novembro 21, 2024
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Bruna Rosalem: Psicanálise e Cotidiano: 'A neurose obsessiva e o filme O Aviador – diálogos possíveis'

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Bruna Rosalem

PSICANÁLISE E COTIDIANO

‘A neurose obsessiva e o filme O Aviador – diálogos possíveis’

                                 ” […] O que leva à somatização são fatores variados que exigem investigação e que                                                                podem surgir das mais diversas vertentes. Todos nós temos em maior ou menor                                                                intensidade certa ‘potencialidade somática’.”

 

Ansiedade. Uma palavra conhecida por muita gente e pelo menos uma vez na vida alguém já se sentiu ansioso por algum acontecimento, seja por estar prestes a passar por alguma situação, por esperar algo com muita vontade, por aguardar por um resultado importante, por se apresentar em público, por dar início a uma tarefa nova, enfim, diversas situações em que a emoção vai tomando conta do corpo, gerando uma série de pensamentos e com eles as reações orgânicas sentidas na pele: aceleração do batimento cardíaco, sudorese, diarreia, tremores, boca seca, dor de barriga, vertigens, etc. Embora estas reações sejam comuns, existem os transtornos de ansiedade conhecidos como formas graves de doenças mentais que causam grande sofrimento e assumem efeito paralisante, impedindo a pessoa de viver de maneira saudável. Um desses transtornos de ansiedade é o Transtorno Obsessivo Compulsivo, famoso TOC que é retratado no filme O aviador.

Antes de entrarmos na película, cabe ressaltar que para a psicanálise este quadro clínico pode ter aproximações com o que chamamos de neurose obsessiva, porém guarda suas ressalvas. O psicanalista não foca necessariamente nos sintomas, como é o que caso da medicina, por exemplo, ao enquadrar como transtorno previsto no DSM-V. Em análise, o paciente fala aquilo que vier à mente de forma livre e espontânea e o psicanalista pontua oportunamente. Ele não está interessado nos sintomas em si, até para não correr o risco de fortalece-los ainda mais. Numa neurose obsessiva (evidenciada por Freud em 1894), a questão maior que se apresenta são os pensamentos incessantes, intrusivos, incontroláveis, cansativos, repetitivos, corrosivos que desgastam sobremaneira a vida psíquica da pessoa, ocasionando grande sofrimento e muito medo de tomar qualquer atitude frente ao seu desejo. Há um receio constante em desejar, seguir e agir. Então, o que vemos é uma série de manifestações corpóreas que, muitas vezes, acompanham esta “conversa interna consigo mesmo sem chegar a lugar algum”.

No filme, nos deparamos com a história real de Howard Hughes, um nativo da cidade do Texas (Estados Unidos) que se tornou milionário graças a uma herança deixada pelo seu pai que era um grande inventor no ramo da aviação. Howard, ao mesmo tempo em que tinha verdadeira obsessão por construir aviões modernos e potentes para a época (1930), ele também queria ser um fenômeno do cinema produzindo filmes glamorosos e de altíssimo orçamento, também com a temática da aviação, além de produzir os próprios aviões para serem usados em seus longas-metragens, mostrando ao mundo o que era capaz de fazer. Seu filme de maior sucesso foi Hell’s Angels.

Howard apresentava comportamentos extravagantes e repetitivos, fazendo com que os seus relacionamentos tanto amorosos quanto profissionais fossem marcados por constantes altos e baixos e eram de certa forma confusos. Ele desenvolveu uma série de manias, compulsões, rituais cotidianos e fobias, como por exemplo, se trancar no quarto sem roupas, evitar quaisquer bactérias presentes até mesmo no ar, lavar repetidas vezes as mãos, usar luvas para pegar algo e depois jogá-las fora, mantinha suas unhas maiores como se fossem pinças, não suportava sujeira, mantinha os objetos extremamente organizados, até mesmo a disposição da comida em seu prato tinha que ter um padrão de arrumação. Estes e outros comportamentos fizeram com que gradativamente ele se mantivesse mais afastado de tudo e de todos. Apesar do desenvolvimento TOC, Howard tinha uma personalidade audaciosa, corajosa e era muito inteligente. Ele mesmo testava seus próprios aviões, não tinha medo algum de sofrer acidentes, e logo se tornou um comandante da aviação comercial devido aos seus feitos e planos.

O Transtorno Obsessivo Compulsivo caracteriza-se por obsessões que causam ansiedade e mal-estar significativos, e/ou compulsões, cujo propósito é neutralizar a ansiedade. As obsessões são ideias, pensamentos involuntários, recorrentes, persistentes, absurdos, geralmente desagradáveis e ameaçadores que aparecem com grande frequência sem que a pessoa possa evitá-los. As compulsões são comportamentos frequentes, sucessivos que se realizam em forma ritualística. Ambas as formas obsessões e compulsões formam um ciclo vicioso difícil de ser quebrado pelo sujeito, este precisa, muitas vezes, que seu tratamento seja associar medicamento e psicoterapia. As obsessões mais comuns são: preocupação com sujeira, com simetria e de manter padrões, medo de acontecimentos aterrorizantes e catastróficos. Já as compulsões que mais aparecem são: lavagem de mãos, verificação de portas, contagem excessiva, não pisar na linha quando se anda numa calçada ou numa determinada cor, entre outros.

