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Marcus Hemerly: 'Cinema em Tela: Filme Demência – A lenda do Fausto Moderno'

“Na vida, a coisa inútil, é carga a desprezar; só o que o instante oferece é bem aproveitável.”  (Fausto – Goethe)

A conhecida história de Fausto, derivou inúmeras adaptações nas mais diversas formas artísticas, como peças teatrais, filmes, romances, desenhos animados em tom de sátira, entre outros. A mais famosa concepção inspirada na lenda de origem alemã, é de autoria de Wolfgang von Goethe, em seu poema clássico, inicialmente composto em 1775, retratando o contrato firmado entre Fausto, que enseja o título da composição, e o demônio Mefistófeles. Seja a partir de sua formatação original de feição mais ortodoxas, ou mesmo, nas inúmeras interpretações e vieses reflexivos que delas se inspiraram, a ideia do dilema moral e espiritual deflagrado pela obra é atemporal.

Com os olhos voltados para a dualidade do homem, a constante luta entre o bem e o mal, não raro, inserida no próprio indivíduo, em seus matizes mais superficiais ou voltados ao âmago do ser, o que se verifica é um terreno fértil à criação artística. Na produção “Filme Demência”, de 1987, dirigida por Carlos Reichenbach (1945 – 2012), conhecemos a história de Fausto, vivido por Ênio Gonçalves, um industrial que tem a falência recentemente decretada. A partir do fracasso financeiro, existencial, e afetivo, pois sua esposa o repudia traindo-o com seu sócio, o personagem embarca numa viagem de autoconhecimento e irresignação consciente ao seu derredor. Um “abrir de olhos” impulsionado pela ciência ou aparência de autonomia pretérita, obliterada pelas brumas da negação e do niilismo, as quais emergem diante de sua nova realidade imposta.

Após uma tortuosa tentativa de intercurso com a mulher, como que confrontado por sua derrocada rumo ao abismo, o personagem se envereda pelas ruas da São Paulo noturna. A selva de pedra agora como cenário da releitura moderna do clássico anti-herói, intensifica a obscuridade que retrata o atual estado anímico de Fausto. A fotografia escura e conscientemente lúgubre, atua de forma coadjuvante à própria cidade, indiferente às mazelas de seus habitantes(errantes), mormente seu submundo, a fim de retratar um tom de pessimismo e ausência de perspectiva. Durante a sua jornada, Mefisto, interpretado de forma genial por Emílio Di Biase, se revela diante de Fausto nas mais diversas formas, sempre seduzindo sutil e sorrateiramente. Nesse passo, enquanto tenta ganhar sua alma, induz o personagem ainda que de forma indireta a uma vereda libertária em relação ao seu passado cada vez mais longínquo, vetor recorrente das obras de Reichenbach.

De maneira diversa de suas películas pretéritas, financiadas a partir de produtoras privadas, situação comum na Boca do Lixo paulistana, seu reduto inicial, a obra foi filmada a partir de recursos da extinta Embrafilme. Trata-se de uma questão altamente peculiar, pois a empresa Estatal àquela época, já se encontrava rumo à finitude, que seria oficializada no governo Collor concomitantemente a extinção da lei de obrigatoriedade.  Se de um lado, a legislação que fomentava a reserva de mercado para a distribuição e exibição de produções nacionais, quadro favorável às distribuidoras e exibidoras privadas, a Embrafilme irradiava feixes para produções de feições menos comerciais. Decerto, revela-se certa coerência, pois se os filmes anteriores de Carlão, como era conhecido, ainda que imbuídos de sua distinta erudição conseguiram cotejar elementos de erotismo, chanchada e pensamento anárquico libertário, materializando conteúdo facilmente vendável.

Tal era a tônica das produções da Boca do Lixo, filmes montados a partir de recursos próprios objetivando lucro e consequente aplicação nos títulos vindouros. Filmes como “A Ilha dos Prazeres Proibidos” e “Império do Desejo”, apesar de sua classificação inicial como espetáculos de pornochanchada, conseguiam verter um conteúdo político e filosófico em meio ao erotismo mercadológico. Retornando ao peregrino Fausto, interessante notar que se anos antes as produções demonstravam o sucesso da expansão industrial Paulista, como na obra-prima de Luis Sérgio Person “São Paulo – Sociedade Anônima” de 1965, Filme Demência retrata as difíceis condições impingidas ao campo empresarial em meio à crise econômica de meados dos anos 80. Inclusive, Person, professor de Reichenbach na graduação de cinema, é homenageado em algumas passagens no curso do filme com adaptações da trilha sonora, claramente em referência a SP/S.A.

Repise-se, mais do que uma jornada de conhecimento, contraste e confrontos pessoais, Filme Demência revela uma nova fase na carreira do cineasta, pelo qual em um filme altamente intimista, insere elementos autobiográficos tal como a morte prematura do pai e a perda dos bens da família, também oriunda de industriais. Além da inserção da erudição em citações filosóficas de forma mais sutil, mas não menos profundas e densas, a narrativa a todo momento e instigada pelo pensamento lírico abstrato, como na participação do ator e poeta Orlando Parolini, que aparece em outros filmes do diretor.

De toda sorte não se trata de uma película palatável a todos os gostos, tanto é, que consoante adiantado, foi financiada pela Estatal de cinema, quadro que facilitava a concepção de produções afastadas da roupagem mais popular. Nas palavras do diretor, (Marcelo Lyra, 2007, Imprensa Oficial):

“Em Filme Demência, optei por uma indústria de cigarros para tirar fora qualquer vínculo cultural da questão da falência. Além disso, vi também muitas pequenas fábricas artesanais de cigarro serem fechadas por pressão das majors do tabaco, já que muitas delas imprimiam suas embalagens na gráfica de meu pai. Também quis fazer uma indústria de cigarros chamada Fênix, para ironizar a tentativa de ressurgir das cinzas. Outro aspecto interessante é que falência significa também quebra de tradição familiar. Fausto vinha de uma linhagem de pequenos industriais do cigarro, da mesma forma que minha família tradicionalmente trabalhou com gráficas. Em meio à perda financeira, Fausto vê seu casamento desmoronar”.

Aliás, o título já descortina um cenário provocador, (anagrama para filme de cinema), numa proposição aparentemente pleonástica, mas que atua como prólogo às sucessivas disposições e sobreposições de interpretações abertas em relação ao destino do personagem. Enquanto o anticristo materializa-se objetivando sua alma, Fausto, inserido em sua realidade utópica de rompimento com o passado e presente, flutua entre dois extremos, como Dante guiado por Virgílio entre os assombros do inferno e purgatório. Nesse confronto, teria ele ainda futuro, ou mesmo, sua alma? Cabe ao expectador ponderar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Marcus Hemerly
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