novembro 22, 2024
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Angelo Lourival Ricchetti: Continuação do livro que conta a história de uma família, desde 1400 até 2023. Ficção com base em documentos e narrativas de pessoas reais

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Angelo Lourival Ricchetti:  Continuação do livro ‘DA ARTE DE SE CRIAR PONTES’ – 8ª PARTE

(c0ntinuação)
OITAVO PEDAÇO DO ROMANCE DA ARTE DE SE FAZER PONTES
 
“Permanecendo nos combates vem o sofrimento espiritual: o aconchego do lar, muitas saudades e as perguntas: será que verei novamente os meus? O que acontecerá daqui a minutos, horas ou dias?
Ver os companheiros mortos ou feridos e perguntar a si mesmo: serei o próximo?
Quando tudo acabar como será o nosso reencontro? E os outros que ficaram por lá?
Ir para uma revolução é preciso ser o que chamamos numa trincheira um destemido.
Agora que já falei sobre o que senti numa revolução será preciso pensar em ser “Homem”.
Os fracos acham um suicídio material e espiritual.”
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Não consigo terminar. Ela joga um travesseiro em cima de mim, dando risada.
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 (Décimo segundo texto do Uth Ricchetti)
O Zé Português que era de São Manuel e do Batalhão Esportivo tinha vindo buscar comida e encontrou com o Mário que lhe contou o meu drama.
Conseguimos enganar os guardas do vagão e fugimos para o Batalhão Esportivo levando nossos fuzis e mais três que achamos no jeito.
Na fuga de nós quatro (os dois Guardas, o Mário e eu) o Batalhão Esportivo ganhou mais quatro homens e sete fuzis.
O caminhão que nos levou, levava a xepa (comida). O Mário e os dois companheiros comeram, mas eu não quis, pois queria comer com os companheiros: Fernando de Campos Mello, o Mucci, o Néco, o Massarelli todos de São Manuel, mas não comemos porque foi só chegarmos e tínhamos que partir para a frente de guerra.
Os inimigos estavam a 8 horas da cidade de Ressaca. 
Combatemos à noite toda e ao amanhecer os inimigos tinham-se retirado.
Nós não sabíamos da retirada. Havia uma cerração muito forte e o Mário e eu tínhamos que guarnecer uma metralhadora pesada substituindo os homens que estavam lá.
De repente deram uma rajada e nós nos jogamos num buraco. Era um formigueiro de saúvas. As desgraçadas começaram a entrar pela camisa e a picar o corpo todo e nós não podíamos sair do buraco até que a metralhadora do lado nos cobrisse com o seu disparo.
Qual não foi a nossa surpresa quando chegarmos à metralhadora que íamos guarnecer: o atirador era o José Ramos de Oliveira (samanuelense) e o municiador Belmiro Plese (São Manuel).
Eles ajudaram a tirarmos as formigas. Riram muito, pois tínhamos errado o caminho e estávamos perto dos inimigos e foi aí que abriram fogo para nos proteger. Só reconheceram que éramos paulistas quando gritamos a senha (a senha era a palavra Mato-grosso).
Quando os inimigos se retiraram nós descansamos dois dias e aí pudemos comer.
O José Ramos de Oliveira e o municiador Belmiro Plese foram guarnecer outros flancos.
Dois dias depois seguimos para a frente. Um lugar muito estranho cheio de morros dificultando as nossas horas de sentinela.
Quando me chamavam eu me escondia e então mandavam outro no meu lugar.
O Mário que era estourado, sempre ia para a sentinela, porque quando falavam o nome dele começava a xingar alto e mandar todos para “pqp” e daí só havia de ir e fazer as suas horas.
Queria que eu fosse junto, mas eu não ia principalmente à noite.
Numa das noites em que o Mário, um rapaz de Bauru e eu fomos fazer guarda avançada (observação) ficamos perto de uma árvore e sofremos um grande susto.
A árvore começou a balançar sem vento nenhum e cada vez mais forte. Calamos a baioneta e fomos examinar e nada.
O rapaz de Bauru falou:
– Cuidado, aí é lugar assombrado eu vou embora.
E foi. O Mário e eu ficamos sozinhos e o Mário aguentou firme, pois não podia xingar, nem gritar.
O sentinela tem que ficar imóvel e sem acender cigarros.
Soubemos depois por uns homens que naquele lugar haviam matado um casal de namorado bem debaixo da árvore.
Ficamos nessa fazenda 15 dias descansando, pois não apareceu o inimigo.
