A Gripe Espanhola em Porto Feliz (1918 – 1919)
Nestes tempos tenebrosos de pandemia do novo coronavírus (Covid-19), a comparação com situações semelhantes do passado são inevitáveis. No entanto, a despeito das diferenças, nos ajudam a entender melhor o momento atual e apontam para um ponto de esperança ao final do caminho. Em 2009 tivemos a experiência da chamada gripe suína, que suspendeu aulas e mobilizou uma atenção especial no sentido do reforço das regras de higiene e profilaxia. Mesmo assim, não chegou nem perto da atual pandemia. Outra situação de pandemia ocorreu há mais de um século e talvez, por isso, não guarde memória que tenha chegado a nós.
Em 1918 o mundo viveu a pandemia da chamada “Gripe Espanhola”, na época grafada como “Grippe Hespanhola”. Assim como a gripe suína de 2009, a Gripe espanhola foi causada pelo vírus Influenza H1N1. Há muita discrepância em relação ao número exato de mortos por essa gripe no mundo. Para se ter uma ideia, as estatísticas apontam de 17 a 100 milhões de pessoas que foram à óbito vitimadas pela gripe. Dados mais concretos apontam que 500 milhões de pessoas foram infectadas no mundo todo, o que representaria, à época, cerca de ¼ da população mundial. Quando comparamos com o nosso tempo é justificável a falta de exatidão nos relatórios.
Basta ver que, mesmo com toda a tecnologia de que dispomos hoje, ainda assim, não se tem uma estatística rigorosa sobre o número de mortos desta pandemia de Covid-19. Sem condições de realizar exames em todos os casos, percebe-se no Brasil um aumento do número de pessoas mortas por complicações respiratórias, sem que haja confirmação da contaminação por coronavírus. Ou seja, os casos confirmados refletem, provavelmente, uma parcela menor do número total de óbitos ocasionados por essa nova doença. Isso em 2020, mais de cem anos depois do surto de Gripe Espanhola.
A princípio, é importante dizer que a despeito do nome, a gripe não surgiu na Espanha. Ocorre que a Europa estava em guerra quando a doença surgiu, mas a Espanha era país neutro no conflito, o que ajudou a imprensa a ter mais informações sobre o avanço da doença. Por isso, ficou conhecida como Gripe Espanhola. Acredita-se que 35 mil pessoas tenham morrido no Brasil, acometidos dessa gripe.[1]
A doença chegou ao Brasil em setembro de 1918. No dia 23 de outubro daquele ano, como medida de prevenção à gripe, foram suspensas as aulas do Grupo escolar (atual EMEF. Coronel Esmédio) e as aulas noturnas. Até aquele dia, não havia nenhum caso registrado de gripe espanhola em Porto Feliz (CORREIO PAULISTANO, 25 out 1918, p. 3). Dois dias depois, o mesmo jornal da capital, que tinha como representante local o sr. J. E. Habice, divulga o aparecimento da doença na cidade:
PORTO FELIZ, 25 – Appareceram hontem diversos casos da influenza hespanhola nesta cidade, todos de caracter benigno.
As pessoas atacadas pelo mal, e que introduziram aqui a epidemia, vieram dessa capital onde residiam.
A população conserva-se calma, tomando as precauções e os conselhos dados pelo Serviço Sanitario difundidos nesta localidades por meio de boletins distribuidos hontem pela prefeitura. (CORREIO PAULISTANO, 26 out 1918, p. 3).
Sócios do Clube Recreativo Progresso solicitaram a suspensão das atividades sociais, assim como o proprietário do Cine Ideal que fechou temporariamente as portas. Muitas famílias abandonaram a cidade e se alojaram nas propriedades rurais. O professor Roque Plínio de Carvalho, diretor do Externato João Francisco Monteiro, suspendeu as aulas dessa escola no dia 24.
No dia 30, o jornal paulistano noticiava a situação da cidade como desoladora. Os sitiantes, com medo da gripe, não compareciam mais à cidade com receio da epidemia. A municipalidade, tendo à frente o prefeito coronel Eugênio Motta, tomou providências, dentre as quais a realização de desinfecção de quintais, realizadas sob a supervisão do fiscal sanitário. A despeito disso, houve uma crítica quanto à falta de informações oficiais sobre o avanço da doença: “Infelizmente, a prefeitura não fornece a população nenhuma notícia referente à marcha da epidemia e isso dá margem á propagação de boatos alarmantes e notícias inverídicas” (CORREIO PAULISTANO, 30 out 1919, p. 3).
