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As várias faces da Capoeira! Última parte: na série 'Os grandes mestres da capoeira', entrevista com o Mestre Jaime Balbino

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“Na verdade, a capoeira começa é na roda. (…) A cantoria tá aqui, o cantador canta, os participantes respondem; eu canto, eles respondem; então, concentra-se uma energia, uma manifestação viva. A capoeira é uma manifestação viva.”

 

Matérias já publicadas sobre a série ‘As várias faces da Capoeira’:

(http://www.jornalrol.com.br/luta-danca-ginga-toque-e-floreios-as-varias-faces-da-capoeira-1a-parte-origem-da-capoeira/) – (http://www.jornalrol.com.br/as-varias-faces-da-capoeira-2a-parte-luta-musica-cancoes-toques-ginga-e-floreios/) – (http://www.jornalrol.com.br/as-varias-faces-da-capoeira-3a-parte-os-grandes-mestres-da-capoeira-mestre-besouro-manganga/) – (http://www.jornalrol.com.br/as-varias-faces-da-capoeira-3a-parte-os-grandes-mestres-da-capoeira-mestre-cobrinha-verde/) – (http://www.jornalrol.com.br/as-varias-faces-da-capoeira-3a-parte-os-grandes-mestres-da-capoeira-mestre-bimba/) – (http://www.jornalrol.com.br/as-varias-faces-da-capoeira-3a-parte-os-grandes-mestres-da-capoeira-mestre-gato-preto/) – (http://www.jornalrol.com.br/as-varias-faces-da-capoeira-3a-parte-os-grandes-mestres-da-capoeira-mestre-ze-baiano/) – http://www.jornalrol.com.br/as-varias-faces-da-capoeira-3a-parte-os-grandes-mestres-da-capoeira-mestre-waldemar-da-liberdade/

 

                                ENTREVISTA COM O MESTRE JAIME BALBINO DA SILVA

Introdução

No dia 16 de março, sexta-feira, às 19h30, o editor do jornal ROL Sergio Diniz da Costa esteve no barracão da R. Silva Barros, 235 – Vila Fiore – Sorocaba/SP, sede da Associação Cultural de Capoeira de Angola Bem Brasil, fundada em 1º de março de 2004, para bater um papo mega interessante com Jaime Balbino da Silva, mais conhecido como Mestre Jaime ou Mestre Jaiminho.

A entrevista se dividiu em duas partes: na primeira, sobre a vida do Mestre Jaime, a partir do seu ingresso no mundo da capoeira, e, na segunda, curiosidades sobre a capoeira.

A biografia do Mestre Jaime

 Jaime Balbino da Silva – Mestre Jaime/Jaiminho, nascido em 3 de junho de 1968 na cidade de Ourinhos, interior de São Paulo, é filho de Manuel Balbino da Silva (PB) e Maria Julia de Jesus (PE).

No final da década de 70, veio morar em Sorocaba, iniciando-se na capoeira em 1981 (com 13 anos) no grupo Cativeiro Capoeira, liderado pelos Mestres Miguel Machado e Belisco.

Da esquerda para a direita, Mestre Ananias e Mestre Pedro Feitosa – Foto de Adilene Cavalheiro

SDC: O que te levou, Mestre Jaime, aos 13 anos de idade, no início da adolescência, a querer praticar a capoeira?

MJ: Foi assim: eu, já quando garoto, via algumas apresentações na rua de algumas lutas de capoeira e meu irmão, Juraci Balbino, que era muito amigo do Pedro Feitosa, que era o professor na época do Grupo Cativeiro, aqui em Sorocaba. Então, por essa razão, ele me levou lá. E foi assim que eu me iniciei. Acho que não tinha nem 13 anos ainda completos, mas foi muito bacana. E, a partir daí, ingressei no mundo da capoeira. Foi meu irmão que levou e fui acompanhado por outro amigo, o João Cláudio, que é um colega meu, e fomos juntos e meu irmão que levou eu.

SDC: Mas, a curiosidade que, pelo menos eu tenho, é a seguinte: normalmente, um parente, um irmão mais próximo é que nos influencia muito pra que a gente faça alguma coisa, desperte em nós uma curiosidade. Havia algum conhecimento prévio sobre a capoeira ou simplesmente ele falou: “Vamos em tal lugar, fazer tal coisa”. Como foi exatamente?

MJ: Foi eu que me interessei, na verdade. Eu vi um jogo da capoeira, vi as pessoas fazendo a apresentação, achei aquilo interessante e comuniquei a ele. Falei a ele: “Pô, o negócio de capoeira é muito bacana”. Ele falou: “Mas eu conheço um professor muito bom.” Então, aí, ele me levou. E através disso é que eu vim a conhecer os demais mestres. Foi muito interessante isso.

