Psicanálise e Cotidiano
No coração da loucura: o olhar humanizado de Nise da Silveira para o tratamento dos loucos
“Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente chata.
Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido:
vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda.
Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas.”
(Nise da Silveira)
Antes da dor, do sofrimento, do semblante melancólico, da apatia, do comportamento compulsivo, dos tiques, das falas desconexas, do andar apressado para lugar nenhum, da agressividade, do riso descontrolado, das súbitas crises de choro, da automutilação ou de um entusiasmo inexplicável… tudo isso e para além disso, há o corpo, o sujeito, a vida.
Antes de focar o olhar nos sintomas, claramente aparentes do estado psicótico, há sempre que se considerar que ali, por trás de todas aquelas manifestações, habita um ser humano que grita por socorro, refém de sua própria loucura.
E é nesse ponto que o filme Nise: o coração da loucura quer nos mostrar: que mesmo aquelas pessoas que estão internadas no hospital psiquiátrico (algumas até há anos) não deixaram de ser seres humanos, pessoas que têm suas próprias histórias de vida, que pensam e que são capazes de produzir dentro de seu próprio universo, seja ele conflitante e incoerente.
Lançado em 2015, o filme conta a trajetória de Nise da Silveira, médica psiquiatra que em 1944 foi trabalhar no Hospital Engenho de Dentro na cidade do Rio de Janeiro. Na época, ela se recusou a utilizar os métodos de tratamento que eram oferecidos aos pacientes como eletroconvulsoterapia, camisa de força e isolamento. Com a recusa de Nise em utilizar tais métodos, os médicos a enviaram para o setor de Terapia Ocupacional, como uma forma de desprezo e punição. Essa ala do hospital se encontrava em condições precárias, suja, sem equipamentos, abarrotada de entulhos, totalmente esquecida pelos administradores do hospital. Vendo a situação, Nise tratou logo de arregaçar as mangas e modificar a realidade daquele lugar.
A transferência para este setor foi fundamental para a revolução que Nise provocaria na psiquiatria: ela implementou, junto com o psiquiatra Fábio Sodré, a Terapia Ocupacional como participante do tratamento psiquiátrico. Até então os tratamentos oferecidos e defendidos veemente pela sociedade médica eram a eletroconvulsoterapia e a lobotomia, ditos como extremamente eficazes para curar a loucura. Diga-se de passagem, tornava os pacientes letárgicos e apáticos do contato com a realidade interna e externa, como se seus cérebros e toda a sua afetividade fossem desligados.
Historicamente, o ramo da Psiquiatria lida com a prevenção, atendimento, diagnóstico, tratamento e reabilitação das diferentes formas de sofrimento mental, sejam elas de cunho orgânico ou funcional, com manifestações psicológicas severas. São exemplos dessas enfermidades a depressão, o transtorno bipolar, a esquizofrenia, a demência e os transtornos de ansiedade. O objetivo principal do médico psiquiatra é aliviar o sofrimento e garantir o bem estar psíquico. Ele faz o diagnóstico da pessoa baseado em informações biológicas, psicológicas e familiares, também utiliza testes psicológicos, neurológicos, neuropsicológicos, ressonâncias, exames físicos e laboratoriais. Após a avaliação, o tratamento pode ser medicamentoso ou terapêutico, como a psicoterapia, prática mais utilizada no tratamento. Nesse aspecto, muitos psiquiatras têm estabelecido parcerias importantes com os psicanalistas para o tratamento terapêutico.
Os serviços psiquiátricos podem oferecer tratamento ambulatorial ou internamento, este último, quando o paciente oferece risco para si e para os outros. No entanto, a reforma psiquiátrica no Brasil pretende cada vez mais modificar o sistema de tratamento clínico da doença mental, eliminando gradativamente o modelo de internação como forma de exclusão social. Este modelo seria substituído por uma rede de serviços territoriais de atenção psicossocial. São exemplos, as casas terapêuticas, centros de convivência e cultura assistidos, cooperativas de trabalho protegido e oficinas de renda, visando a integração da pessoa com transtornos mentais à sociedade e à família. Ou seja, a modificação do sistema de tratamento clínico prevê uma perspectiva mais humana e multidisciplinar, envolvendo o diagnóstico científico e as psicoterapias diversas.
