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Soy Pedro, vengo de las Misiones

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Elaine dos Santos: ‘Soy Pedro, vengo de las Misiones’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem criada por IA do Bing – 10 de março de 2025,
às 11:32 PM

Pedro, o Missioneiro, nasceu nos Sete Povos das Missões, não conheceu a mãe, uma indígena, que faleceu durante o parto, ela esvaiu-se em sangue:

“deitada de costas, o sangue escorria-lhe das entranhas, empapava cobertores e pingava nas gamelas que os enfermeiros haviam colocado ao pé do leito (…). De olhos muito abertos – olhos de animal acuado -a índia [que fora encontrada pelos indígenas abandonada no meio do caminho, já em trabalho de parto] mirava fixamente o cura, enquanto de sua boca entreaberta saía um ronco estertoroso”. (VERISSIMO, 2000, p.36)

No hospital da Missão, outros doentes gemiam, lamentavam-se como se sentissem a morte rondando o local, no entanto, enquanto uma vida findava, outra vida, cheia de viço, dormia em um berço tosco, tinha a pele muito mais clara que a mãe e os dois padres, que o observavam, logo entenderam que a criança era filha de um tropeiro paulista.

“Aqueles malditos vicentistas!” – pensou Alonzo. “Não se contentavam com prear índios e levá-los como escravos para a sua capitania: tomavam-lhe também as mulheres, serviam-se vilmente delas e depois abandonavam-nas no meio do caminho, muitas vezes, quando elas já se achavam grávidas de muitos meses. Aquele não era o primeiro caso e certamente não seria o último”. (VERISSIMO, 2000, p. 36)

Batizado Pedro, o menino cresceu na Missão, aos cuidados do cacique Dom Rafael, seguido de perto pelo Padre Alonzo. Aos oito anos, o mestiço já sabia ler, escrever, fazer contas e falava, além do guarani, espanhol, lendo, com relativa facilidade textos em latim.

Tornou-se coroinha e, com os outros meninos, ao cair da tarde, rezava a Ladainha de Nossa Senhora. Eis que lhe chamou a atenção a expressão “Rosa Mística”, que passa a povoar-lhe o pensamento, demorou um tempo para questionar o significado ao Padre Alonzo que lhe explicou que Rosa Mística é uma referência à Nossa Senhora, Mãe de Deus.

A vida seguia nas Missões: o menino aprendia novos ofícios, a doutrina cristã, elementos musicais, participava da limpeza do trigo, tomava parte no teatro e nas danças religiosas.

            Pedro também gostava de andar pelos campos, caçar passarinhos. Por vezes, porém, intrigavam-lhe alguns mistérios: o dia e a noite, o trovão e o relâmpago, a morte.

Com o passar do tempo, Pedro, o Missioneiro, passou a afirmar que via Nossa Senhora, em carne e osso. Teimava com os caciques, com os padres. Dizia-se filho da Virgem (“hijo de la Virgen”).

Do ponto de vista da crítica literária, há uma explicação muito plausível para o sangramento da mãe indígena e essa suposta filiação à Virgem Maria. Pedro, segundo o romance, é o ancestral mítico do gaúcho, o primeiro homem – meio branco, meio indígena -, fruto de uma relação fora do casamento, o que justificaria essa purificação pelo sangramento da mãe e a maternidade atribuída à Mãe de Deus.

Do outro lado do Oceano, em 1750, as Coroas de Portugal e Espanha, assinaram o Tratado de Madri, a Colônia de Sacramento, fundada pelos portugueses, passaria para o domínio espanhol. Os Sete Povos das Missões tornar-se-iam portugueses. Esqueceram de combinar com os jesuítas espanhóis e com os indígenas!

As Guerras Guaraníticas estenderam-se entre 1752 e 1756, quando os jesuítas foram expulsos do Rio Grande do Sul, muitos indígenas foram mortos ou presos e os povoados arrasados. Antes do fim, Padre Alonzo presenteou Pedro, o Missioneiro, com um punhal e incitou-o a fugir.

A história fictícia de Pedro Missioneiro, descrita no capítulo “A fonte”, do volume I de “O continente”, que compõe a trilogia de “O tempo e o vento”, foi-nos legada por Erico Verissimo, que, somente em “O tempo e o vento”, brindou-nos com Ana Terra, Rodrigo Cambará, Bibiana Terra Cambará, a Teiniaguá, Licurgo Cambará, para me restringir aos volumes de “O Continente I” e “O Continente II”.

O ano de 2025 é excepcionalmente significativo para a literatura produzida no Rio Grande do Sul, afinal, marca 120 anos de nascimento de Erico Verissimo, um dos mais profícuos prosadores deste chão. Além disso, o autor faleceu em 28 de novembro de 1975, 70 anos atrás.

Mais do que nunca é o momento para retomar a grandeza de sua obra, apenas não apenas em “O tempo e o vento”, a mais conhecida; estudar, analisar, discutir os valores, as tradições, reler à luz da moderna teoria da literatura, enfim, revisitar um pouco da própria História oficial e oficiosa do Rio Grande do Sul. Fica o convite para que você leia os volumes de “O retrato” e “O Arquipélago”, que completam “O tempo e o vento” e permitem entender melhor como se forjou a sociedade do estado mais meridional do Brasil, sob a ótica da Literatura. Seja bem-vindo!

Elaine dos Santos

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2 thoughts on “Soy Pedro, vengo de las Misiones

    1. O Rio Grande do Sul, segundo o meu ponto de vista, é cheio de peculiaridades: nascemos espanhóis, segundo o Tratado de Tordesilhas (1494), que traçava uma linha imaginária entre Belém (PA) e Laguna (SC), o que ficasse a oeste era espanhol.

      Em 1534, há o primeiro registro histórico da barra do Rio Grande (a cidade portuária) no mapa de Gaspar de Viegas, mas o povoamento só começaria em 1737, justamente em Rio Grande com a construção de um forte militar para dificultar o contrabando entre Laguna e a foz do Rio da Prata. Por essa razão, ocorre o Tratado de Madri (1750), a dizimação dos guaranis nos Sete Povos e o grande engodo aos ilhéus, da região dos Açores, “convidados” a ocuparem a região, eles foram se empilhando no Desterro (atual Florianópolis), depois em Rio Grande – espaço em que não se plantava nada, era churrasco no café da manhã, no almoço e na janta, até serem acolhidos por Jerônimo D’Ornellas, na região de Porto Alegre. Nunca chegaram aos Sete Povos das Missões.

      É uma civilização forjada no lombo do cavalo, na briga com os castelhanos, portanto, na força, na virilidade, na violência.

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