Recebemos ordens para irmos guarnecer um setor ao lado da Força Pública e lá morreu um samanuelense – Alberto Martiri. 
Isso aconteceu na cidade de Pinhal. Nós estávamos na entrada da cidade quando o comandante da Força Pública ia atacar e prender um grupo de inimigos e pediu voluntários do nosso Batalhão.
Alguns se ofereceram entre eles o tal Alberto Martiri.
Ao passar por um bananal encontraram não um grupo, mas um batalhão que atacou de surpresa os soldados da Força Pública.
Foi aí que todos fugiram, mas o Alberto Martiri não podia correr, pois sofria de calos nos pés.
Os jagunços não os prendiam, matavam.
Ficamos muito tristes. Um companheiro viu tudo do seu esconderijo.
Desse lugar viemos para uma fazenda perto da cidade de Atibaia.
Depois de tanto irmos de lado para outro queríamos uma licença para descansar.
Nesse lugar sofremos uma traição. 
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Quando vou continuar a ler a minha namorada me interrompe.
– Você está lendo sem mim! Não quero isso.
– Você voltou a dormir e não quis acordar você. Tudo bem vou voltar a ler em voz alta.
– Obrigado, meu menino Kai. Mas desde o começo, viu?
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Volto a ler como ela quer até chegar ao ponto da traição.
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Do nosso tenente recebemos ordens de guarnecer e mesmo queimar uma ponte para o inimigo não passar, seguir uma patrulha, na frente da qual eu estava.
Num certo lugar percebemos uns vultos no alto do barranco. 
Como era noite e ventava muito nós pedimos a senha e a patrulha não deu a contra senha colocando-se em posição de combate, mas o fuzil-metralhadora deles falhou, foi a nossa sorte.
Nosso sargento não perdeu tempo, deu ordens para atirar. Nós nos atiramos no chão e começou o barulho.
O sargento que estava com a metralhadora não teve tempo de deitar e ele rolou pelo barranco gritando:
– Mãe, água…
Aí tivemos os piores momentos de medo.
O pobre sargento havia recebido nesse dia carta da mãe. 
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Estamos reunidos no domingo à tarde lendo o texto do meu bisavô Uth no quarto de estudos do vô Lolou. Ele chegou antes do fim da leitura. Ficamos em silêncio tentando absorver a dor dessa mãe do sargento.
Lembro que tem algo sobre essa revolução nos arquivos do Lolou, algo de Guilherme de Almeida:
“Quando se sente bater, No peito heroica pancada, deixa-se a folha dobrada, enquanto se vai morrer…”
Depois Lolou rompe o silêncio:
– E daí? O que acharam?
Cinthya é a primeira a falar:
– Seu pai narra muito bem como é estar em uma guerra…
– Mas não é uma guerra, Cinthya. É uma luta entre irmãos da mesma nação…
– É uma guerra sim, Kai. Não importa o que seja pessoas matam e pessoas morrem, mandadas por alguém que, talvez elas nem conheçam quem é o motivo…
– Moça, o motivo era terminar com uma ditadura militar e restabelecer a democracia. Alguma coisa não estava dando certo e parece que apenas os paulistas pegaram em armas contra o ditador.
– Lolou, pelo que estudei o que nós paulistas queríamos era diferente do que a elite queria. Para essa elite a tal “revolução” que animaram os jovens a participar era para restaurar as oligarquias de Minas Gerais e São Paulo na condução do Brasil.
– Esse é o outro lado da história contada pelo ditador Getúlio e que conseguiu a adesão do Exército do Brasil nos vários Estados para que lutassem e garantissem a permanência de Getúlio no poder.
– Vamos deixar de lado isso porque não ajuda em nada o que precisamos deixar bem claro: Seu pai pegou em armas e foi à luta movido por algum ideal e viu, talvez pela primeira vez, a morte ao lado.
– Tem razão moça!
Fico contente de observar minha namorada liderando nossas conversas e como Lolou se deixa cativar por ela. Surge a vó Júlia:
– Hora do almoço! Todos já lavando as mãos! Senão a comida esfria.
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Após o almoço eu continuo a ler para Cinthya.
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 (Décimo terceiro texto de Uth Ricchetti)
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Só encontramos inimigos por toda parte e tínhamos de chegar às margens do rio e colocar fogo na ponte.
Já era noite outra vez.
Ficamos escondidos atrás de umas árvores e assim evitamos que os inimigos passassem para cá do rio.