Em novembro, registrou-se 10 casos de doentes da gripe espanhola na cidade e entre 30 a 40 na Vila de Boituva, então pertencente a Porto Feliz. Nessa vila e nos bairros adjacentes a situação era bem mais grave do que na cidade. O tenente Lourenço Raymundo de Oliveira, que ocupava o cargo de subdelegado em Boituva, requisitou instruções e medicamentos para socorrer as praças do destacamento local no caso de serem atacadas pela epidemia. Ao mesmo tempo, tinha que combater os boateiros, especialmente negociantes de Boituva que espalharam boatos aos sitiantes dizendo que a epidemia estava assustadora, motivo pelo qual evitavam vir à vila e acabavam comprando desses atravessadores a preços exorbitantes. O subdelegado foi obrigado a solicitar ajuda dos inspetores de quarteirão para evitar esses abusos. O mesmo subdelegado sugeriu a instalação de um Hospital provisório no posto policial de Boituva (CORREIO PAULISTANO, 8 nov 1918, p 3). O dr. José Sacramento e Silva, médico local, fez a inspeção sanitária nas escolas públicas, consistente em inspeção médica, exames médicos, vacinações contra a varíola, emissão de boletins médicos e dentários, além de preleções sobre higiene individual, pública e pedagógica. Ofereceu, ainda, seus serviços para o governo e ao Serviço sanitário para atuar durante o surto de gripe (CORREIO PAULISTANO, 08 nov 1918, p. 2).
Uma semana depois, o jornal anunciava que o Grupo Escolar, que estava fechado, converteu-se em Hospital de Isolamento. Isso se deu no dia 6 de novembro, de acordo com Wilson Monteiro no livro “Grupo Escolar Coronel Esmédio”, publicado em 1973. Assim, os gripados foram tratados isoladamente dos outros doentes, estes, certamente, tratados na Santa Casa. O resultado do boletim sanitário do dr. José Sacramento e apresentado pela Prefeitura apontou o seguinte: doentes, 8; 2 no sítio, 3 no Hospital de Isolamento e 3 em duas casas de famílias; convalescentes, 3; curados 4. Os doentes instalados no Hospital de Isolamento eram todos provenientes de cidades vizinhas. A direção desse Hospital ficou a cargo do farmacêutico J. M. A. de Almeida (CORREIO PAULISTANO, 16 nov 1918, p. 3).
Em Boituva, na mesma semana, o número de doentes saltou de 40 para 70. Não se observou nenhum óbito. Alguns dias depois, o número de internados no Hospital de Isolamento subiu para 8, mesmo assim, o comércio voltou a funcionar. O Clube Recreativo Progresso emitiu nota informando que reabriria somente depois de extinta definitivamente a gripe na cidade. O Cine Ideal anunciava que abriria suas portas no dia 15 de dezembro (CORREIO PAULISTANO, 11 dez 1918, p. 5).
Nessa publicação, além das notas sobre a gripe, aparecem outras informações que demonstram que as pessoas procuravam retomar suas vidas: aniversário, nascimento, marcação de data da última sessão do Júri daquele ano e até a preocupação com a praga de gafanhotos que prejudicava a produção de algodão, produto que representava uma fatia importante da economia local (CORREIO PAULISTANO, 11 dez 1918, p. 5).
Esse provável relaxamento acabou por favorecer a disseminação da gripe espanhola, que todos consideravam sob controle e ou mesmo extinta. Maria Silvia C. Beozzo Bassanezi, em Trabalho apresentado no V Congresso da Associação Latino-Americana de População, Montevideo, no ano de 2012, com o título “Uma trágica primavera. A epidemia de gripe de 1918 no Estado de São Paulo, Brasil” informa que “A não observância das medidas tomadas pelas autoridades também foi um fator importante na disseminação da gripe”. A autora cita Sorocaba como caso exemplar de não cumprimento das medidas básicas de controle, mas o mesmo pode ter ocorrido em outras cidades, incluindo Porto Feliz.
Wilson Monteiro registra que o prédio do Grupo Escolar foi novamente requisitado em 2 de junho de 1919, suspendendo as aulas por recomendação do Inspetor Médico Escolar, Dr. José Sacramento e Silva, sendo o prédio transformado em hospital para atender os casos de gripe espanhola, “conforme se lê nos Ofícios nº 27 e 28/1919 respectivamente de 02 e 03/06/1919, redigido pelo então diretor Profº Júlio de Oliveira, ao Diretor Geral da Instrução Pública, Oscar Thompson”.
O prédio do Grupo Escolar deveria ter sido reaberto no dia 15 de janeiro de 1919, por determinação da Diretoria Geral de Instrução Pública, mas como havia sido utilizado como Hospital de isolamento, teve que passar por uma desinfecção rigorosa, reabrindo somente no dia 1º de abril, com cerca de 300 alunos. O externato do professor Roque Plínio de Carvalho reabriu no dia 7 de abril. No entanto, como prova Wilson Monteiro, o prédio do Grupo escolar foi novamente requisitado dois meses depois, denotando que a gripe não somente não fora extinta, como também teria se agravado (CORREIO PAULISTANO, 9 jan 1919, p. 1; 30 jan 1919, p. 3; 14 abr 1919, p. 5).
O historiador e memorialista Romeu Castelucci, em seu livro “Efemérides de Porto Feliz”, comenta que em 3 de julho de 1919, um mês depois, a epidemia de gripe estava definitivamente extinta na cidade, deixando uma terrível estatística de 100 a 120 vítimas fatais da doença.
O que podemos aprender com o passado é que a ansiedade pelo relaxamento das regras de controle da disseminação da doença pode significar exatamente o contrário do que se espera. Em vez de celebração da vida, a solenidade das exéquias.
Carlos Carvalho Cavalheiro
12.05.2020
[1] https://saude.abril.com.br/blog/tunel-do-tempo/semelhancas-covid-pandemias-passado/ Acesso em 12 maio 2020
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos