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Élcio Mário Pinto: 'Quem está no divã?'

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Élcio Mário Pinto: ‘QUEM ESTÁ NO DIVÃ?’

 

O sujeito chegou cedo. Era segunda-feira e não passava das 8h00. Na placa, em letras simples, de tamanho médio e na cor branca sobre uma base metálica, estava escrito: Drª Pensilvânia da Costa e Albuquerque – Psicóloga.

Olhando para o prédio e para a rua era impossível não perceber a sujeira na calçada.

Por um momento ele hesitou. Ficou ali, olhando para o portão de ferro fundido, quem sabe, pensando que aquilo já devia ter, pelo menos, uns 100 anos. Hoje já não se fabrica portão de ferro maciço. Seria um total desperdício, diria o comerciante na expectativa de convencer o cliente a levar um material qualquer, desses que são encontrados em loja de materiais para construção.

– Nada se compara ao bom trabalho das eras!

Aquela fala não se dirigia a ninguém. As pessoas que passavam pela mesma calçada sequer importaram-se, não ouviram e nem responderam. É assim, especialmente, na cidade grande, onde ninguém tem tempo para importar-se com alguém. Na correria pelos dias, sempre contra o relógio, qualquer pessoa se perde nas memórias da história não vivida.

Talvez, para aquele sujeito, a vivência fosse outra, já que não aparentava tanta velhice que pudesse competir com o portão de ferro fundido, se bem que os anos denunciavam sua cabeleira branca e uma barba, mais ou menos cuidada, também branca. Mas, os olhos faziam crer que tratava-se de alguém vivaz.

Se os anos se multiplicavam naquelas costas, a vivacidade ainda resistia à inexorabilidade do senhor Tempo.

Finalmente, abriu o portão e subiu os quatro degraus da escada que contrastava com a sujeira da calçada pelo ambiente limpo que apresentava. Assim são todos os degraus, oferecendo o plano da superfície que se entrega aos pés.

E os pés do homem decidiram entrar.

Abriu a porta, caminhou até a atendente e perguntou pela psicóloga.

– Sim, senhor. Ela deve chegar às 8h30min e o senhor será o primeiro a ser atendido.

Não perguntou pelo preço da consulta. Talvez não fosse uma sessão de terapia. Talvez, fossem diversas! Mas, ele já estava ali, vencera a “guerra” gélida da correria pelas ruas, da calçada suja, da louca viagem nos trens lotados, do ônibus que sacolejava muito mais do que trepidava… Até ali, o homem de barbas e cabelos brancos já se podia considerar um vencedor. A peleja com todos os ambientes hostis e doentios dava-lhe a vitória!

– Mas, sobre o quê? – disse o homem em voz alta.

A atendente olhou com o canto dos olhos enquanto levantava seus óculos. Certamente pensou: “mais um quase louco a ser tratado contra a loucura de todos”.

Podia-se observar, naquela sala de espera, além das três poltronas mais confortáveis, um sofá para duas pessoas, uma mesa com revistas e suas informações já vencidas, além do galão de água e do banheiro que ficava do outro lado. Nada mais havia e do que ali existia, era o que se podia fazer: ler.

Mas, o homem não parecia querer fazê-lo. Além de pensar com os olhos fixos em algum ponto e mudá-los de direção uma vez ou outra, falava, isto é, perguntava, respondia, comentava e parecia compreender-se muito bem.

Até que a atendente ouviu:

– A espera definha a ansiedade, depois que sucumbe a ela. Enfim, tudo se acaba!

A moça interessou-se por tal frase e perguntou ao homem:

– De onde foi que o senhor copiou esse pensamento?

– Eu não sou muito de copiar, sabe?! Prefiro fazer por mim mesmo.

– Então, o senhor deve ser muito inteligente, porque é difícil falar assim!

– Talvez seja mais difícil entender do que falar.

– Eu entendi!

– Então, troque de lugar comigo.

– Não posso, só estou neste emprego há uma semana. Veja só, a doutora acabou de chegar!

A psicóloga chegou, exatamente, às 9h00. Naquele momento, a atendente apontou para o primeiro paciente. A jovem mulher de 39 anos fez gesto de quem entendeu e sem cumprimentar o homem foi em direção à porta de sua sala. Abriu, entrou e fechou.

– Todos são assim!

– Assim como? – perguntou a atendente ao próximo paciente.

– No início, abrem. Depois, entram e uma vez lá, fecham tudo!

– Ela já chama pelo senhor.

– Aquilo que é fechado pode nunca se abrir, sabia?

– Aqui abre, pode ter certeza. Eu não falei, já recebi o sinal que é para o senhor entrar!

– Então, muito obrigado Abigail!

– Não por isso, senhor…

E a fisionomia da atendente acompanhou o homem que sabia seu nome e que deixava sua mente ruminar aquela dúvida: “não o conheço, como sabe meu nome?”

– Pode entrar, senhor…

A psicóloga percebeu que não tinha o nome do paciente na ficha que recebera. Nem mesmo um bilhete dizendo de quem se tratava. Pediu licença ao homem, abriu a porta e foi até a atendente:

– Abigail, como é que ele se chama?

– Eu não sei, Drª Pensilvânia.

– Mas, como não sabe? Ele não preencheu a ficha?

– Não, senhora!

– E como foi que chegou?

– Entrou, perguntou pela senhora e ficou esperando. Até conversamos um pouco. Ele fala tão bonito! Tem umas ideias diferentes e transmite uma paz tão grande! Acho que ele não está bem.

– Por quê?

– Porque falou sozinho várias vezes. Algumas vezes, falou comigo.

– Então, você não sabe quem é?

– Não! A senhora quer que eu chame a polícia?

– Não, tudo bem. Se precisar eu peço.

De volta à sala, a psicóloga entrou, sentou-se em sua cadeira e disse para o homem:

– Fique à vontade.

Ele não respondeu, mas sorriu em agradecimento.

– O que o traz até aqui? – perguntou Drª Pensilvânia.

O homem apontou para o sofá de duas pessoas. Ela entendeu que ele queria sentar-se no móvel.

– Sinta-se à vontade.

Assim que o homem foi e reclinou-se, a psicóloga, da poltrona, disse:

– Se já está confortável, podemos começar pelo princípio. Gostaria de se apresentar? Comece falando de si para que eu possa conhecê-lo um pouco mais.

E então, o homem de barba e cabelos brancos, com o olhar cansado e olhos marejados, roupa desgastada e as mãos um tanto trêmulas, respondeu:

– No princípio, Eu criei os Céus e a Terra!

 

ÉLCIO MÁRIO PINTO

07/10/2017

Sergio Diniz da Costa
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