De manhã chegou outro Batalhão para substituir-nos.
Nós recebemos a tão desejada licença. Viemos para Campinas para tomar o trem para a capital (São Paulo).
Passamos um apuro, pois encontramos com o Batalhão que havíamos abandonado.
O capitão do Sete de Emergência não nos viu e eu me escondi na privada do trem até o mesmo partir.
Voltamos a São Manuel.
A senhora mãe de Joaquim Ferreira Neto havia feito promessas de assistirmos uma missa na Aparecida de São Manuel, assim que voltássemos da trincheira.
Assistimos à missa e tiramos fotografias. Tenho essa foto na parede de casa.
Matei as saudades conversando com a Lucila e depois de uma semana novamente nas trincheiras, não recebermos fuzis e sim granadas.
Fomos para o Arraial do Souza, perto de Campinas, debaixo de fortíssima chuva.
Estávamos chegando ao fim da revolução de 1932.
O inimigo avançava e ganhava todas as posições.
Saímos a pé desse lugar até Campinas e de lá para Jundiaí onde nos alojamos no Grupo Escolar.
Três dias depois chegamos a São Paulo (Capital) onde depositamos as armas.
Estávamos em Jundiaí com fuzis que recebemos em Jundiaí para seguirmos para a Serra dos Cristais, mas recebemos nova ordem: ficar em São Paulo.
Cheguei à casa de minha tia Carmela (Capital) troquei a farda por roupa civil. Foi a minha sorte.
Os do governo estavam parados em Sorocaba e em Botucatu (e eu viajava para São Manuel), Os que eles encontravam fardados, prendiam e ofendiam muito.
Vou falar agora sobre o que é ir para uma revolução e a permanência nela, o que sentimos e as consequências.
Primeiramente temos que ter sangue-frio, pois o batismo do fogo trás desespero, mas tudo passará logo, pois acostumamos com a permanência dos combates.
As balas que zunem nada lhe farão, pois elas passam muito distantes de sua cabeça e então você trata de se proteger.
O inimigo está visando você e a sua vida esta na sua proteção.
As balas que passam soprando, passaram a dez centímetros de sua cabeça.
O ataque de baioneta (arma branca) depende de sua agilidade e você teve instruções sobre isso nos quartéis. Probabilidade de vida, dez por cento.
O avião, com as suas rajadas de metralhadora, jogando bombas sobre você. A defesa é atirar-se ao chão. Única oportunidade de sobreviver.
Mas com todas essas coisas você acostumará depois de alguns combates.
Permanecendo nos combates vem o sofrimento espiritual: o aconchego do lar, muitas saudades e as perguntas: será que verei novamente os meus? O que acontecerá daqui a minutos, horas ou dias?
Ver os companheiros mortos ou feridos e perguntar a si mesmo: serei o próximo?
Quando tudo acabar como será o nosso reencontro? E os outros que ficaram por lá?
Ir para uma revolução é preciso ser o que chamamos numa trincheira um destemido.
Agora que já falei sobre o que senti numa revolução será preciso pensar em ser “Homem”.
Os fracos acham um suicídio material e espiritual.
Depois que voltamos da revolução juntamente com aqueles que haviam ficado para receber o ordenado do tempo que estiveram na trincheira, todos com saudade das suas casas, nos encontramos e abraçamos nossos entes queridos.
Naquele tempo os soldados recebiam oito mil reis por dia e eu não esperei por esse dinheiro e nem soube se os outros receberam.
Todos os que foram comigo voltaram, menos o Alberto Martiri e o Francisco Borges, que estava desaparecido.
Mas o Francisco Borges não havia morrido, fora ferido e preso, Estava na Ilha das Flores no Rio de Janeiro. De lá escreveu ao meu irmão Hermínio e assim foi providenciada a vinda dele para São Manuel.
Estando todos aqui reunidos, a Associação Comercial prestou-nos uma homenagem.
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Passamos a tarde passeando pelos muitos jardins que Itapelinda tem. Antes não eram tantos…
Na manhã seguinte, após despedidas, beijos, abraços, voltamos de Itapetininga. Cinthya está feliz. Sente-se bem recebida pela família. Comenta a tudo momento como meu pai, Leon Francisco, foi tão amável com ela. Com a minha mãe, muito séria, disse:
– Eu quero que você cuide muito bem desse nosso único filho. Ele foi peralta e aprontava bastante. Mas sempre foi também muito dedicado aos estudos.
E minha namorada abraça minha mãe Carla, sem dizer nada.
Cinthya me diz que era como uma passagem de responsabilidade, um ritual de mãe para a moça que seu filho escolheu.
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Chegamos a São Paulo cinzenta, poluída, barulhenta e fomos para a Cidade Universitária da USP.
Estamos morando juntos no momento. Enquanto ela guarda o carro passeio pelo texto do meu bisavô Uth. Ainda bem que acabou a revolução e ele sobreviveu ileso.
Falo isso para meu avô Lolou, pois acabou de entrar na rede virtual. Ele não concorda. Diz:
– Fosse uma guerra, uma luta armada, uma revolução, o mal causado não tem cura. A pessoa pode voltar aparentemente apenas com feridas e problemas físicos. Mas você está esquecendo da parte mental. Matar pessoas não é mesmo próprio do ser humano. E esses fatos marcam a vida do ex-combatente.
Cinthya chega e fica olhando por cima do meu ombro o que leio e escrevo.
Pede licença para mim e ocupa o teclado.
– Senhor Lolou, minha pátria sofreu muitas guerras, revoluções, lutas armadas. Quando nasci havia a violência do Estado autoritário sobre nós jovens e crianças que não queríamos mais violência e sim democracia. O que você fala sobre as marcas do corpo e na alma quem foi combatente me faz lembrar meus pais e meus avôs. Se as cicatrizes do corpo físico podem até desaparecer, as da mente nunca somem e as pessoas passam a agir com essas perturbações, tomando decisões e se comportando como pessoas com “defeitos”.
– Que bom que você entendeu bem moça o que eu quis dizer. Assim foi meu pai durante a sua vida depois de 1932. Isso marcou o modo dele viver até a morte.
Não estou gostando da relação entre os dois. Sinto ciúmes. Digo para Cinthya sair e me deixar terminar a conversa. Ela cede, mas me olha de modo estranho.
– Lolou vou sair do lap top por estar cansado da viagem. Até mais.
E nem espero a resposta dele e desligo o equipamento. Minha namorada me abraça por trás e diz ao meu ouvido:
– Está com ciúmes de mim com o velho?
Ela dá uma risadinha. Me desvencilho dos braços dela e me levanto. Agarro a namorada e vou carregando, ela é bem leve, até a nossa cama.
– Agora sim, as coisas estão melhorando. Ela diz quando a atiro na cama e caio em cima dela.
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 (Décimo quarto texto do Uth Ricchetti)
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O presidente da Associação Comercial era o senhor Bento de Campos Mello (meu futuro sogro), mas quanto ao namoro com a sua filha ele continuava contra, mas nós dois queríamos namorar. 
Ora brigando, ora namorando.
Quando brigados ela passava pela Casa Ricchetti com o rosto virado, toda orgulhosa como uma Campos Mello que era.
A minha sobrinha e amiga Vera, que trabalhava também na Casa Ricchetti dizia:
– Tio, lá vem o “cabo de vassoura”!
Porque a Lucila naquele tempo era magra e altiva. Mas assim mesmo fomos levando o nosso namoro contra tudo e contra todas as intrigas.
Aconteceu que o senhor Bento descobriu que tinha sido enganado quando entrou como sócio da casa Toledo. Havia um livro da firma como sendo o verdadeiro, mas era o falso, o outro estava escondido no porão da casa comercial. O meu futuro cunhado Fernando foi quem descobriu.
O meu futuro sogro perdeu tudo (pois a firma estava falida). Com dinheiro emprestado ele e a família foram para o Capital (São Paulo) morar em casa de parentes.
Ficaram aqui para terminar o ano escolar: a Lucila, sua irmã Marina, seu irmão Antônio que era professor de latim, juntamente com as duas acima foram morar na casa de um amigo (o Ramires).
Um desses Ramires hoje é padre (o Angelin). Foi tipógrafo da casa Ricchetti e jogou bola comigo.
O meu cunhado também não queria nosso namoro. Nós conversávamos assim mesmo.
A Irmã da Lucila, a Marina namorava o Lauro Correia de Lara e a família também não queria e tudo isso não durou muito, pois o Antônio ficou doente e foi embora para São Paulo, levando as duas irmãs.
Recebi o recado pelo Lauro que todos iam partir. Fui à estação ferroviária e dei um jeito para as despedidas.
A Lucila ao entrar no seu vagão derrubou um pacote nos trilhos e o antigo moleque Uth conseguiu pegá-lo numa breve ginástica. 
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E assim nossa luta pelo namoro em São Manuel acabou. 
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Começou a luta agora em São Paulo (Capital). Depois de alguns dias, arrumei uma folga na Casa Ricchetti e fui a São Paulo descobrir o paradeiro da Lucila.
Passei em frente de diversas casas dos parentes dela. Foi um dos parentes dela, chamado Hermes quem me deu o endereço certo.
Estava (a Lucila) na Rua Sampaio Viana 238 no Bairro Paraíso.
Era a casa da irmã do Hermes, chamava-se (a prima) Maria Elisa Ferreira de Castilho, justamente prima pelo lado materno do meu ex-colega Anísio Floriano de Toledo. Encontrei também com a Marina, irmã da Lucila e ela confirmou o endereço dado pelo Hermes.
Era num domingo e logo depois do almoço segui para o Bairro Paraíso e dei de cara com a Lucila e um casal e mais uma menininha. Havia descoberto o paradeiro. Só nos olhamos e eu estava alegre por ter encontrado o que tanto queria.
Rodei pelo bairro até anoitecer e fiquei numa das esquinas à espera.
Não demorou muito a Lucila desceu acompanhada daquela menina e a pajem da mesma.
Ela disse que não podia mesmo me encontrar, pois estava recomendada pela mãe para evitar isso.
Foi o melhor tempo do nosso namoro.
Encontrávamos bastante passeando pelo Bairro.
A prima Maria Elisa tinha um apelido (Mém) era boa e compreendia o nosso drama. Pedia que tivéssemos juízo e deixava que a gente conversasse à vontade.
A frequência da casa da Mém era só de advogados parentes do Dr. José Ferreira de Castilho, que também era advogado.
A Lucila disse-me um dia que um dos advogados estava querendo namorá-la. Mas ela não deu respostas e continuava a se encontrar comigo e tudo passou. 
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Corro atrás de Cinthya pelas alamedas da Cidade Universitária. 
Ela é ágil e sinto dificuldade de alcança-la. Embora chorando, não deixa de correr e entra em uma das salas do prédio da ECA, Escola de Comunicações e Artes.
Quando chego à portaria, o porteiro não me deixa entrar.
– Cadê seu crachá moço?
– Estudo na Arquitetura e meu crachá ficou lá.
– Sinto, mas não pode entrar.
Saio da portaria e fico esperando que ela saia. Não sei por que ela reagiu de modo tão violento. Disse que eu estava agindo como filhinho de papai, cheio de luxinhos e não queria comer a comida que ela fazia. Não é nada disso, eu penso, estou me sentindo mal do estômago apenas. Quando vou dizer isso a ela, não me deixa falar e sai correndo e chorando. Vou ficar esperando. Uma hora ela tem de sair.
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Depois de duas horas de espera ela sai acompanhada, de braços dados, com um jovem estudante. Eu paro na frente dos dois e tento falar, mas ela se afasta levando junto com o rapaz.
Fico irritado. Sinto muitas cólicas agora agravadas pelo meu estado psicológico. Volto para o apartamento, pensando, que se dane! 
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Para distrair abro os arquivos do Uth e tento ler alguma coisa. Besteira, não consigo me concentrar. Vou ter de ler de novo quando me acalmar.
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 (Décimo quinto texto do Uth).
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De vez em quando embarcava para São Paulo (de trem, levava naquele tempo oito horas). Ia no sábado à noite e passava o domingo com a Lucila e à noite de domingo mesmo eu embarcava de volta para são Manuel.
O meu irmão Hermínio era muito rigoroso na minha ocupação, pois tomava conta da tipografia.
O Fernando, o irmão da Lucila, que estava morando em Santo Antônio da Platina (Estado do Paraná) veio a São Manuel para acabar o noivado com a Araci Padovam e me perguntou como eu ia de namoro com a irmã dele.
Eu respondi que sempre estava na mesma e disse que a Lucila estava morando na casa da parenta deles (Maria Elisa).
O Fernando então me perguntou:
– Você teria coragem de levar uma carta a papai? 
Eu respondi:
– Sim, pode entregar a carta, pois vou logo a São Paulo.
No sábado embarquei para a Capital e encontrando com a Lucila contei-lhe que o Fernando havia me dado uma carta para o senhor Bento e então ela disse:
– Eu vou com você.
Chegando em casa dos pais, ela entrou e avisou o pai que eu estava ali para entregar uma carta. O senhor Bento leu à carta e me perguntou:
– Você conhece o conteúdo da carta?
Eu respondi:
– Não, senhor.
– Pois ele me pede para deixar vocês namorarem. A Catita (Maria Elisa de Campos Mello, sua esposa) e eu consentimos.
Considere-se de casa.
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Quem não gostou foi o irmão da Lucila, o Álvaro. Ele falou:
– Se o Uth entrar aqui eu saio!
E saiu mesmo. 
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Estava contente, mas ao mesmo tempo triste com a atitude do Álvaro, pois nunca fizera mal a ele.
Querendo continuar o nosso romance achei que havia ganho um ponto a meu favor podendo namorar a Lucila em sua própria casa e não me lembrei mais do Álvaro. 
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Dias depois na casa da avó Maria Eulália (avó de Lucila) eu dei o primeiro beijo na minha futura esposa.
Chegando em casa de minha tia Carmela, onde eu me hospedava encontrei uma carta do meu irmão Hermínio. Eu havia pedido para sair no sábado e no domingo e, no entanto passara em São Paulo uma semana.
Estava, pois despedido. E mesmo desempregado estava feliz.
Passara uma semana conversando com a Lucila e até esquecera a obrigação de voltar.
Falei com um amigo (na Capital) e arranjei trabalho numa firma para eletricista, pois eu possuía alguma prática nesse setor. A firma era “Martinho Claro”; grande firma!
O ordenado era pequeno para o ônibus e a pensão. Uns dez dias ainda fui de ônibus e depois a pé, do Cambuci até a cidade.
Mas em minha opinião eu achava que ia vencer.
Um dia encontrei o meu irmão Fausto. Ele me achou muito magro e pálido e perguntou o que havia acontecido comigo e eu contei que havia perdido o emprego em São Manuel e estava trabalhando na Capital.
Ele me levou para a sua casa e lá fiquei muito tempo até o Hermínio me chamar de novo.
Fui tomar conta de uma filial da Casa Ricchetti em Bauru. Essa filial durou pouco.
O Hermínio achava que as despesas eram muito grandes e o lucro pouco e acabou com a filial. Voltei para São Manuel.
Nesse tempo briguei com os meus futuros sogros.
Quando ficamos noivos arranjaram para a Lucila trabalhar na Companhia Telefônica na Seção de Informações. Trabalhava em diversos horários. Num desses horários ela trabalhava até às 10 horas da noite. Voltava sozinha para casa e a Rua Sete de Abril era muito perigosa à noite.
Comecei a ir buscá-la e o meu futuro sogro não gostou e tirou a Lucila do emprego e eu não sabia de nada. Fui buscá-la e não apareceu e só daí fiquei sabendo que ela estava em casa, sem trabalhar.
Ninguém falava nada e a Lucila não aparecia e eu nem chegava perto da casa de meu sogro. Um inferno! Encrenquei com todos.
Eu só queria que contassem o porquê desse sumiço. Eles estavam acabando com o nosso noivado.
Um dia, na Avenida Angélica, quando ia tomar um ônibus vi a Lucila saindo de sua casa na Rua Martínico Prado e fui falar com ela e não consegui.
Ela correu para dentro de casa. Eu entrei na sua casa. Eu entrei na sua casa e só encontrei com a mãe (dona Catita) Ela então falou que a Lucila não queria mais nada comigo. Eu queria saber da própria boca de minha noiva e nada.
Ela entrou em casa por uma das portas e saiu por outra. Então estava tudo terminado mesmo. Adeus noivado!
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Digito para o Lolou:
– E eu digo: Adeus namoro!
– Mas o que é isso? Vocês dois estavam tão bem! O que aconteceu?
– Uma coisa besta, vô Lolou. Estava mal de estômago e indisposto para comer o que ela havia feito. Ela me chamou:
– Está pronto, Kai, vem jantar!
Eu não fui. Estava mal não conseguia nem falar. Ela veio até a cama onde eu estava deitado.
– Não escutou que eu chamei você?
Tentei dizer o que se passava comigo. Mas ela devia estar nervosa com alguma outra coisa e já foi falando sem parar:
– É a minha comidinha né? Não é como a sua lá dos seus pais e avós, né?
Como eu não conseguia dizer nada, mas tentava levantar da cama, ela se enfureceu me jogou de volta para a cama e saiu correndo do quarto, do apartamento, chorando. Fui atrás, mas não consegui falar com ela.
– Calma Kainã! Ela volta e você explica tudo!
– Ela não volta. Não voltou. Faz dias que não aparece aqui ou na faculdade. Vou sair da rede. Estou nervoso.
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Sem a namorada só me resta continuar a ler a saga do Uth Ricchetti.
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 (Décimo sexto texto do Uth)
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Voltei para a casa do meu irmão Fausto
Dias depois meu irmão arrumou emprego para mim numa Seção do Departamento da Municipalidade. A Seção era de águas e eu viajava muito juntamente com os engenheiros.
Numa dessas viagens fui até a cidade de Cotia. Levava um dinheiro para obras de águas e esgotos. Tomei muita chuva nesse dia.
Chegando em casa meu irmão Fausto soube por uma das minhas amigas que na casa ao lado morava uma bonita loura.
Essa moça estava há tempos me observando. Eu ainda não sabia, pois estava noivo da Lucila. Agora que terminamos eu iria notar a vizinha. Quando noivo eu entrava em casa, jantava e logo saía.
A loura esperava com paciência. Numa tarde quando ela ia ao dentista eu a segui e aí começamos o namoro.
Seu nome, Marieta. Trabalhava com a madrinha, uma francesa muito chata. Tinha um irmão e uma irmã. Família simples. Todas as vezes que ela ia ao dentista nós nos encontrávamos. Era meiga, dócil mesmo. A mãe gostou logo de mim. O pai, francês, bebia muito e não foi com a minha cara. (Que sina a minha!).
O senhor pai de Marieta nem me recebeu e a mãe pediu desculpas pela falta de educação do marido.
A tal madrinha contava ao pai da moça o nosso encontro. Conversávamos quando podíamos. Ela arrumou um jeito de me mandar uns bilhetes enrolados numa pedra e atirava para o lado de casa. As respostas iam enroladas para o lado da casa da moça. Assim era a nossa correspondência, sempre de madrugada e marcávamos assim os nossos encontros.
Nossos encontros protegidos da mãe dela e da irmã ora no bairro da Mooca, na Igreja Coração de Maria, onde ela era “filha de Maria”. (uma congregação católica).
No mês de maio era o tempo que mais nos encontramos. Na Igreja Coração de Maria, eu comecei amizades com os congregados. Fiquei amigos de todos. O presidente da Congregação pediu a minha transferência de São Manuel (Congregação) para o Coração de Maria.
Na primeira eleição sai vencedor como vice-presidente. A outra chapa saiu perdendo e o vice era um tal de Artur que gostava de Lucila.
O irmão da Marieta era também congregado mariano. Era contra o nosso romance, mas depois ficou muito meu amigo.
Essa vice-presidência durou pouco.
No próximo carnaval, o padre quis que fizéssemos retiro nos três dias. Protestei (eu estava como presidente). Eu achava que fosse facilitado e quem desejasse poderia ir aos bailes. Disse-lhe, depois, que ser católico não era ser escravo. O padre não gosto e declarou:
– “Aquele que tomasse parte no Carnaval seria suspendo”.
Nomeou uma comissão para fiscalizar. Protestei mais de nada valeu. Nós tínhamos de ficar na Congregação até a meia-noite. Eu protestei outra vez. Achava tudo um absurdo.
Quando terminou o carnaval a comissão apresentou uma lista enorme de quem esteve nos bailes. Tanto falei dessas barbaridades que fui expulso e a diretoria em protesto pediu demissão. Só ficaram os santos do pau oco. Formaram uma nova diretoria da vontade deles. Ninguém foi expulso. Na minha diretoria estavam dois irmãos da Lucila.
Continuando o namoro com a Marieta.
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Eu leio sozinho, sem a Cinthya. Mas perdeu muito a graça de ler esses textos. Eu gostava das observações que ela fazia. De qualquer modo continuo a ler.
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Meu irmão Hermínio abriu uma filial em Bauru que recebeu o nome de Casa Ipiranga. Fui tomar conta juntamente com o Marcílio Juliano, a Odete minha sobrinha e mamãe.
O meu irmão Hermínio vinha aos domingos e se encontrava lá com a esposa que estava com a gente. Eu tomava conta da loja e o Marcílio Juliano na tipografia.
Duas vezes por mês ia a São Paulo ver a Marieta. Ia aos sábados à noite e voltava no domingo à noite.
A filial durou seis meses. O meu irmão Hermínio achava que não ia dar lucro. Muitos deram conselhos para que ele aguentasse os primeiros tempos. Nada Voltamos mesmo par São Manuel e daqui para a Capital (só eu). Fui arrumar outro emprego.
