COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO
O propósito de Kant
O propósito de Kant está em indagar sobre
até que ponto é possível ao homem
conhecer o que realmente conhece.
Até onde? Qual limite? Quais possibilidades?
Na coluna desta semana, irei por um caminho mais filosófico. Apesar de ser devoradora de livros de Psicanálise, uma das minhas paixões são as personalidades do campo da Filosofia, afinal, nossos maiores questionamentos acerca dos mistérios da mente humana, do universo, do finito e do infinito, do corpo e da alma, vida e morte, surgiram há milhares de anos nas mentes de grandes pensadores. Neste presente texto, discorrerei em breves palavras sobre Immanuel Kant e o seu propósito.
Nascido em 22 de abril de 1704 na cidade de Königsberg, Prússia Oriental, Immanuel Kant era o quarto irmão mais velho de onze irmãos. De família humilde, seu pai João Jorge Kant era seleiro, homem honesto e trabalhador. Sua mãe Ana Regina Reuter, profundamente religiosa, apresentou-lhe uma sólida educação moral.
Kant estudou no Colégio Fridericianum e na Universidade de Königsberg; nesta última tornou-se professor catedrático. Ele não se casou, nem teve filhos e nunca saiu de sua terra natal. Levou uma vida extremamente metódica, tanto é, diz a lenda, que os habitantes da cidade regulavam seus relógios quando o viam caminhar às 15 horas e 30 minutos. Kant faleceu em 12 de fevereiro de 1804. Era um homem um tanto baixo e franzino.
A síntese entre racionalismo e empirismo que o levou a buscar respostas, marca um movimento chamado Criticismo Kantiano, e vai nos apontar para duas problematizações centrais: na vertente racionalista dogmática (dos principais pensadores Descartes, Spinoza, Leibniz, Wolff) em que a razão é a própria origem e validação do conhecimento, faz-se um exercício analítico a priori, fundamentado no princípio das ideias inatas e no método dedutivo-matemático. Assim, através do princípio de identidade, que apresenta universalidade e necessidade, os racionalistas pretendiam demonstrar a validade e a verdade de seus pressupostos científicos. A crítica de Kant neste sentido é a de que o conhecimento, por esta visão, se apresentaria puramente tautológico, elucidativo, apenas explicativo de uma sentença. Por exemplo, ao falar que “o homem é racional”, o predicado racional é necessariamente parte integrante do conceito de homem; não teria como falar de homem sem falar de racional e continuar mantendo sua essência. Apesar desta observação, Kant diz que o racionalismo permite pensar o todo, o universal.
Já na vertente empirista cética (dos principais pensadores Bacon, Locke, Hume) o conhecimento é produzido a partir da experiência num exercício sintético a posteriori em que o predicado não se relaciona necessariamente com o sujeito. Isso quer dizer que o conhecimento é produzido a partir de outros tipos de representação de acordo com a experiência particular do sujeito com o objeto; os empiristas tinham fortes críticas às ideias inatas.
Para eles, a experiência é algo contingente, ou seja, alguma coisa pode ser ou pode não ser, mas não deixa de manter sua essência. Por exemplo, ao falar “a luz está acesa”, mesmo estando acesa ou apagada, a luz continua sendo luz, não haverá dentro do conceito de luz o predicado ‘acesa’ como parte integrante para constituir o conceito de luz. A crítica de Kant é que se o empirismo parte daquilo que é particular e contingente, como então seria possível obter conhecimentos universais e necessários. No entanto, ele mesmo reconhece que as experimentações de fato trouxeram contribuições de alguma maneira para a Ciência.
Apesar de as duas posições, empirismo e racionalismo, conterem argumentos elaborados de maneira rigorosa, a novidade que Kant traz, fazendo um paralelo entre estas vertentes, é que existem determinados juízos que são formados tanto por elementos a posteriori como pelo componente a priori. De acordo com Kant, toda mudança tem que ter necessariamente uma causa, isso seria rigorosamente universal e necessária; porém essa conclusão é sintética a priori, porque apesar de ser universal e necessária, o conceito de ‘mudança’ somente pode ser obtido através da experiência.
Diante disso, tem-se de um lado o juízo analítico, que possui a universalidade e a necessidade trazidas pelo racionalismo dogmático, mas é incapaz de acrescentar algo novo ao conhecimento; e de outro lado tem-se o juízo sintético fruto da experiência, que torna possível obter conhecimentos, mas que não possibilita pensá-los de modo universal e necessário.
Kant pretende superar essa dicotomia, pois tanto uma posição quanto a outra deixa um abismo que divide a produção do conhecimento e suas relações. As duas posições separam a razão da matéria, os conceitos do conteúdo. Para o pensador, o conhecimento seria então uma síntese entre um sujeito e um objeto. E isso aconteceria da seguinte maneira: através dos nossos esquemas mentais nós organizaríamos o mundo (que aparentemente é um caos; as coisas são formadas por átomos e estão dispostas em todo lugar e cabe a nós organizá-las mentalmente) e então o compreenderíamos a partir da realidade que a própria razão produz. Assim o conhecimento é ao mesmo tempo síntese do produto da razão e do produto da sensibilidade. Logo, para que haja conhecimento é preciso utilizar-se da experiência, fornecida pela nossa capacidade da sensibilidade, como também de conceito, fornecido pela nossa capacidade de entendimento.
Para Kant, o conceito vai muito além de considerar ideias inatas, pois para ele não há conhecimento inato, o que existe são formas e conteúdos vazios que serão preenchidos através da experiência. Kant afirma que a estrutura da razão é inata, mas não o conhecimento. Logo, para ele, a Ciência faz justamente isso: é uma síntese a priori de condições subjetivas do sujeito que permitem acrescentar algo à experiência que não está contida na experiência por si só. Esta é a grande genialidade de Kant: a possibilidade do juízo sintético a priori, que reúne conteúdo e forma, superando a concepção racionalista dogmática pautada em juízos de explicação e a concepção empirista cética fundamentada nos juízos de extensão.
Bem, até aqui, Kant vem discutindo a partir dessas duas vertentes os principais caminhos da Ciência para a construção do conhecimento. A grande questão de Kant, que por sua vez, culmina para a elaboração da sua Estética Transcendental (leitura extremamente complexa) é: enquanto David Hume afirmava que a Ciência era algo meramente provável, Kant realmente atribuiu à Ciência o status de algo possível, válido. A sua árdua tarefa é dizer como ela se tornou possível. E mais: atribuir à Metafísica o mesmo grau de certeza equivalente aos conhecimentos vindos da Lógica, da Matemática e da Física. Aqui uma observação interessante: Sigmund Freud também encarou um árduo desafio em sua época (século XX) de conceber a Psicanálise como uma Ciência, algo como uma metapsicologia. Igualmente ao filósofo foi duramente criticado.
Embora Kant fizesse ferrenhos apontamentos ao empirismo cético de David Hume quando este dizia que a Ciência não ultrapassaria o status de provável e muito menos atribuir a Metafísica a capacidade de produzir conhecimentos racionais e certos, foi este mesmo pensador que levou Kant a compreender a necessidade de repensar toda a Metafísica tradicional. Ele reconheceu que esta área do conhecimento até então não atingiu a mesma confiabilidade das ciências. O filósofo prussiano conduziu-se consciente da incerteza das conclusões da Metafísica e da fraqueza dos argumentos em que esta se assentava.
De fato, é nela que estão relacionadas as problemáticas que envolvem conceitos como infinito, totalidade, absoluto, imortalidade da alma, Deus, liberdade do homem. São questionamentos que sempre fizeram parte das especulações do homem (e até hoje são angustiantes) e não os tornam indiferentes à própria existência humana. Ainda que não pudéssemos ser capazes de resolvê-los, é possível pensá-los, cogitá-los, refletí-los. É como se o homem não conseguisse se esquivar dessas questões durante sua vida.
Kant, ainda, problematiza que a razão humana não pode ser limitada à experiência, contudo é da própria experiência que surgem determinadas lacunas que nos levam a pensar para além dos limites dela e a conceber realidades transcendentes, tais como a alma, o mundo, a natureza, assim por diante; quando não há como viver uma experiência, a razão vê-se abandonada às próprias forças. No entanto, segundo o pensador, a mesma situação ocorre com outras disciplinas como Lógica, Matemática e Física que formularam conceitos certos e racionais na medida em encontram na natureza as exigências a priori da razão. Tais disciplinas “descobriram” o caminho seguro da Ciência e progrediram infalivelmente. A Metafísica, ao contrário, continua a tatear.
Para finalizar, o propósito de Kant está em indagar sobre até que ponto é possível ao homem conhecer o que realmente conhece. Até onde? Qual limite? Quais possibilidades? Para quem ficou curioso pelo seu empreendimento, a leitura de Crítica da Razão Pura e o projeto para uma Estética Transcendental são recomendáveis. Mas fica o alerta: é altamente envolvente e desafiador!
Bruna Rosalem
Psicanalista Clínica
@psicanalistabrunarosalem
www.psicanaliseecotidiano.com.br
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Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.