Para quem espera há mais de dez anos uma indenização retroativa que a Lei mandava pagar em 60 dias, foi simplesmente chocante tomar conhecimento (vide aqui) de que, durante todo esse tempo, a União só gastava 2,1% da dotação orçamentária existente para as reparações a ex-presos políticos.
Ou seja, tudo leva a crer que o parcelamento era desnecessário e que os anistiados que a ele aderiram de boa fé fizeram um péssimo negócio, ao, sob falso pretexto, concordarem em ver diluído por quase oito anos o que deveriam ter recebido de imediato.
Pior ainda foi o tratamento punitivo adotado contra quem se recusou a assinar tal Termo de Adesão e passou a ser perseguido encarniçadamente pela Advocacia Geral da União, que moveu céus e terras para retardar o cumprimento da Lei específica e de várias sentenças de julgamentos de mérito.
A revelação de que, nos dez primeiros anos, havia R$ 8,1 bilhões disponíveis para honrar tais débitos e a União só utilizou R$ 168,3 milhões, nos faz perceber que:
— provavelmente teria sido possível pagar a todos nós no prazo legal de 60 dias;
— que há dois pontos importantes a serem esclarecidos, o de qual terá sido o verdadeiro motivo de a União haver adotado caminho tão sinuoso e o de onde foram, afinal, parar tais recursos (caso hajam sido realocados para outras finalidades, temos o direito de saber o que foi considerado mais importante do que nossos tormentos e aflições!);
— que os governantes do período, enquanto publicamente rasgavam seda para os ex-resistentes que sofremos o diabo na luta contra a tirania, longe de nossas vistas nos prejudicavam terrivelmente.
De resto, reproduzo abaixo o trecho do acórdão no qual o ministro Edson Fachin, depois de elogiar a participação no processo, como amicus curiae, da Associação Brasileira de Anistiados Políticos, citou trechos do documento incorporado ao processo pela Abap, para em seguida, considerando-os corretos, deles extrair suas conclusões:
“… as Leis Orçamentárias Anuais de 2004 até 2013 previram R$ 8.061.222.869,00 para o pagamento de anistiados políticos.
Segundo o Portal da Transparência, o valor total gasto de 2004 até 2013 com anistiados políticos corresponde a R$ 168.281.869,60.
Em outras palavras, 2,1% do total previsto nas leis orçamentárias atuais para indenização de anistiados foram efetivamente gastos, segundo as informações do próprio governo federal. Portanto, os outros 97,9% restantes representam valores disponibilizados e não pagos.
…Para afastar qualquer dúvida quanto à exatidão dos valores informados no Portal da Transparência, foi realizada consulta à Controladoria Geral da União sobre os dados contidos no sistema e forma de pesquisa. Em resposta, a CGU informou que as informações referentes aos gastos com os anistiados políticos encontram-se corretas, exatas“.
Segundo Fachin, colheu-se de tais informações a comprovação do “modo de agir omissivo adotado pela Administração Pública, chegando-se a aduzir até mesmo que nunca teria havido ação orçamentária específica destinada ao pagamento integral dos efeitos financeiros retroativos”.
E concluiu:
“…desde 2010 no que se refere aos anistiados militares e desde 2012 em relação a todos aqueles submetidos ao regime especial do anistiado político, verifica-se que não se tem previsto nas leis orçamentárias da União ação específica voltada ao pagamento dos valores retroativos devidos a título de reparação econômica, salvo para aqueles que se submeteram, voluntariamente, ao regime de parcelamento do pagamento mediante Termo de Adesão…
Verifica-se, portanto, grave omissão ao dever de planejar ínsito à própria noção de orçamento público…“
Neste último dia de agosto, foi publicado no Diário de Justiça Eletrônico do Supremo Tribunal Federal o acórdão do julgamento realizado no final de novembro/2016, referente ao pagamento de indenização retroativa a anistiados políticos. Nove meses passados, portanto, a decisão do STF passou, finalmente, a produzir seus efeitos legais.
Conforme expliquei noutros artigos (neste, p. ex.), a lei que instituiu o programa e respectivas normas estabeleciam que, a partir da publicação da portaria do ministro da Justiça reconhecendo o direito do anistiado a uma indenização retroativa, a União deveria fazer o pagamento em 60 dias (artigo 12, § 4º, da Lei nº 10.559/2002); no meu caso, já em novembro de 2005!
E foi o que o STF confirmou, tanto tempo depois: o prazo para pagamento era e é mesmo de 60 dias, nosso direito líquido e certo foi atropelado por mais de uma década e, inexistindo provisão de recursos, a União está agora obrigada a incluir os valores respectivos no próximo orçamento, quitando de uma vez por todas o débito.
Espera-se que as providências necessárias para o cumprimento da decisão do STF sejam tomadas com a agilidade que desde o início se impunha (em se tratando de mandados de segurança), mas em nenhum momento houve.
Afinal, os autores destas ações já somos todos idosos e os terríveis danos a nós infringidos por regimes de exceção (as reparações incluem também as vítimas da ditadura getulista) se referem a episódios ocorridos há muitas e muitas décadas.
