“O tema suscita muito debate. Afinal, as monções são parte da história do bandeirantismo paulista ou um movimento separado? A resposta não é tão simples assim.”
O tema suscita muito debate. Afinal, as monções são parte da história do bandeirantismo paulista ou um movimento separado? A resposta não é tão simples assim.
A começar pela construção histórica do mito bandeirante e, em consequência, do monçoeiro que foi assimilado pela figura do primeiro. Depois, outro fato que causa confusão sobre a distinção ou não dos dois eventos é que a monção surgiu por conta da descoberta do ouro em Cuiabá e essa descoberta se deu pelas mãos de um bandeirante sorocabano.
Diz o escritor Paulo Setúbal que o bandeirante Pascoal Moreira Cabral, por volta de 1718, armou uma bandeira para prear o indígena da etnia coxiponés. Apesar de ter levado a pior, sendo que “Nos anais do bandeirismo é esta uma das raras vezes, das mais raras, em que brancos, armados de trabucos e toledanas, são derrotados por bugres, armados de tacapes e flecha” (p. 31). Isso nos diz o eminente escritor tatuiense ao que arremata informando que, embora com insucesso em seu objetivo inicial, a bandeira alcança outra vitória: descobre ouro no Cuiabá.
E Pascoal Moreira Cabral partiu para as terras dos coxiponés em canoas, numa monção que tomou o rio Sorocaba, afluente do rio Tietê, e alcançou o interior do Brasil. Assim, as expedições fluviais de prospecção de ouro, que partiam de São Paulo para o Mato Grosso, conceito este do que seria uma monção, surgiram inicialmente a partir de uma tentativa de caça ao indígena para escravização, atividade tipicamente caracterizada como “bandeirante”.
Entusiasta da história do bandeirismo paulista, Affonso d’Escragnolle Taunay por diversas vezes fez questão de associar os dois movimentos, bandeirista e monçoeiro, como se fossem um só ou, ao menos, uma continuação. Na obra “História das Bandeiras Paulistas”, por exemplo, Taunay diz que “Como consequência imediata da descoberta do ouro cuiabano operou-se a transformação da principal rota sertanista, já quase sesqui-secular da penetração ocidental, para a devassa das terras e preia do índio, em via comercial e militar. Criava-se o episódio das monções, inserto com o maior relevo nos anais do bandeirantismo” (TAUNAY, s/d, p. 113).
Para Taunay, portanto, o episódio das monções faz parte de um contexto maior do bandeirantismo, como se fosse uma fase. Aliás, por muitos anos, recorrendo-se a uma pretensa didática, estabeleceu-se que o movimento bandeirante estava dividido em fases: a primeira, da preação de indígenas, a segunda da prospecção de minérios (metais e pedras preciosas) e uma “terceira” fase seria a das monções. Ocorre que, como foi visto, em época na qual os bandeirantes já estavam exaustos da busca de metais e pedras, Pascoal Moreira Cabral sai de Sorocaba e adentra o sertão em busca de índios!
E a acreditar nos relatos de Paulo Setúbal, o bandeirante sorocabano desprezou as primeiras pepitas encontradas na região, que floresciam da terra (bastava apanhá-las), dizendo que adentrara ao mato para “prear índio, isso sim, que índio é ouro”.
Portanto, não existem as tais “fases”, mas sim objetivos que se colocam lado a lado de acordo com a bandeira. Embora a rigor o século XVIII seja o do ocaso das bandeiras, justificando assim o entendimento de que as monções são um movimento à parte, é fato que nas primeiras décadas do século ainda existiam sertanistas que buscavam escravizar o indígena, bem como outros que buscavam pela prata, pelo ouro, pelos diamantes.
Na construção do mito do bandeirante, alçado como herói responsável pela grandeza territorial do Brasil, as monções serviram como justificativa para “esticar” um pouco mais o período bandeirista e com isso reforçar a memória do passado paulista.
E isso se deu dentro de uma perspectiva de política de Estado: a argumentação que sustentava a hegemonia paulista durante a Primeira República (ou República Velha) veio pinçada de seu glorioso passado bandeirante. Afinal, como bem salientou Affonso Taunay, diante do Monumento às Monções (ou aos Bandeirantes), em Porto Feliz no ano de 1920, “Foram os filhos da colônia, os de S. Paulo, incomparavelmente mais que os outros, – quem o ignora? – a quem coube tornar enorme este Brasil…”.
Carlos Carvalho Cavalheiro – carlosccavalheiro@gmail.com
21.08.2018
Professor de História, Mestre em Educação, Escritor, Poeta e Historiador.
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos