
A diferença não tem face
Dentro do ônibus, o rapazinho Valentim resolveu puxar assunto com Beatriz… Pena que foi em uma situação tão adversa, no final da tarde de sexta-feira, trânsito caótico da capital, ônibus lotado e muitas pessoas cansadas. O jovem perguntava onde ela morava, quantos anos tinha e qual era o telefone de contato. Tão invasivas eram as perguntas quanto sua ânsia de viver. Beatriz, já cansada em função da rotina, sequer observou no rosto do jovem e, por isso, não notou que ele possuía síndrome de Down. Tinha respondido de forma apática que desejava ficar quieta naquele momento. Talvez reagisse diferente se houvesse olhado para ele com mais calma.
E Valentim assim seguiu ao longo do trajeto até descer. Ele perguntava para um, perguntava para outro e todos incomodados ficavam. Aflitos, desconcertados, alguns com olhares de receio, buscando artificialmente tratá-lo.
Naquele dia, após chegar a casa, Beatriz pensava que as pessoas não sabem lidar com algo diferente do esperado.
Iniciada nova semana, no mesmo ônibus, na segunda-feira, lá estava Valentim, perguntando as mesmas coisas aos passageiros. Dessa vez, Beatriz notou o porquê das perguntas específicas; ele, logo em seguida, respondia onde era o próprio endereço, qual era o seu telefone e quantos anos tinha. Se acaso ele se perdesse, aquele estranho poderia ajudá-lo a ir para casa. O desconforto maior das pessoas era o de serem incomodadas, mas algo interessante desponta dessa situação. Afinal, o que incomodava tanto? Responder às perguntas ou tentar recepcionar o outro que não se encaixa no seu padrão de interações humanas? Seja quem for esse outro e a sua singularidade.
Valentim fez amigos e, mais uma vez, seguiu até o ponto final.
Aprender sobre as situações que nos desconcertam diz muito sobre nós. Ocasionalmente, talvez possamos dialogar com um Valentim, para ver que ele é mais coerente, livre e ‘normal’ que muitos.
Em várias situações, ajustar a vida dentro da ‘caixa’ é a opção escolhida. Perde-se a chance de olhar no ‘rosto’ do outro e ver que a face com alguma síndrome talvez seja a sua.
Conto presente no livro: Primeiros Contos publicado em 2019.
Gabriela Lopes
gabils3377@gmail.com
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Formada em Direito, escritora, mentora literária e artista plástica. Palestrante da Feira Virtual do Livro da França e dos Estados Unidos. Já participou das feiras do livro do Perú e do Uruguai. Ela é Dra. Honoris Causa em Comunicação Social pela OMDDH, signatária do Pacto Global da ONU; Dra. Honoris Causa em Intercâmbio Cultural Brasil-África; Certificação da Academy do Pacto Global da ONU sobre Igualdade de Gênero; Pós em Direitos Humanos; Direito Constitucional; Bacharela em Direitos Humanos com ênfase em ciências sociais pela OMDDH. Bacharela em Direito pela Faculdade UNIPAC, Campus de Teófilo Otoni. Experiência no Ministério Público de Minas Gerais em estágio de pós-graduação na Coordenadoria Regional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente da Bacia do Rio Doce (Governador Valadares), atendendo 140 municípios. Membro de academias de letras nacionais e internacionais; Presidente do Instituto AMMAR MINAS; Diretora da Editions Cultive de Genebra; Autora de 6 livros literários, Coordenadora da Revista Cientifíca Multidisciplicar do Instituto Nelson Mandela de Angola- África; Participação do V Simpósio de Português como língua de herança do Japão- Realizado pelo Consulado Geral do Brasil em Hamamatsu no Japão e pelo Internacional Institute of Education and Culture; ganhadora de 34 premiações nas esferas literárias, acadêmicas e artísticas no Brasil e no exterior.