Mestre Jaime e Mestre Machado

SDC: E Por que escolheu a Capoeira Regional? Quem foi seu primeiro Mestre e o quê aprendeu com ele?

Mestre Miguel Machado

MJ: Então, meu primeiro professor foi o Pedro Feitosa, como estava dizendo aí, e o Mestre Machado, que era o presidente e diretor do Grupo Cativeiro, juntamente com os fundadores Mestre Belisco, Mestre Caio, Mestre Rodolfo e Mestre Eli. O Cativeiro é um grupo que surge no final da década de 70, 78, no intuito de, vamos dizer assim, é dar qualidade àqueles que vieram para São Paulo. A maioria desses capoeiras eram baianos e vieram para são Paulo na intenção de, vamos dizer assim, de valorizar os mestres de capoeira. Diziam assim, que, pra ser mestre de capoeira, teriam que ter muitas qualidades. Então, o Grupo Capoeira privava muito isso aí, dava muito valor a essa questão de valorizar o mestre e o mestre tinha que ter essa qualidade mesmo. E, Capoeira Regional ali, não posso nem dizer que era bem a Regional, porque naquela época se falava muito em capoeira. Não se distinguia muito Regional, Angola, porque a Regional do Bimba ela tem as tradições. Então, não era um segmento direto da Regional mesmo, como o Mestre Bimba deixou. Então, era a capoeira. E então, não era que não tinha. Aqui em Sorocaba, não havia um angoleiro, fazendo esse trabalho, só específico com capoeira; essa capoeira, que era tanto em cima como embaixo, tá entendendo? Então, era capoeira, nem Regional e nem como Angola. Era tratado como capoeira, no contexto capoeira.

Mestre Gato Preto

SDC: Certo, mas como, historicamente, se distingue da Regional e, depois, da Angola, vem a próxima pergunta: quando e por que optou pela Capoeira de Angola? E quem foi seu primeiro mestre?

MJ: Foi assim, quando eu conheci, em 83, final de 83, vim a conhecer o Mestre Gato Preto, que já era especialista na capoeira Angola. Ele vinha aqui em Sorocaba para fazer aula com Mestre Pedro, que dava aula de Maculelê pra nós aqui, então, ele sim, foi ali que eu tive, e o Mestre Ananias antes, o primeiro a conhecer foi o Mestre Ananias, já quando eu entrei na Academia ele frequentava aqui, mas também era da linguagem da Capoeira Angola. Eu conheci o Mestre Ananias, admirei muito como um bom tocador de berimbau. Em 83, eu conheci o Mestre Gato. Foram os dois primeiros mestres mais antigos que eu conheci. E aí, eu fiquei muito encantado, porque o Mestre Gato era o Berimbau de Ouro da Bahia, realmente tocava muito bem o berimbau, e foi aí que eu me encantei pela capoeira Angola. Então, o Mestre Pedro fazia isso, ensinava a capoeira pra nós, tanto a Angola quanto os fundamentos da Regional, sequência do Bimba, essas coisas toda, tudo isso acontecia.

Mestre Bimba

SDC: Em termos práticos, Mestre Jaime, em que se distingue a Capoeira Regional da Capoeira de Angola?

MJ: Então, é assim, como está na História. Mestre Bimba, Manoel dos Reis Machado, na década de 30, por volta de 1932, ele começa esse movimento de capoeira Regional; ele liga os movimentos do batuque, porque o pai dele era um grande batuqueiro, é esses fundamentos que a gente sabe da capoeira Regional. E movimentos ligados de outras lutas também, que ele envolveu, junto com a capoeira, mas com a intenção de colocar a capoeira como, digamos assim, competir com as outras lutas, porque as outras lutas tinham espaço dentro da sociedade e a capoeira era marginalizada de verdade. Era praticada nos terreiros, nos guetos, às escondidas, não era permitido por lei, era proibido a prática da capoeira e o Juraci Magalhães, que era o pai do Antonio Carlos Magalhães, foi quem apresentou o Mestre Bimba pro Getúlio Vargas. Então, já estava com essa movimentação e ele saiu desafiando os lutadores pelo Brasil todo, como se sabe assim, como já existe alguns documentos, e vencendo a luta, porque dessa forma ele provou, né, que a capoeira poderia ser colocada como desporto, como luta, e agregando, e tirou a capoeira dos guetos, e colocou no centro histórico do Pelourinho, no centro histórico, ao lado da universidade. Então, ele tirou da sociedade, mal vista pela sociedade, vamos dizer assim, a classe que era repudiada pela sociedade e colocou dentro da sociedade. Então, esse foi o maior mestre, criou a metodologia de ensino e foi a primeira academia que foi montada em Salvador; então, chamava-se Luta Regional Baiana. Foi aí que começa as academias.

Mestre Gato Preto e Mestre Zambi

SDC: Quem era o Gato Preto? Por que ele tinha esse apelido e qual foi a impressão que você teve dele ou a influência que recebeu dele?

 MJ: Na verdade, o Mestre Pedro já conhecia o Mestre Gato antes, bem antes, então, eu é que o conheci em 1984. Pedro já conhece ele desde a década de 70. Gato preto porque ele era goleiro. Ele era um goleiro e saltava, dizem, eu não vi ele jogar, não, dizem que era muito bem goleiro e aí fica essa admiração, a admiração por ele; ele era um cara muito simpático, encantador, além de ser um tocador de berimbau exímio, era uma pessoa muito simpática, uma pessoa gentil. E aí, nos encantou, nos encantou não só a mim, mas quem conheceu ele. E, através disso, aí vem a admiração pela Capoeira Angola. É isso!

SDC: E quando você se formou professor de capoeira? E como foi a formatura? Teve alguma coisa de diferente, algum fato curioso?

MJ: Foi muito bacana! A minha formatura, então, eu comecei nessa faixa dos 12 para os 13 anos e me formei aos 20 anos. Então, me formei em 1990. Eu e o Mestre Jeová. Foi muito curioso, muito bacana, porque tava lá, foi feito da forma que era antigamente. Tava Mestre Ananias, tinha 18 professores do Grupo Cativeiro lá e aí foi uma sabatina. Aí, o Mestre pediu pra gente tocar o berimbau. Fizemos 16 toques, naquela época apresentamos 16 toques, eu e o Jeová. Cantamos a ladainha, cantamos o corrido, e aí, todo mundo aprovou e a gente se tonou professor e jogamos com todos eles, eu e Jeová. Todos eles, estavam Mestre, que já não está mais entre nós, Monteiro, Suingue, Lambreta. Muitos que já não estão entre nós estavam nesse dia. Era um grupo de capoeira altamente qualificado; então, ser um professor de capoeira nessa época era um privilégio, porque tinha que estar pronto, e o Mestre Miguel não admitia que tivesse vacilo, tinha que estar pronto a gente pra jogar. Foi curioso, porque tivemos que jogar com todos, com todos juntos, então, foi bacana, nós não fizemos feio, não, fizeram bonito, eu mais o Jeová, foi bacana, foi bacana.

Mestre Leopoldina

SDC: Nestes anos todos de capoeira, quais mestres você conheceu e o que aprendeu com cada um deles?

MJ: Olha, são muitos mestres. Mas, já nessa década de 80 aí, conheci Mestre Ananias, Mestre Gato, conheci no final da década de 80 Mestre João Pequeno, Mestre Leopoldina, depois, posteriormente, Curió, Mestre Mala, Mestre… tem muitos mestres…, Mestre Lua de Bobó, tem muitos mestre… a admiração foi crescendo cada vez mais, porque cada um deles tem a sua peculiaridade, mas todos eles com a mesma filosofia, principalmente os angoleiros. Eu conheci Nenéu, o filho de Mestre Bimba, também. O Luizinho, outro filho do Mestre Bimba, também conheci. E assim foi indo

SDC: Durante o período em que você conviveu com esses mestres, havia um jogo que era considerado ‘muito duro’. Que jogo era esse e por que era considerado dessa forma?

MJ: Pois é, é o jogo de dentro. Acho que a capoeira teve essa característica mesmo de, vamos dizer assim, pra sobreviver ali naquela circunstância que tava ali, tinha que se jogar duro, chamado ‘jogo de dentro’, então, era um movimento com bastante, com muito objetivo, aonde os professores, os mestres ensinavam com precisão e a pessoa tinha que sair, a pessoa tinha que fazer a defesa mesmo; hoje em dia, com o passar do tempo foi, como o Mestre Gato dizia, foi se domesticando essas pessoas, então, o processo de evolução da capoeira, dos capoeiristas, vamos assim dizer, com o público, é que tornou ela mais tranquila, mas a capoeira nunca deixou de ser dura, ela ainda tem essas características, dependendo de determinados ambientes que vai se jogar com determinadas pessoas, ela continua sendo dura ainda.

Mestre Curió

SDC: Em 2001, Mestre Jaime, você foi para Salvador e conheceu a chamada Velha Guarda da Capoeira Angola da Bahia. Como foi esse contato com os mestres mais antigos e o que esse contato acrescentou a você na capoeira?

