julho 04, 2024
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Rennie Colle: conto 'O milagre'

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Rannywell D. Colle: conto ‘O Milagre’

 

O céu escureceu de repente. A profecia! Lembrei. Estamos nos últimos minutos. Os raios se sucediam um após o outro, e o espetáculo de luzes era seguido por trovões assustadores. Então a água desabou. Forte e violenta, ela batia com suas grossas gotas contra o chão.

Eu observava tudo da varanda. Era um espetáculo. Então recordei-me de que era hora dos remédios de Mirna, e fui a seu quarto.

Ela jazia deitada há tanto que eu nem mesmo me lembrava da última vez que havíamos sido felizes juntos. Agora, a felicidade para mim era vê-la se alimentar direito, quando ela conseguia comer, e o esboço de um sorriso de agradecimento seu pela comida estar boa; e a dela talvez fosse simplesmente não sentir dor. Isso, e as lembranças, quando sua memória voltava; lembranças que me faziam chorar. Havíamos sido verdadeiramente felizes…

Eu entrei no quarto e para minha surpresa ela estava em pé, havia se trocado e se maquiado. Parecia tão jovem quanto anos antes e transmitia uma alegria que eu não via em sua face desde que a doença a roubara de seu rosto. Ela olhou para mim radiante; depois veio a meu encontro e disse:

– Oi amor! – dando um beijo em meus lábios como se simplesmente tivesse acordado de uma boa noite de sono: – Você tem feito tanto por mim. Obrigada.

Então eu não consegui me segurar mais, e comecei a chorar. Era um milagre que eu via ali. Ela estava curada. Bem. Em pé à minha frente. E vendo minhas lágrimas ela me abraçou com carinho e compreensão como se entendesse minha carência e estivesse ali para me curar de minha solidão…

A profecia, os raios, a chuva, tudo perdeu a importância! Se fosse preciso o fim dos tempos para que ela estivesse curada eu estava feliz com isso. Então, tentando disfarçar um pouco minha emoção eu a respondi:

– Eu, eu não fiz mais do que a minha obrigação…

– Não, você fez mais, bem mais, e você sabe disso: obrigada pela paciência, pelo carinho, pelo amor e pela dedicação… você tem sido um excelente esposo!

– Não diga isso, por favor, você me fará chorar ainda mais…

Então ela ficou quieta. E abraçada a mim também chorou um pouco. Em seguida, ela foi até a janela, observou a chuva torrencial e disse:

– Sabe o que eu acho? Eu acho que quando essa chuva passar nós deveríamos sair. Dar uma volta sabe? Ver um filme, comer pipoca! Deus! A quanto tempo eu não como pipoca? Andar no Shopping, ver vitrines, comer fora, ir ao supermercado… eu queria tanto um chocolate agora!

Ouvindo ela falar com aquela jovialidade e segurança, ver aquela vivacidade nela fizeram que eu me tornasse uma torrente de lágrimas. Era um milagre! Eu estava sendo abençoado com um milagre! Quando eu já não esperava mais nada da vida, eu a ganhei de volta.

E se tudo aquilo fosse um sonho eu não queria mais acordar. Minhas preces foram atendidas, e eu estava grato. Fomos até a cozinha, eu ia fazer um café para sentarmos e conversarmos quando ela me interrompeu:

– Sentá lá – ela me disse – deixa que eu faço o café, é o mínimo depois de tudo que você tem feito por mim por todos esses anos, você merece.

Fui sentar-me à mesa ainda sem acreditar direito no que estava acontecendo, tentando conter meu pranto, enquanto ela fazia café. Depois de mais de sete anos sem esperanças, eu me sentia como se estivesse no céu. Então lembrei novamente da tempestade. E da profecia. E dessa vez fiquei apreensivo.

Mirna queria muito sair, ver as pessoas, sentir a vida novamente. Ela me encheu de perguntas de nosso filho: como ele estava? Tinha casado? Era feliz? Disse que queria vê-lo e abraçá-lo também; que sentia muito por estar ausente por tanto tempo… E eu tive que contê-la, explicar a ela que ele morava longe, em outra cidade, à mais de trezentos quilômetros de distância, mas que nos falávamos semanalmente pelo telefone e nos víamos ao menos uma vez por mês. E que ele estava feliz, e tinha uma namorada.