Os pacientes retratados no filme sofriam de esquizofrenia grave. São quadros patológicos extremamente variados, é chamado também de psicoses de dissociação. São transtornos de personalidade que não têm causas puramente anatomopatológicas ou somente psíquicas. Por isso, os fenômenos manifestados pelos pacientes devem ser entendidos enquanto tensões emocionais. É importante observar a etiologia das esquizofrenias, os conflitos como isolamento social, experiências familiares de abandono, fanatismo religioso, enfrentamentos étnico-morais-religiosos, além da predisposição hereditária. Algumas sintomatologias dessa psicose são possíveis notar no filme como as alterações de afetividade, falta ou escassez de contatos afetivos, laços sociais, como se vivessem em um mundo particular, num mundo de sonhos. Outras como alterações de pensamento: incoerência, aceleração do curso do pensamento, linguajar impreciso e prolixo; alterações de personalidade: autismo, dupla orientação; sintomas catatônicos: estado de rigidez, não responde aos estímulos, e o contrário, agitação, movimentos desordenados; impulsos repentinos e atos compulsivos, estereotipias.
Em meio a diversidade que havia no setor hospitalar de Terapia Ocupacional, Nise foi além do olhar puramente técnico e cientifico com aqueles pacientes (ou “clientes”, como ela gostava que eles fossem chamados). Ela os enxergou enquanto pessoas que se encontravam ali por determinadas razões. Nise percebeu que as artes plásticas eram o canal de comunicação com os pacientes esquizofrênicos que até então não se comunicavam verbalmente. As obras produzidas por eles davam “voz” aos conflitos internos que viviam.
Além do efeito terapêutico, as artes plásticas possibilitaram que os “clientes” se tornassem verdadeiros artistas. A produção do ateliê do Setor de Terapia Ocupacional já tinha despertado a atenção de pesquisadores de saúde mental e médicos, contudo críticos de arte também viram naqueles trabalhos obras artísticas dignas de exposição. Foram organizadas duas exposições internacionais e, em 1952, foi inaugurado o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro.
A terapia através da expressão da arte fez com que as imagens inconscientes tomassem forma e “saíssem” do mundo interno dos enfermos para o mundo externo onde todas as pessoas pudessem apreciar sem a pretensão de compreender o que de fato viam, afinal, o que é a arte senão as manifestações do material reprimido, por assim dizer. E ao externalizar esse conteúdo por meio de pinceladas, esculturas, desenhos, acabam funcionando como pequenas (porém significativas) catarses. Além disso, a presença de cães que conviviam em harmonia entre os pacientes ajudou gradativamente no desenvolvimento da afetividade. Com todas essas práticas, os pacientes realmente obtiveram melhoras em sua saúde mental, refletindo em suas relações intra e interpessoais.
Ao dar vida ao ambiente hostil que os internados viviam, Nise constatou que o mundo interno do esquizofrênico, considerado inatingível até então, poderia ser acessado, revelando as emoções desses pacientes por meio de suas produções artísticas. Ela afirmava que o hospital colaborava com a doença e acreditava que caberia à terapêutica ocupacional parte importante na mudança desse ambiente.
Nise tinha um apetite voraz para os livros e um interesse especial pela obra do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (grande amigo de Freud por um certo período). O filme mostra quando ela escreveu uma carta para ele pedindo ajuda para interpretar as mandalas que os pacientes desenhavam. Em resposta à sua carta, ela constatou o que Jung afirmava: se para o neurótico – o que seria todos nós, segundo Freud – o tratamento é por meio da palavra, ou seja, a psicanálise, para o esquizofrênico, segundo Jung, a palavra não dá conta. Para esse paciente, o tratamento deveria ser pela imagem.
Para Nise, a experiência em manicômios mostrou que havia uma confusão entre hospital psiquiátrico e cárcere privado, onde os pacientes eram tratados como presos. Avessa a essa abordagem desde o começo e defensora de um olhar humanista, Nise apontou falhas na psiquiatria, contestou práticas e demonstrou soluções mais humanísticas e criativas, dando novos rumos e sentidos aos tratamentos psiquiátricos e às relações entre psiquiatras e pacientes. Em seus 94 anos de vida, a alagoana publicou dez livros e escreveu uma série de artigos científicos.
O filme é uma grande referência para o entendimento não só da esquizofrenia, como também da importância de se haver tratamentos psicoterapêuticos que resgatem o potencial humano camuflado pela doença e de que é possível recuperar doentes mentais e inseri-los de volta à sociedade e ao convívio familiar.
Antes de pensarmos numa sociedade em que todos pareçam normais, vale refletir nas palavras de Nise quando diz sobre se ter uma loucura necessária para viver: Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas.
Bruna Rosalem
Psicanalista Clínica
@psicanalistabrunarosalem
www.psicanaliseecotidiano.com.br
- Nomadland: uma reflexão sobre a transitoriedade - 10 de outubro de 2024
- O vazio - 15 de agosto de 2024
- Deitar-se no divã: uma possibilidade de reescrever a própria história - 30 de junho de 2024
Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.