 MJ: Foi maravilhoso! Foi maravilhoso!  Que eu fiz a escolha de seguir só a capoeira mesmo Angola, do trabalho voltando à capoeira Angola foi em 1999, quando o Mestre Gato esteve aqui e gravou um CD junto com a Liberdade, Mestre Pedro, Mestre Cupim, esse povo todo e gravaram um CD e, nesse momento, eu não estava completamente ativo na capoeira, eu participava eventualmente, por motivo de trabalho e aí, quando o Mestre Gato esteve aqui eu falei: não, eu tenho que continuar na capoeira Angola, e aí foi a escolha,  então, dentro da Associação de Capoeira Liberdade eu comecei a trabalhar na linhagem de Angola; então, nós montamos como se fosse uma repartição dentro da capoeira Liberdade, só especializada em Angola. Ficou Associação de Capoeira Liberdade e Angola e eu como contramestre, tomando conta dessas questões da capoeira Angola.

Aí, eu me senti na obrigação de ir para Salvador, conhecer mais alguns mestres, alguns eu já tinha conhecido, mas eu tinha a obrigação de ir lá ver a ABCA – Associação Brasileira de Capoeira Angola e o Mestre Curió era presidente na época; aí conheci o Mestre Virgílio, conheci Mestre Neco, Telé da Bomba, contramestre Pelé do Tonel, Barba Branca, Mestre bigodinho, Mestre Boa Gente, Mestre Gildo Alfinete, muitos mestres lá, que frequentavam aquele ambiente ali, da ABCA. E isso me incentivou a permanecer nesse caminho. Então, até hoje, pois pra mim foi um combustível, foi uma coisa assim que me encantou mais, vamos dizer que foi uma chamada da capoeira Angola e lá foi a confirmação dessa chamada. Realmente, eu senti que tinha feito a escolha certa e, de lá por diante, eu me firmei e  continuei e estou até hoje aprendendo e foi até sair de Salvador o que fortaleceu a minha escolhe, entendeu? Ou a capoeira me escolheu também, eu não sei dizer ao certo.

SDC: Você citou que tinha um trabalho. Em que a capoeira ajudou, ou não, no seu trabalho como profissional: Ajudou em alguma coisa ou atrapalhou? Fez de você uma pessoa mais centrada, mais amigável ou não mudou em nada o seu comportamento?

MJ: Mudou muito! Em todos os ambientes de trabalho. Eu comecei a trabalhar aos 15 anos de idade, registrado. Em todos os ambientes de trabalho a capoeira me ajudou muito na questão da disciplina, a educação com meu pai, o convívio com papai e mamãe também foi muito importante, mas em todos os ambientes de trabalho, a capoeira, como disciplina e hierarquia, de saber respeitar os mais velhos, saber respeitar a ordem do dia, vamos assim dizer, me fez com que eu fosse bem sucedido. O último emprego meu foi numa multinacional, por exemplo, e foi através de um pai de aluno que me levou até lá e eu fui trabalhar lá, então, a capoeira me influenciou e muito, muito mesmo, não só pra entrar dentro desse trabalho como relacionar com as pessoas  também, ter um entendimento da hierarquia, vamos assim dizer. Dentro da capoeira a hierarquia é fundamental.

SDC: A partir de 10 de janeiro de 2009, você assumiu a presidência da ASCA – Associação Sorocabana de Capoeira, com o objetivo de unificar as forças enquanto capoeiristas e profissionais na educação. Qual foi a sua aceitação à frente da Associação? Qual foi a reação do Poder Público, diante das reivindicações da Associação? Vocês conseguiram atingir algum ou todos os objetivos da ASCA?

MJ: Foi muito bom, na verdade é assim, a ASCA já existia, tinha sido passada nas mãos do Mestre Cláudio, do Mestre Cupim, do Mestre Pedro e, nesse momento de 2008, o que que acontece, entre um projeto-piloto da capoeira nas escolas e eu comecei a fazer parte desse projeto. Em 2009, tomou uma dimensão maior e, como eu estava lá, dos mestres ali, que já pertenciam à ASCA e eu já estava à frente, fizemos a eleição e até os próprios mestres e as pessoas ali viram da forma como eu me relacionava com os educadores, era favorável, por isso que me elegeram como presidente da ASCA e foi muito favorável naquele momento, porque conseguimos implantar, atender o que a Secretaria de Educação precisava, né, que era sistema de aula, planejamento, projeto. Tudo o que a Secretaria de Educação propôs, nós, como capoeiristas da ASCA, e as demais pessoas, os professores, todo mundo junto, criamos a sequência de prática, monitoramento. Tudo o que o colégio pediu, a gente ajustou ao sistema; então, foi muito favorável, e a relação com a secretária, com as gestoras também foi de respeito foi um momento importante. A capoeira cresceu nesse momento, pelo bom entendimento, por eles entenderem que a capoeira, como educação, é natural, vamos dizer assim, se educa naturalmente e que tem hierarquia, que tem todos esses valores que a gente acabou de conversar. Então, dentro desse procedimento foi muito bem, valeu tanto a relação de lá pra cá como de cá pra lá.

