setembro 18, 2024
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O leitor participa: Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: 'Dizia minha tia…'

 Tia Nena

O leitor participa:

Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘Dizia minha tia…’

 

Dizia minha tia, com seu jeito zombeteiro, que quando Deus não dá filhos o diabo dá sobrinhos. A ela Ele deu uma filha e seu rival uma “renca” de sobrinhos.

Não tenho certeza de quem dá o que quando penso em relações infernais entre pais e filhos e celestiais entre tios e sobrinhos.

Mas eu gostava de ouvi-la dizer isso quando agradecia pela nota alcançada com a sua reza. Sim, eu explico.

Não me lembro de ter comido na infância algo que só ela cozinhava ou fazia muito bem. Ou de um passeio de domingo que fizemos e me marcou por toda vida. Não. Ela era a tia que costurava e rezava para todos nós seus sobrinhos. E como recorríamos à sua reputação com Deus.

Era a tia protetora das provas escolares e socorro em nossos exames de final de ano.

Por mais que estudássemos nossa confiança só vinha quando ela, comovida, abria a gaveta da máquina de costura, pegava uma vela (que nunca faltava por lá) e a acendia sempre no mesmo lugar: na cozinha, ao lado do filtro de barro suspenso numa cantoneira de mármore branco, acima da pia. Um sinal da cruz feito sem demora, um Pai Nosso e uma Ave Maria sussurrada com nosso pedido “nos pés de Jesus” e um amém pronunciado com muita fé selava a garantia de uma nota satisfatória e abençoada.

Quando ia à sua casa provar alguma roupa alinhavada, impaciente esperando que marcasse com alfinetes o retoque, eu olhava para o filtro lá no canto ao alto e perguntava curiosa: pra quem a vela, tia?

Sem desviar a atenção do trabalho, respondia que era para fulano, que tinha prova de matemática com o professor Jair, ou para cicrana, que tinha prova de História com a professora Ana. O nome do professor acompanhava a reza. Não bastava pedir pela vítima, mas para que Deus abrandasse o coração de seu algoz.

Em meio às suas rezas, ela nos contava histórias de sua vida e de sua família que tanto amava. De como sofreram no sítio, órfãos de pai. De como seus irmãos (meu pai um deles) tinham começado a trabalhar cedo. De como ela tivera fé desde menina. De como minha avó tinha sido uma mulher enérgica e forte ao criar os filhos, sozinha. De como eles eram felizes com tão pouco. De como seu marido (meu tio) quase perdeu o próprio casamento por um cochilo antes da cerimônia. Eu as ouvia mais de uma vez e não me cansava de ouvi-las quantas vezes mais ela as contasse.

O ápice da minha atenção ficava para o desfecho, onde ela fazia uma citação própria ou de outrem que dava sentido a tudo dito. “Como dizem, para ser feliz basta um copo de água e um raio de sol.”; “Não se deve confiar nem nos dentes da boca que mordem a sua língua”; “Tem burro que puxa carroça e burro que dirige carroça”; Nem sempre eu entendia de pronto o que aquilo queria dizer, e desvendar seu significado era um rico passatempo.

Com o tempo, ela parou de costurar e mudou de endereço, no mesmo bairro. Quando fui conhecer a casa nova, quase sem respirar, ansiava por chegar à cozinha. Agora bem maior, o cômodo parecia majestoso, mas, para meu alívio ─ sim ─ havia ali uma cantoneira de granito e um filtro de barro sobre ela acima da pia.

Com o passar dos anos e a comemoração dos nossos diplomas com nossa santa protetora, as velas continuaram a surgir, agora da gaveta da pia, para seu canto abençoado.

Nossos pedidos agora eram de outras naturezas: uma entrevista de emprego, uma viagem a trabalho, uma briga de namoro, a compra de uma casa, a venda de um carro, uma angústia sem motivo, uma febre leve em nossos filhos.

Muitas vezes não pedíamos mais ao portão como na época da escola, mas telefonávamos e ela era breve em desligar para não esquecer a causa nem o elenco de nosso pedido. Ia até à cozinha repetindo nossas palavras e as emendava com suas orações sussurradas, as mãos arrumadas e um amém firme após o sinal da cruz.

E quando nos esquecíamos de contar o que aconteceu com nosso pedido, ela nos ligava aflita para perguntar se já estava tudo bem ou se continuava rezando por aquilo. Porque a graça era garantida pela sua fé. E quando dizíamos que estava tudo bem, sim, e que Deus lhe desse em dobro, ela rindo, respondia: Ai… Ele já me deu uma filha… o diabo que me deu vocês, sobrinhos!

 

Renata Rodrigues

(Este texto é uma homenagem à minha tia paterna, que nunca gostou de ser chamada de Isabel, mas de tia Nena. Hoje, com menos de 80 anos, sofre de demência senil causada pela diabetes. Apesar de não nos reconhecer, quando nos encontra seus olhos ainda sorriem e ela traça sobre nossas testas o Sinal da Cruz, pedindo que Deus nos abençoe.)

 

Sergio Diniz da Costa
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