Nesse tempo a Lucila veio da casa da prima e soube do meu namoro com a Marieta. A Lucila conhecia algumas “filhas de Maria” (uma congregação da Igreja Coração de Maria). Conhecia também meu amigo Osório. Era congregado mariano como eu. Ele achava que eu e a Lucila ainda esperávamos ter um futuro juntos. Eu, porém, não queria saber de nada. Havia sofrido muito durante aquele romance.
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Lolou não entra na Internet já faz alguns dias. Acabei lendo muitos textos do bisavô Uth e queria comentar com ele. Por que não entra?
Queria também dizer a ele que até que enfim a minha ex-namorada veio até aqui no apartamento.
Ouviu tudo o que tinha a dizer. Deu um sorriso triste dizendo que a vida é assim mesmo, feita de encontros e desencontros, que estava saindo com o Moacir, que estuda na ECA, mas era mais amizade.
Se despediu de mim. Me deu um abraço, não aceitou o meu beijo, virando o rosto e se foi. Sinto saudades dela. Embora não sinta que ela quer continuar nosso namoro, fiquei contente por ter vindo até aqui.
Se Lolou não entrar na rede para falar comigo até amanhã eu vou ligar para ele pelo celular.
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 (Décimo sétimo texto de Uth Ricchetti)
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A Marieta foi muito meiga e boa na pior hora da minha vida.
Aguentava a madrinha e o próprio pai contra nós.
Eu evitava conversar por conversar com a Lucila para não ferir a Marieta. Só de conversar com suas amigas ela ficava triste e calada. O Osório falava sempre com a Lucila, mas eu saía de perto.
Um dia a Marieta veio chorando e me perguntou se eu ainda amava a Lucila e eu perguntei:
– Por quê?
– Ora, pois, você não sabe que a Lucila viu a aliança de noivado no meu dedo e disse: “Não adianta essa aliança aí no seu dedo menina. Quem vai casar com ele sou eu.”.
Eu disse a Marieta:
– Olha, a Lucila foi o passado e você é o presente. E ela falou:
– Duvido que a Lucila ame tanto você como eu amo!
E acontece que estou me casando com Lucila no dia 19 de janeiro de 1939.
Alguém estava na igreja escondida, num cantinho chorando.
Era a Marieta. 
Mas isso eu conto mais tarde.
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No dia 19 de janeiro de 1938 encontrei novamente com a Lucila, no bairro Paraíso e o nosso amor de infância voltou.
Marcamos casamento para um ano depois. Ninguém teve culpa desse reencontro. Apenas aconteceu ou foi o destino ou um juramento que fizemos aos pés de Cristo antes de embarcar para a Revolução.
Houve um motivo sim, pois eu havia voltado a São Manuel para continuar a trabalhar na casa Ricchetti e aí conheci uma garota de nome Maud.
Minha irmã Helena estava casada com Eduardo Alves, gerente do armazém da fazenda Araguá.
Vindo a São Manuel visitar mamãe (ela Helena) me convidou para passar uns dias com ela e qual não foi minha surpresa ao chegar lá.
Outro trabalhador do armazém era justamente o pai da tal Maud. 
Maud havia sido namorada do administrador da fazenda Sobrado e ele se chamava Pedro Urquiza. Estava trabalhando também no tal armazém da fazenda. Fiquei amigo dele.
Nas nossas conversas ele me alertou quanto à Maud.
– Cuidado! Ela vai dar dores de cabeça a você! A sua irmã não vai gostar vendo você em tal companhia.
E não gostou mesmo. Eu queria uma companheira para andar a cavalo, passear por toda a fazenda e era só.
Os pais de Maud logo começaram a fazer convites para almoçar. Meu cunhado Eduardo falou:
– Cuidado Uth! Você veio para São Manuel para trabalhar na Casa Ricchetti, para se casar com a Marieta e fica aí saindo com essa moça.
Fiquei mais uns dias na fazenda e depois fui trabalhar na Casa Ricchetti.
Tudo corria bem se o pai dela não tivesse colocado no jornal “Tempo” o nosso noivado e cartões impressos de participação.
Fiquei louco de raiva, pois eu não havia falado nada disso. Fui falar com o pai dela e ele disse simplesmente:
– Pois eu considero você noivo da Maud, pelo tempo que vocês passaram juntos na fazenda.
Caíra numa armadilha. Mais eu era macaco velho e saíra dessa.
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 (continua)
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Helio Rubens
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