SDC: Hoje, na sua visão, existe ainda algum preconceito em relação à capoeira ou isso já não existe mais?

 MJ: Olha, eu acredito que não vai deixar de existir, porque está arraigado na alma de muita gente, por ser uma cultura que vem do negro. A cultura negra, não dá pra dizer que vai ser 100% eliminada, quer dizer, talvez eu não veja isso, termina a minha vida e eu não consiga ver isso, por ‘n’ situações, porque a cultura negra abrange muitas coisas e as pessoas, por falta de interesse e, às vezes, por falta de conhecimento, não se interessam em conhecer a cultura negra. É mais fácil criticar sem o conhecimento, na ignorância, do que procurar saber; então, não é possível dizer que não exista preconceito.

 2ª Parte: História e curiosidades sobre a capoeira

 A luta, 100% brasileira, foi criada no século 17 por escravos africanos da etnia banto. Por causa da origem, ficou proibida oficialmente até 1937, embora nunca tenha deixado de ser praticada. Nos anos 30, o baiano Manuel dos Reis Machado, o mestre Bimba, tirou os capoeiristas do chão, quebrou o gingado e incorporou golpes de outras lutas. Sua criação, a capoeira regional, se diferencia até hoje da capoeira angola, mais tradicional e difundida a partir da década de 1910 pelo baiano Vicente Ferreira, o mestre Pastinha. No século 20, a capoeira virou esporte, com direito a confederação nacional. Existem até torneios em que capoeiristas encaram lutadores de outras especialidades.

SDC: Segundo pesquisas, uma característica que distingue a capoeira da maioria das outras artes marciais é a sua musicalidade. Mestre Jaime, qual a importância da música no início da capoeira e atualmente, e quais são os instrumentos utilizados?

MJ: No início, era a forma de disfarçar. Eles faziam batuque com a palma da mão, tambores, festejando, criava essa estratégia. Enquanto as pessoas pensavam que eles estavam brincando, se divertindo, eles estavam é treinando a capoeira, disfarçada em dança; então, a musicalidade é indispensável, ela surge aí e até hoje as pessoas pensam que a capoeira é dança; então, a musicalidade vem daí, e ela foi tomando direções com o transcorrer do tempo, no batuque, nos candomblés, na influência da religiosidade negra, dos terreiros. Então, a musicalidade sempre esteve ligada à capoeira. Os instrumentos, no caso, no começo, nessa época aí, da escravidão, era a palma da mão, era o tambor, posteriormente, o pandeiro, aí entra os batuques, que não era o samba, era o batuque e a capoeira sempre envolvida nisso. Aí, por volta de 1840 pra frente, o berimbau também já existia, o ‘berimbau de boca’; em vez de usar a cabaça, era a boca que fazia a ressonância; a caixa de ressonância não era a cabaça, era a boca. Esse é o berimbau de boca. Posteriormente, surgiu o ‘berimbau de barriga’. Mestre gato nos falou assim, que nessa época da escravidão, o negro ficava no alto da árvore, com o berimbau, pra avisar a chegada do feitor, a chegada das pessoas que vigiavam os escravos trabalhando e, através do toque, tem um toque de cavalaria antiga, eles avisavam, através da pisada do cavalo, que ele estava chegando e eles voltavam a trabalhar; enquanto o feitor saía pra fazer alguma coisa, eles iam fazer a prática da capoeira. A hora que o feitor voltava, através do berimbau o instrumento também tinha essa função. E também foi se aprimorando, depois colocaram na verga o arame recozido, o arame que quebrava com facilidade. Não era todas as pessoas que tocava berimbau e, com o transcorrer do tempo, aí sim, foi se criando o que se chama ‘conjunto musical. Então, esse nome ‘capoeira de Angola’, no Recôncavo já existia esse nome de capoeira de Angola. E não era com os 3 berimbaus. Essa questão dos berimbaus, o Mestre Pastinha organiza essa questão da capoeira Angola. Mas a capoeira de Angola ela era tocada com um berimbau, um pandeiro, ou 2 berimbaus, dois pandeiros. Não existia um padrão, como até hoje não existe. A gente não pode dizer o que é certo e o que é errado. Mas, a capoeira angola era manifestada desse jeito e de que maneira, nos ambientes de terreiro, fundos de quintais, ou em festividades que tinha às escondidas, quando aparecia a polícia, que todo mundo se dispersava. Mas também tinha o toque de aviso. Isso acontecia dessa forma no Recôncavo. E Mestre Gato começou a aprender tocar berimbau criança. A influência que existia do berimbau era exatamente essa, a musicalidade, as cantigas animava aquela apresentação.

