Sua liberdade. Cada um deve saber a que está responsabilizado. Há quem esteja a respirar demais. Mas tudo depende de nós. Da nossa atitude. Da nossa decisão e união massiva. Afinal, a luta continua. – pensei eu.

 

GLOSSÁRIO…

Cacuaco > uma região; município de Luanda, Angola.

Zunga > da Língua Nacional Kimbundu “kuzunga”, que significa rodear, ou seja, uma prática, no contexto angolano, que nos remete a vendedor ambulante, o que rodea com mercadoria, de um ponto para o outro, gritando pelo(s) nome(s) do(s) produto(s) que vende.

Biscato > é o nome que se atribui a qualquer trabalho momentâneo. Trabalho não fixo cujo rendimento é em função do que o indivíduo faz, sem um preço estipulado.

Pau-a-pique > casa feito de pau, corda e/ou arames, para se refugiar.

Cabrão > é um termo grotesco, usado para ofender alguém.

> variável de “teu”, ocorrendo, portanto, a monotongação, natural nos falantes angolanos.

Tás > equivalente a “estás”, ocorrendo o metaplasmo, ou seja, o processo de supressão dos primeiros segmentos fonológicos, aférese.

Telemóvel > celular

             Orlando Ukuakukula

                Março de 2021

 

 

 

 

Sergio Diniz da Costa
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