CINEMA EM TELA
Marcus Hemerly: Artigo ‘A construção da obra-prima de Luiz Sergio Person’
“recomeçar… recomeçar… mil vezes recomeçar…Recomeçar.”
Walmor Chagas em São Paulo, S/A.
Por um lado, se há o aforismo pelo qual não existe nada perfeito, de outra visão, existem composições artísticas que beiram tal definição. É o caso do longa-metragem de 1965, São Paulo, Sociedade Anônima, estreia de Luiz Sérgio Person na direção.
Analisando os históricos de bastidores, trata-se de uma película na qual não houve qualquer tipo de rusgas, atrasos ou imprevistos durante sua filmagem, demonstrando um cronograma de viés empresarial. Inclusive, uma das peculiaridades assimiladas pelo filme, é justamente o cotejo de qualidade artística e feições autorais ao aspecto comercial, pois o que se desvela é uma fita vendável e palatável a todas as audiências.
Não é sem fundamento sua pronunciada distribuição no exterior, participação em festivais, além do amealhar de estrelas da TV e teatro ainda durante sua pré-produção. Originalmente intitulado de “Agonia”, a partir de um poema de Vinícius de Moraes, conhecemos a história de Carlos, interpretado por Walmor Chagas em seu primeiro papel no cinema, que se relaciona e casa com a jovem Luciana, uma das maiores performances de Eva Wilma.
Perpassando seus conflitos internos numa narrativa não linear extremamente eficiente e inovadora, revelam-se ainda personagens secundários densos e complexos. Numa miríade de nuances e evoluções, acompanhamos o amadurecimento dos personagens transposto à tela por bem esmeradas e detalhadas evoluções de figurino e gestual.
Aspectos minuciosamente orquestrados pela direção precisa e eficaz de Person, que retornava ao Brasil após ter estudado no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma, diferenciando-se dentre muitos de seus contemporâneos pelo know how e a visão, repise-se, artística e empreendedora na arte de fazer cinema.
É possível asseverar que o projeto desde a concepção do argumento e roteiro, com a sagaz mudança posterior do título, escolha de elenco a partir de suas potencialidades, (inclusive para fins de publicidade), fazem de “São Paulo, SA” um dos filmes mais bem sucedidos do cinema nacional.
A despeito de críticas conflitantes no Brasil e no plano internacional, até mesmo indicando que o roteiro muito aproximava-se de um folhetim novelesco, é inegável que o dialogar empático com os mais diversos tipos de público, sem destoar da sofisticada forma na qual a cidade é retratada, até mesmo como um personagem autônomo, revelam a arte e precisão da produção.
Desde as externas rodadas em momentos mais lúgubres e cinzentos da capital paulista, estilo de filmar aproximando-se, ora do neorrealismo, ora do Nouvelle Vogue perpassando as cores (ou descolorir) existencialista, o que materializa é um roteiro eficiente e aprazível àqueles que apreciam a boa arte.
A insatisfação ríspida do protagonista, e, diga-se, quase anti-herói, Carlos, a contraposição da ingênua Luciana e seu posterior despertar do casulo de ingenuidade, o industrial proeminente e trapaceiro interpretado brilhantemente por Otelo Zeloni, se amalgamam à própria cidade que serve de esteio a suas ambições, frustrações e sucessos.
Um retrato fiel de um período, orquestrado de modo lírico por uma história contada com a perfeição na qual todos os desfechos do roteiro são decupados com perícia e entrecortados com simbolismos.
De se dizer ainda, que estampando-a em tom coadjuvante, não raro até mesmo protagonista, renove-se, a cidade de São Paulo é um personagem à parte, na qual a retratação da expansão industrial automobilística em determinados momentos desvela até mesmo um tom documental.
A técnica narrativa é descrita de forma magistral por Ninho Moraes, em sua obra para a Coleção Aplauso, “Radiografia de um Filme”, (p.190), na qual disserta:
“Para ser analisado, São Paulo Sociedade Anônima coloca-se como um desafio entre cenas avulsas intercaladas na construção de um sumário narrativo. A história filmada respeita a história escrita e não propõe sequências que se liguem diretamente.