O filme O aviador retrata com perfeição as compulsões de limpeza de Howard, que, assim como a maioria dos casos diagnosticados, começaram na infância e até por assimilação de hábitos maternos. Na cena inicial do filme, a mãe de Howard está dando banho nele, de água quente e com um sabonete supostamente medicinal, falando do perigo de uma contaminação, pois o mundo estava contaminado: “Você sabe o que é cólera? Você sabe o que é tifo? Sabe o que essas doenças podem fazer com você?” , “Você não está a salvo”.

A partir dessa cena, pode-se dizer que Howard cria um padrão comportamental: a compulsão por limpeza. Inclusive, a cena do banho volta a aparecer, através de lembranças da personagem, em situações que são aversivas para ele, no caso, estar diante da impossibilidade de construir aviões. De um modo geral, Howard mostra-se sempre perfeccionista e com traços de limpeza excessivas. Toma somente leite lacrado, anda sempre com seu sabonete, cobre com papel celofane o controle do avião e toma sorvete numa caixa, nunca em taças.

Com o passar do tempo, as obsessões e compulsões de Howard vão aumentando gradativamente até chegar ao ponto em que ele não consegue mais controlar a situação, tornando-a insana, como a vez em que sua antiga namorada entra na casa dele e a propriedade está tomada de plásticos cobrindo objetos, lenços de papel e divisórias separando os ambientes menos infectados. Toda sua vitalidade vai se enfraquecendo transformando-o em um sujeito frágil e apático.

Não somente o TOC como tantos outros transtornos mentais acabam por somatizar os seus “efeitos”. Isto é, o que a mente produz de pensamentos e emoções, o corpo responde. A somatização é a resposta psíquica à dor mental, e é das mais comuns capacidades dos seres humanos. Vemos claramente que não há dissociação entre corpo e mente. O que leva a somatização são fatores variados que exigem investigação e que podem surgir das mais diversas vertentes. Todos nós temos em maior ou menor intensidade certa “potencialidade somática” e que em determinadas situações emocionais podem ser ativadas e ocorrer uma manifestação corpórea orgânica.

Apesar do comumente pensarmos a ansiedade como algo negativo, ela é considerada uma reação emocional natural, de caráter essencialmente adaptativo, que surge como resposta do organismo diante de determinadas situações que necessitam mobilizar diferentes recursos cognitivos, tais como atenção, memória, pensamento, linguagem, percepção, ação, dentre outros. Entretanto, quando a ansiedade tem sua frequência, intensidade e duração excessivamente aumentadas, passa a expressar um quadro patológico, um transtorno de ansiedade. Este transtorno é também frequentemente associado à depressão. É como se toda nossa dinâmica econômica libidinal não tivesse um direcionamento produtivo, ficasse apensas pulsando sem algum propósito, escoamento, relação.

Na última cena do filme, Howard apresenta a ideia obsessiva de que está sendo perseguido. Em determinado momento questiona sobre as pessoas que ele suspeita estarem observando-o, com perguntas do tipo: “Eles trabalham para mim?”. Logo depois encontra-se como se estivesse bloqueado (impossibilitado de raciocinar e dar continuidade as atividades cotidianas). Como um disco riscado, passa a repetir uma determinada frase de forma automática: “Eles são o futuro, eles são o futuro”. Então é levado por dois amigos ao banheiro até aguardarem pelo médico. Nesse local, Howard tem alucinações e escuta sua mãe dizer: “Você não está seguro” e visualiza quando ela lhe dava banho, representando, neste momento, um possível começo de surto psicótico.

A ilustre história do visionário Howard Hughes expressa com muita clareza o quadro evolucional de um transtorno de ansiedade, no caso específico, o TOC. Ao mesmo tempo em que sua incontrolável ganância e seus exageros o colocaram na mídia e o fizeram um homem de sucesso, o conjunto dessas manifestações acabaram culminando em uma doença, transformando-o em uma pessoa reclusa em suas próprias manias. Engolido pela sua mente. Absorto em suas alucinações.

Na vida real, Hughes passou seus últimos anos no México completamente solitário, tendo sua saúde física e mental visivelmente abaladas. E a 5 de abril de 1976, aos 70 anos de idade, acabou falecendo, vítima de parada cardíaca, ocorrida, ironicamente, num avião que o transportava de Acapulco até Houston, para tratamento médico.

 

Bruna Rosalem

Psicanalista Clínica

@psicanalistabrunarosalem

www.psicanaliseecotidiano.com.br

 

 

 

 

 

 

 

Bruna Rosalem
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