Pensei em ligar para ele e contar a novidade, porém o celular estava sem sinal e depois acabei esquecendo… e a tempestade, e a escuridão, duraram ainda por três dias e três noites; e por todo esse tempo a minha felicidade que a princípio fora completa, era prejudicada por uma apreensão: a profecia. Não era justo, eu pensava, que finalmente eu estivesse novamente com o meu amor comigo, lucido e alegre, apenas para testemunhar o apocalipse…

 

*          *          *

 

Quando Tiago ligou para seu pai, este não atendeu e não retornou a ligação. Agora, ele ligava e caia direto na caixa postal. Ele estava aflito. Insistira tanto para que ele e sua mãe fossem morar com ele. Argumentou tanto. Mas seu pai era teimoso. Não queria deixar sua casa e sua cidade. Argumentara que tinha sua vida ali. Seus amigos. E Tiago sabia que ele estava certo, por isso concordou. Não obstante não conseguia deixar de pensar que poderia ter insistido mais. Esperou mais um dia, mas quando a ligação caiu novamente na caixa postal, concluiu que já havia esperado demais. Avisou no seu trabalho que precisava de uma licença e viajou aflito para sua cidade natal …

*          *          *

 

Ao final desses três dias, porém, o sol brilhou novamente. E Mirna estava louca para sair. Eu, no entanto, fiquei praticamente paranoico, tinha medo: medo de que lhe acontecesse alguma coisa quando estivéssemos fora; medo de que ela se sentisse perdida com todas as mudanças que o mundo tivera nesses últimos sete anos; enfim, eu tinha medo de perdê-la novamente… não obstante eu não conseguiria, e não queria mesmo, segurar sua sede de vida porque era injusto. Ela merecia viver um pouco depois de todos esses anos. E eu também. Por isso domei meu medo e saímos.

Fomos a praça, comemos pipoca; alimentamos os pombos enquanto eu lhe contava tudo que tinha acontecido na nossa família e no mundo: contei como foi formatura de Tiago, como era o seu trabalho; falei da minha aposentadoria, e de quem era o presidente do Brasil agora, as novas descobertas científicas que estavam revolucionando a medicina: que estávamos mais perto da cura do câncer e da AIDS; falei da guerra na Síria, dos refugiados, etc

Depois disso vimos as vitrines das lojas, e rimos um pouco da desconcertante moda atual. Comemos fora. Fomos ao Shopping e ao cinema; fomos ao supermercado e compramos chocolates, muitos e muitos chocolates… E quando voltamos para casa fizemos amor, adormecendo abraçados…

No dia seguinte, ela me trouxe café na cama. E eu não conseguia conter meu sorriso. Estava vivendo novamente os melhores dias de minha vida…

Depois do café, todavia, ela me disse que a gente tinha que sair, que ela queria me apresentar algumas pessoas da sua família que haviam lhe ajudado bastante…

Fiquei assustado e triste, achei que ela tinha enlouquecido. E já via todo o meu mundo desabando novamente com mais dias de aflição e tristeza. Percebendo o meu olhar angustiado, Mirna então me olhou nos olhos com ternura e disse:

– Não fique assim meu amor, eu estou bem, e estamos juntos agora! Escuta querido: eu só voltei para te buscar, nós estamos juntos e vamos ser felizes novamente, não se preocupe meu amor…

 

*          *          *

 

No carro, apreensivo, Tiago não conseguia parar de pensar nos dois: não eram tão velhos, seu pai estava com sessenta anos agora, e sua mãe era um pouco mais nova. No entanto, a doença de sua mãe exigia muito de seu pai, e o envelhecera bastante. Não havia cura e era degradante. Ele não entendia porque seu pai não a colocara num hospital onde ela teria sido cuidada por enfermeiros e médicos competentes. Mas, mais que isso, não se conformava por ter deixado os dois naquelas condições, e ido morar tão longe. Seu trabalho exigia, mas trabalho não é tudo. E assim, com esses pensamentos foi por toda a viajem até a casa de seus pais.

Em frente a casa estremeceu: fachada da casa o trazia recordações… ele crescera ali, naquela rua. Tocou repetidas vezes a campainha, e ninguém atendeu. Chamou. Nada. Então, apreensivo, pegou sua cópia da chave e entrou. Estava uma pilha de nervos quando foi até o quarto e parou à porta.

Ali estava seu pai e sua mãe, deitados abraçados e seminus. O quarto transbordava a aura de uma alegria sobrenatural. Seu pai sorria e sua mãe, aconchegada com a cabeça em seu peito, trazia também um sorriso em sua face.

Várias barras e embalagens de chocolate abertas jaziam no chão ao lado da cama…

Aquela cena o emudecera. Eles estavam mortos. Entretanto a expressão estampada em seus rostos irradiava uma serenidade que era reconfortante. Com lágrimas nos olhos, mas estranhamente aliviado e feliz por vê-los daquele jeito, Tiago ligou para uma agência funerária.

Helio Rubens
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