SDC: Uma curiosidade: se os negros faziam de uma forma para que os brancos, os feitores achassem que era uma dança, então o objetivo da capoeira era uma luta? 

 MJ: Sim, o objetivo da capoeira seria uma luta. A prática era disfarçada em dança, pra que eles não vissem. Na calada da noite, na senzala eles praticavam também, no silêncio, exatamente pra se disfarçar a prática. E eles tinham uma estratégia, onde eles se abraçavam e ficam de pé. Enquanto eles estavam de pé, os negros estavam treinando a luta. Eles abaixavam, eles estavam gingando e dava essa impressão de que estavam dançando, que estavam brincando; então, confundia muito o branco, o branco não entendia, achava que aquilo era uma manifestação de brincadeira; agora, na hora da fuga, na hora de pegar o mato, aí eles botavam pra derreter, aí eles botavam pra frente mesmo, era um movimento pra nocautear, pra destruir o feitor, pra destruir mesmo, pra ganhar o mato e fugir pro quilombo. Esse era o objetivo da capoeira.

SDC: O que vem a ser a ‘roda de capoeira’? Qual a sua finalidade?

MJ: Na verdade, a capoeira começa é na roda. Porque a roda, vamos dizer assim, nos ensinamentos dos griôs, dos grandes sábios da África é sempre em roda. Sempre foi em roda. Então, aí eu penso que a roda de capoeira tem exatamente isso aí, o seu mestre ensinava, em roda, na hora de manifestar ela também estava em roda, que na roda todo mundo está olhando um para o outro; então, segundo o que eu sei, vem dos ensinamentos dos griôs, dos mais antigos. E ali está uma energia concentrada. Estamos todos numa roda, essa energia está concentrada na roda. A cantoria tá aqui, o cantador canta, os participantes respondem; eu canto, eles respondem; então, concentra-se uma energia, uma manifestação viva. A capoeira é uma manifestação viva.

SDC: E qual é o maior objetivo do capoeirista ao entrar em uma roda?

MJ: O objetivo do capoeirista é jogar com o outro e não contra o outro. Diz-se que a capoeira é a luta do oprimido contra o opressor. É fato, isso surgiu com essa filosofia. Mas, também, no decorrer da história, o capoeirista também foi o opressor; então, a gente não pode descartar isso, com até hoje acontece. Nós, como capoeiristas, deveríamos nos tratarmos como irmão  e nem sempre acontece isso; então, são muitas, ‘n’ questões, pra se discutir isso. Tem muito assunto pra se discutir.

SDC: Voltando à pergunta anterior, eu perguntei sobre os instrumentos, e atualmente, permanecem ou aumentaram ou modificaram?

MJ: Não, na verdade é assim, quando você falou do Mestre Pastinha, ele organiza a capoeira e monta essa orquestra. São 3 berimbaus: o Berra-Boi, Gunga e viola, pandeiro, agogô e reco-reco. Então, segundo o Mestre Gato, na academia de Pastinha não tinha atabaque. Mestre Gato foi contramestre de bateria durante 20 anos na academia de Mestre Pastinha. Isso eu ouvi da boca dele assim, em Sorocaba, que lá não tinha atabaque. E tem também entrevista que ele fala com o Cajueiro, dourado Cajueiro, no Rio de Janeiro, que ele diz isso aí, né? Ele diz que na capoeira não tinha atabaque. O fato de nós não usarmos atabaque também, é exatamente essa questão, porque o Mestre Gato usava atabaque nas questões religiosas; então, eu tinha, não, eu tenho respeito do povo de Santo Amaro, os filhos dele todos juntos, muito grande com a questão religiosa, e o tambor é símbolo disso, né? Na nossa capoeira, ele pediu que nós não usássemos o atabaque, então usamos Berra-Boi, Médio e Viola, que são os 3 berimbaus, grave, médio e agudo, dois pandeiros, que são os Bode, agogô e reco-reco. Então, essa é a nossa bateria de capoeira Angola. Não está errado os capoeiristas que usam tambor também. A maior parte deles usam tambor, tá entendendo? Não é errado. Já como a gente segue essa linhagem, foi a pedido dele que, a partir a gente segue isso.

SDC: Então, pode-se dizer que , pode-se concluir que  na Regional há um cunho mais religioso e o da Angola, não?

MJ: Não, não, não! A questão religiosa é a mesma. O que Mestre Bimba criou é o seguinte: um berimbau e dois pandeiros. Então, ele chama ‘Charanga’ a bateria dele; da forma que a capoeira Angola tem os 3, os do Mestre Bimba  é um berimbau e dois pandeiros. Foi dentro desse fundamento que ele criou. E os toques que ele criou São Bento Grande da Regional, Cavalaria, IúnaIúna é um jogo da capoeira que, acompanhado do toque do berimbau, serve para demarcar os níveis hierárquicos dos mestres e dos formandos (discípulos) – do Bimba, a Iúna que ele criou, então, são coisas dele, que ele criou pra diferenciar, mas esses toques também alguns já existiam; a Iúna, existe a Iúna tradicional, que a capoeira Angola usa. O Bimba criou a Iúna dele, a Cavalaria do Bimba; então, como na época da repressão, como o senhor falou aí, 1930, ele criou a Cavalaria, chama Cavalaria do Bimba. O toque de Cavalaria do Mestre bimba é diferente do toque da Cavalaria antiga; não é o mesmo toque. Ele acrescentou, ele foi muito sábio, e uma das pessoas, digamos assim, se a capoeira tá hoje no mundo todo, e tomou dimensão, ele foi o precursor  disso; graças a ele que, pela coragem, pela iniciativa, por tudo isso, foi um grande homem. O Mestre Gato falava muito bem do Mestre Bimba, da pontualidade dele como homem, da hombridade, da retidão dele com os alunos, com as pessoas; então, ele foi uma pessoa exemplar na conduta também, como vários outros mestres assim são.

SDC: O que significa a ‘ginga’?

MJ: A ginga é a malandragem. É a forma de enganar o branco, porque a ginga é a dança, porque a pessoa pensa que a capoeira é a dança. A ginga é como se fosse o drible, a finta do jogador de futebol; é através da ginga que a gente ludibria o nosso companheiro do jogo, pra sair de um lado, ele de outro, e, através disso, eu levo a maior ou levo a pior. A gente quer ganhar. Nem sempre ganha, mas a ideia é essa.

SDC: O que significa o ‘batizado’?

MJ: Mestre bimba, quando cria essa Capoeira Regional, ele também cria essa questão do batizado; o batizado, pelo que eu sei, é a pessoa, o menino na época dele lá, ele escolhia a pessoa pra ser o padrinho; então, o padrinho fazia o quê, o padrinho ia jogar com ele lá  e, se desse uma queda,  não vamos dizer que era obrigatório dar uma queda, mas se desse  no menino, ele  dava lá a graduação, era lenço na época, não sei dizer exatamente a escala da gradação, mas aí, o padrinho era  cara que cuida daquele capoeirista; o objetivo do padrinho foi  esse.

SDC: O que é o ‘apelido’ e qual a sua importância?

MJ: Eu não tenho o hábito de dar apelidos aos meus alunos, mas, geralmente, é a característica do aluno. Isso aí surgiu lá atrás também. Às vezes, o rapaz e mexe bem, é cobra, por exemplo, Cobrinha Verde, Besouro; é pra camuflar, vamos dizer. Quem é cobrinha Verde, é Rafael Alves França. No caso da capoeira, era mais fácil saber quem era Cobrinha Verde, do quem era Rafael Alves dos Santos; era pra camuflar, pois, já que era proibido, então, tem que ter um pseudônimo, né?

SDC: E como se classificam as ‘canções’ na capoeira?

MJ: Que eu conheço, eu conheço um pouco só. Eu conheço ‘ladainha’, que é o canto de entrada, tem o ‘lamento’, que é um canto também, aonde o cantador faz teste com o sentimento das pessoas que ali estão, depois da ladainha, do lamento entra a ‘salva’, que é a louvação, vamos assim dizer, e, depois disso, entra o ‘canto corrido’, é o momento em que o jogador entra pra jogar; enquanto ele tá fazendo a ladainha, ou a salva, não se joga, os jogadores ficam prestando atenção; a hora que entra o canto corrido, é a hora que o capoeirista entre com o jogo. E Mestre Bimba também usava essa mesma estratégia; ele fazia quadra, cantava quadra, quadrão e também tinha lá pra trás os cantos de desafio; meu pai foi cantador, foi repentista, mas é semelhante, mas era galopável, tá entendendo? A boiada, essas coisas; o nosso mestre, o Zé Baiano canta boiada; então, isso vem disso, uma coisa foi originando a outra.  Mané do Riachão foi repentista, participava muito da capoeira; papai conhecia muito o trabalho de Mané Isaías do Riachão, então, cantos de desafio. Então, por exemplo, eu vou jogar com o senhor, faço um canto ou posso desafiar, como posso te elogiar. A cantiga depende da intenção que eu tenho contigo; eu posso te elogiar quanto posso te desafiar.

 SDC: O que representam e quais são os ‘toques’ na capoeira?

 MJ: Olha, são muitos os toques. Esse também dá matéria pra conversar muito tempo, porque tem coisas que num é bom falar, principalmente quando se fala do Mestre Gato, e eu nem tenho autorização, porque, por exemplo, tem o filho dele, Cinézio Góes,  mais velho, o Gato 2, e eu nem vou falar dos toques  de Mestre Gato, exatamente por conta disso, porque ele tá aí , se tiver que falar, é importante que ele fale, porque é um trabalho do pai dele, né, você tá entendendo, mas Mestre Gato, que eu conheço, é 34 toques que ele apresentou, que eu conheço do Mestre Gato; 34 toques  de ele tocando. Os toques tem o objetivo, como eu disse aí, toque de cavalaria, que é pra avisar, o toque São Bento Grande é o toque de angola, é o toque que representa a capoeira Angola. Então, as que tem, tem tempo e significado, tem essa representatividade. O toque do jogo de dentro é o toque onde a capoeira é jogada dura, como a gente já tava conversando; toques do jogo de dentro, quando o toque é feito a capoeira, ela é aplicada, ela é dura, com cabeçada, com rasteira; então, o toque tem ter esse significado.

SDC: Mas, o toque em si, ele é uma alguma nota musical? Está relacionado à música, é isso?

MJ:  Tá relacionado à música, tá relacionado às dobras, dos dobrões, as variações. O que diferencia os toques são as variações.

SDC: E qual é o instrumento que gera esse toque?

MJ:  O Berimbau! No caso, o ‘Berra Boi’ é o grave, é o que comanda a roda. Então, se ele faz o toque do jogo de dentro, ele tá avisando que o jogo vai ser duro; eu, como entendedor, se eu tô na roda aqui e o berrador, que fez o toque do jogo de dentro, eu tenho que tomar cuidado com o meu camarada, que ele vai cair pra dentro, entendeu? Terminou a capoeira, ele faz um samba de roda. Pronto, é a brincadeira, é um momento de distração, de lazer, onde as pessoas vão sambar.

SDC: O Carlos Carvalho Cavalheiro, que é um amigo e irmão em comum, trouxe aqui um projeto envolvendo as mulheres para aprenderem a capoeira. Qual é o objetivo?

MJ: É assim, houve o feminicídio, houve 40 mortes no ano que passou, e ele, preocupado com essa questão com a violência contra a mulher, sugeriu a mime a meus alunos que nós fizéssemos uma questão de defesa pessoal, com os golpes, os movimentos da capoeira; então, não é ensinar as mulheres a jogar a capoeira, jogar a capoeira tem todo um ritual, é um movimento de defesa, né, de defesa pessoal, com os golpes da capoeira. Então, foi esse o objetivo. Ele sai com essa ideia e pergunta se eu aceito e eu falo que sim. E pra mim também foi um desafio, como um desafio pra elas, pra meninas também. Aí levou isso até a vereadora Fernanda, através do Eron e aí ela levou pro movimento das meninas Rosa Lilás e nós iniciamos essa questão de defesa pessoal com as mulheres. Foi um sucesso, a primeira aula foi muito bem aceita.

SDC: E quantas mulheres tem atualmente o curso?

 MJ:  Se não me engano, foram 14, 15 mulheres, de início, na primeira aula.

SDC: E em que faixa de idade?

 MJ:  Ah, diversas! Teve de crianças até senhoras

SDC: Pra encerrar a nossa entrevista, qual é, sob a sua visão, a importância da capoeira?

 MJ: A capoeira, na cultura negra, abrange tudo. Então, eu vejo que a capoeira, não dá pra explicar o tão quanto ela é importante, porque ela tá musicalidade, ela tá a luta, ela tá cultura, ela tá arte, tá ligada a tudo, toda a cultura negra, a capoeira tem um pouco de tudo. Então, por isso que a capoeira é grandiosa. E da mesma forma que eu disse ao senhor aqui, eu, com mais de 37 anos na capoeira estou começando a aprender. Então, dá pra ter ideia da dimensão que é isso. Eu ouvia os mestres antigos dizer isso quando jovens, quando garoto eu achava que não era verdade isso, que eles estavam dizendo isso poeticamente, mas não é. Realmente, a gente vai descobrindo, a cada dia que passa, a gente vai descobrindo.

    

    

    

    

    

    

    

    

    

    

    

    

Roda de comemoração de 14 anos de fundação da Associação Cultural Capoeira de Angola Bem Brasil: https://www.facebook.com/angolabembrasil/videos/1612262262162487/

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sergio Diniz da Costa
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