No meu caso, sofri lesão permanente (que me prejudicou tanto os exercícios profissionais quanto o convívio social) e fui coagido por torturas e ameaças a uma exposição negativa (que me tornou alvo de estigmatização, igualmente prejudicando minha carreira e minha vida) em meados de 1970. Já lá se vão 47 anos.
RESTABELECIMENTO MÍNIMO DA DIGNIDADE
DESTROÇADA PELO REGIME ANTIDEMOCRÁTICO
De resto, pincei no acórdão de 87 páginas algumas passagens que devem inspirar reflexões mais aprofundadas.
“…a recusa de incluir em orçamento o crédito previsto na Portaria (…) do Ministério da Justiça afronta o princípio da dignidade da pessoa humana, por se tratar de cidadão cujos direitos preteridos por atos de exceção política foram admitidos com anos de atraso pelo Poder Público …
…a despeito de a própria doutrina reconhecer a dificuldade de delimitação do âmbito de proteção da dignidade e dos direitos fundamentais, não há dúvida de que a opção do legislador, ao normatizar e garantir os direitos a esses anistiados, foi a de propiciar àqueles que tiveram sua dignidade destroçada pelo regime antidemocrático outrora instalado em nosso país um restabelecimento mínimo dessa dignidade.“ (ministro Dias Toffoli, relator)
“A adesão ao Termo para o pagamento na forma proposta na Lei n. 11.354/2006 constitui mera faculdade do anistiado, uma vez que ninguém pode ser compelido a aderir a acordo para o recebimento de valor a que faz jus de forma parcelada e/ou em valor menor ao que teria direito, constituindo evidente abuso de poder o tratamento desigual aos igualmente anistiados.“ (idem)
“…2,1% do total previsto nas leis orçamentárias atuais para indenização de anistiados foram efetivamente gastos, segundo as informações do próprio governo federal. Portanto, os outros 97,9% restantes representam valores disponibilizados e não pagos. As leis orçamentárias anuais disponibilizam valores para o pagamento da específica ação governamental de indenização aos anistiados políticos…
…desde 2010 no que se refere aos anistiados militares e desde 2012 em relação a todos aqueles submetidos ao regime especial do anistiado político, verifica-se que não se tem previsto nas leis orçamentárias da União ação específica voltada ao pagamento dos valores retroativos devidos a título de reparação econômica, salvo para aqueles que se submeteram, voluntariamente, ao regime de parcelamento do pagamento mediante Termo de Adesão previsto na Lei nº 11.354/2006. Verifica-se, portanto, grave omissão ao dever de planejar ínsito à própria noção de orçamento público.“ (ministro Edson Fachin)
“UMA HUMILHAÇÃO ODIOSA E GRATUITA
QUE NOS QUISERAM IMPOR”
Ou seja, o reconhecimento mínimo da dignidade dos que ousamos resistir a uma ditadura bestial foi encarado como algo secundário por governos que deveriam ter comportamento diametralmente oposto.
E, embora os recursos para o pagamento de reparações àqueles que o Estado brasileiro reconheceu oficialmente como delas merecedores fossem mais do que suficientes para o cumprimento da obrigação de pagar, míseros 2,1% do total disponível foram utilizados para tanto.
Ao mesmo tempo, a AGU movias céus e terras para evitar que uma parcela minoritária dos anistiados recebesse o que lhes era devido. Se não era por falta de recursos, então por quê? Por pirraça? Por retaliação a quem não se prostrou à vontade dos poderosos? É o que resta ser esclarecido.
O certo é que, como se lê no voto do relator, “ninguém pode ser compelido a aderir a acordo para o recebimento de valor a que faz jus de forma parcelada e/ou em valor menor ao que teria direito, constituindo evidente abuso de poder o tratamento desigual aos igualmente anistiados”.
Pois foi exatamente como me senti, ao receber, pelo correio, o Termo de Adesão, sem uma explicação ou justificativa sequer, apenas instruções para assinar e enviar de volta.
Sofri muito por ter jogado tal documento no lugar apropriado: a lixeira. E, o pior de tudo, fiz meus entes queridos sofrerem. É uma mágoa que carregarei até o fim dos meus dias
Mas, está comprovado agora, não havia sequer carência de recursos, foi apenas uma humilhação odiosa e gratuita que nos quiseram impor, ao mesmo tempo em que faziam investimentos desastrosos e fechavam negócios altamente lesivos ao contribuinte, conforme hoje estamos todos carecas de saber.
Eu não conseguiria viver se, além de tudo que me tiraram, perdesse o auto-respeito. Assinar aquele papelucho desmereceria tudo que fui, o que sou e os motivos pelos quais lutei.
(celso lungaretti, com a alma lavada)
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É fundador e um dos editores do Jornal Cultural ROL e do Internet Jornal. Foi presidente do IHGGI – Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga por três anos. fundou o MIS – Museu da Imagem e do Som de Itapetininga, do qual é seu secretário até hoje, do INICS – Instituto Nossa Itapetininga Cidade Sustentável e do Instituto Julio Prestes. Atualmente é conselheiro da AIL – Academia Itapetiningana de Letras.