Consciência Negra
Atribui-se ao ativista sul-africano Steve Biko o conceito de “Consciência Negra”, o qual teria sido delineado num texto escrito em 1971. Nesse escrito, Biko traz a discussão sobre a negritude, afirmando que não basta a pigmentação da pele para que se possa definir, ipso facto, alguém como negro. Para ele, ser negro é mais uma atitude mental, portanto de consciência, do que de tonalidade da tez.
Steve Biko dizia, em seu texto, que “Consciência Negra é, em essência, a percepção pelo homem negro da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação – a negritude de sua pele – e de agir como um grupo, a fim de se libertarem das correntes que os prendem em uma servidão perpétua. Procura provar que é mentira considerar o negro uma aberração do “normal”, que é ser branco. É a manifestação de uma nova percepção de que, ao procurar fugir de si mesmos e imitar o branco, os negros estão insultando a inteligência de quem os criou negros. Portanto, a Consciência Negra toma conhecimento de que o plano de Deus deliberadamente criou o negro, negro. Procura infundir na comunidade negra um novo orgulho de si mesma, de seus esforços, seus sistemas de valores, sua cultura, religião e maneira de ver a vida”.
Numa sociedade marcada pela discriminação, como era a África do Sul da época do Apartheid (política de segregação racial que durou até o início da década de 1990), era importante ao negro reconhecer que a “normalidade” não era o mundo construído pelos brancos, do qual os negros seriam enxertados. A normalidade deveria ser a igualdade entre negros e não-negros, garantindo a todos o direito de manter suas crenças, seus costumes, seu modo de viver, sua cosmovisão, sua religiosidade, a expressão de seus valores e de sua cultura e estética.
Por isso, a necessidade da tomada de consciência do que é ser negro. A adaptação ao mundo dos brancos não é ser negro. Adotar símbolos da cultura dominante para ser aceito pela sociedade é não ter consciência de seus próprios valores. Nesse sentido, vivemos uma época que a aberração toma conta de tudo e, por isso, nos ressentimos do retrocesso que esmaga nossos corpos e nossa alma.
O presidente da Fundação Palmares, jornalista Sérgio Camargo, nomeado pelo governo Bolsonaro, diz que a instituição promoverá “consciência negra zero” e que o movimento negro é “escória”. Sérgio Camargo representa, apesar da tonalidade de sua pele, o pensamento conservador e dominante – portanto, “branco” – reforçando pensamentos como o de que a escravidão foi benéfica para os africanos e seus descendentes.
O movimento pela Consciência Negra se faz mais urgente hoje do que em outras épocas. Muito além da luta pela formalização de um feriado, é preciso difundir seus fundamentos e levar o debate para a sociedade. A reação já se fez notar em alguns acontecimentos. A eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, alicerçou-se no movimento “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam), pois o candidato democrata apontou para uma direção diferente da atitude retrógrada e reacionária do seu adversário Donald Trump. Enquanto o atual presidente dos Estados Unidos usou da truculência contra os manifestantes do “Black Lives Matter”, não se importando, aparentemente, com as mortes de cidadãos negros, Joe Biden chamou para compor a sua chapa, como vice-presidente, uma mulher negra, a senadora Kamala Harris.
No Brasil, ainda nesta semana, o resultado das eleições municipais no Brasil apontou um aumento percentual de candidatos negros eleitos. De acordo com o site da Câmara dos Deputados, foram eleitos em primeiro turno pouco mais de 32% dos candidatos negros. É um avanço tímido, mas aponta para uma mudança. Por outro lado, em cidades da nossa região, o número de candidatos negros eleitos é baixo, quando não inexistente. Da mesma maneira, o número de mulheres.
No entanto, por uma questão conceitual, o conservadorismo tende a cair. Não há como manter por muito tempo as instituições sociais tradicionais no contexto da cultura e da civilização porque os tempos mudam e as mentalidades também. Sempre haverá um saudosista nostálgico lamentando os novos tempos. Mas ele será, em breve, uma voz solitária na multidão. Como Trump em seu escritório hoje.
Carlos Carvalho Cavalheiro
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos