Elaine dos Santos: “Os nossos, os outros: ‘O vergalho’”


às 10:04 PM
Não ousaria tecer digressões sobre a obra literária produzida por Machado de Assis na exiguidade de um breve ensaio, mas os seus textos são fonte constante de inspiração para refletir sobre o ser humano e a nossa sociedade.
Recentemente, na região central do Rio Grande do Sul, houve um crime (creio que é a palavra mais adequada), em que um agricultor, lenhador, teria investido contra a polícia ambiental e foi morto com três tiros – as imagens foram captadas por câmeras de segurança interna da propriedade, mas nem todas as ações ficam claramente evidenciadas.
A primeira impressão que emergiu (parafraseando Chapolin Colorado: “Quem poderá nos salvar” se a polícia mata? Teria havido uma denúncia feita por vizinhos de desmatamento ilegal, teria sido mera coincidência a presença da polícia ambiental na propriedade. O agricultor teria se agitado, investido contra os dois policiais com um machado.
A segunda questão, que me foi posta pela esposa de um ex-aluno, foi: por que nos choca tanto a morte de um igual se, no Brasil, pessoas são mortas diariamente pelas forças de segurança, quer seja por tiros dirigidos diretamente a elas ou por balas perdidas em tiroteios?
De imediato, o capítulo “O vergalho”, do romance ‘Memórias póstumas de Brás Cubas‘, considerado a primeira obra realista de Machado de Assis, veio à memória.
O narrador seguia pela rua e ouviu os impropérios ditos por um homem ao seu escravo. Achegou-se e encontrou o seu ex-escravo Prudêncio, já alforriado, a bater sem medida em um escravo que adquirira. Solicitou que Prudêncio perdoasse o escravo, o que ele fez sem demora, demonstrando resquícios da submissão absolutamente servil.
Brás Cubas seguiu o seu caminho e passou a tecer reflexões sobre a cena que assistira, sobre a (re) duplicação da violência e ponderando que Prudêncio, que fora seu escravo, cobrava com juros a violência que sofrera.
O Brasil é um país forjado na força, na violência. Os portugueses quando aqui chegaram, quando começou o efetivo povoamento, por volta de 1530, principiaram uma verdadeira chacina do povo indígena que não se resignava à escravidão. Por outro lado, inúmeras mulheres indígenas foram sexualmente violentadas, nasceram mestiços sem pai.
Aliás, esse modo de agir acabou encontrando eco exatamente entre os senhores de engenho, que emprenhavam as suas melhores escravas para, com os filhos mestiços delas, aumentarem a mão de obra nas fazendas. Há registros que se pode buscar na própria História oficial, que escravos homens eram escolhidos para engravidar escravas mulheres para que nascessem crianças mais saudáveis para o trabalho.
Mentalmente, revisito a História do Rio Grande do Sul, que foi feita sob o lombo de cavalos, o estado mais meridional do Brasil, um dos últimos a ser ocupado, região em que vivo na atualidade.
Primeiro, vieram bandeirantes que expulsaram jesuítas portugueses. Quando os jesuítas espanhóis estabeleceram os Sete Povos das Missões, era o tempo dos tropeiros paulistas que vinham em busca do gado para produzir charque e das mulas para o transporte nas Minas Gerais. Nesse caso, valiam-se das mulheres indígenas como empregadas, como amantes, abandonando-as quando partiam, muitas delas encontrando-se grávidas.
A violência entre nós, como ao escravo Prudêncio, que pertencera a Brás Cubas, faz parte do imaginário social. Nos últimos anos, parece ter sido banalizada, bem como a morte – mas a morte do outro: do negro, do homossexual, da mulher. Que estranha sociedade formamos que somente a morte ‘do nosso’, do branco, do agricultor, do reconhecido como trabalhador, consegue nos assustar, comover?
Hoje, como nos tempos de doutorado, quando analisamos o romance ‘O matador‘, de Patrícia Melo, eu tenho medo dessa sociedade. Enquanto comentávamos a obra de Patrícia Melo, uma colega disse: “Mas eles (os pobres, os nascidos na periferia) não têm apego à vida!” Outra colega replicou: “Como tu consegues afirmar isso? Eles, os outros, também tiveram uma mãe que os amou, sonhos que se frustraram, desejos não realizados.” Somos, enfim, todos humanos. Por que essa relação sempre tão violenta e tão ‘comum’?
Elaine dos Santos
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Natural de Restinga Seca (RS), é licenciada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. Possui 29 artigos acadêmicos publicados em revistas nacionais na área de Letras com classificação Qualis, além de participação em eventos com trabalhos completos e resumos. É autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe, adaptação de sua tese de doutorado, e coautora em outros livros versando sobre Direito, História, Educação e Letras. É revisora de textos acadêmicos, cronista com textos publicados em jornais regionais e estaduais e participação em mais de 80 antologias.


Elaine dos Santos, como sempre, nos apresenta excelente textos, nos trazendo grandes matérias, conhecimento e reflexos. Parabéns por mais um beli texto.
Renato, meu querido! Obrigada pelo seu comentário, pela confiança de sempre. Por mais que, às vezes, a esperança se perca por aí, seguimos atrás dela, recuperamos e seguimos adiante. Abraço.
Prof. Elaine, obrigada pela reflexão. A humanidade é desumana, como dizia Renato Russo.
Oh, Laís! Obrigada pelo feedback, como diz o Adriano Zinn, é muito bom um carinho cognitivo. Há dias em que a gente descrê na humanidade, depois, reúne esforços e segue adiante…em todos os tempos, em todas as latitudes e em todas as longitudes, o ser humano sempre foi incompleto e bruto.
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