Poucas ações ocorrem sucessivamente em tempo e lugar definidos. Ao contrário de um romance ou de um filme, que narram uma história com começo, meio e fim, o roteirista- diretor olha o universo dos personagens de fora para dentro, como se fossem lembranças, os tais flashbacks, ou até mesmo um sonho ou sucessão de sonhos”.
Planos e sequências gravadas em grandes montadoras multinacionais, cenas interiores que a partir de cada angulação potencializam a fala e presença de cena dos personagens, além da trilha sonora instigante emolduram uma produção que merecidamente encabeça a lista de melhores filmes realizados em solo brasileiro.
Ressalva-se, por óbvio, impressões diversas, afinal, tal é o papel das artes, instigar sentimentos bem como reflexões/provocações. Na biografia de Walmor Chagas concebida também para a Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial, Djalma Limongi Batista, (p.47), escreve acerca de tais vertentes:
“Radicalmente, o filme de Luís Sérgio Person expressa a tensão de uma cidade latino-americana prestes a se tornar cosmopolita e megalópolis, em sua explosão industrial- financeiro-demográfica, poderosa e fatal como uma górgona hipnótica, capaz de sugar a alma e petrificar o corpo. Metrópole a qual se ama e odeia, se quer largar e tem-se sempre que voltar – e recomeçar… Nem a Cidade do México, ou Buenos Aires, Caracas, nem o Rio de Janeiro produziram filme tão impressionantemente identificado com esse momento”.
Segue pontuando, “E, ainda mais raro, a formação de sua classe dominante – assunto tabu numa cinematografia que é sempre aplaudida, internacionalmente, quando expõe (quanto mais brutalmente melhor) a classe pobre e pra lá de oprimida. Nem sendo paulista, Walmor Chagas consegue com sua singular persona, montada quando chega a São Paulo, identificação completa com a cidade e o mais simbiótico de seus filmes”.
Interessante apontar que outra realidade seria transposta em momento ulterior por um dos discípulos de Person da faculdade de cinema da São Luiz, o festejado cineasta marginal Carlos Reichenbach, que dedicaria a ele sua obra-prima, Filme Demência.
Naquele roteiro, numa releitura contemporânea e urbana da lenda de Fausto, Reichenbach demonstraria a derrocada e crise do contexto industrial em meados dos anos 80, ao trabalhar os extremos das promessas econômicas não cumpridas, e podendo com isso, indicar a volatilidade tanto dos seres humanos, de carne e osso, quanto das selvas de pedra que os devoram na forma de leões de concreto, ou os regurgitam em alheio defenestrar.
Poema citado no texto.
Agonia – Vinícius de Moraes
No teu grande corpo branco depois eu fiquei.
Tinha os olhos lívidos e tive medo.
Já não havia sombra em ti – eras como um grande deserto de areia
Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem noites.
Na minha angústia eu buscava a paisagem calma
Que me havias dado tanto tempo
Mas tudo era estéril e mostruoso e sem vida
E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara.
Eu estremecia agonizando e procurava me erguer
Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos.
Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma
Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.
Depois foi o sono, o escuro, a morte.
Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente
Vinha cheio do pavor das tuas entranhas.
Link para assistir ao filme pelo you tube: https://www.youtube.com/watch?v=ns-LPKhz_AE
Marcus Hemerly
WhatsApp: 28/99994-1202
Voltar: http://www.jornalrol.com.br
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Nasceu em Cachoeiro de Itapemirim/ES, em 1989. Formado em Direito, é servidor do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. Autor da obra “Verso e Prosa: Excertos de Acertos”, originalmente publicada em formato físico, coautor em antologias poéticas e de contos. Membro de Academias Literárias, recebeu prêmios e comendas, tais como: “Prêmio Monteiro Lobato”, “Prêmio Cidade de São Pedro da Aldeia de Literatura”, “Grande Prêmio Internacional de Literatura Machado de Assis”, “Medalha Patrono das Letras e das Ciências, Dom Pedro II”, “Medalha Notório Saber Cultura” e foi um dos vencedores do concurso internacional de poesias “Covid Times Poetry” promovido pela ONG “WHD – World Humanitarian Drive”. Foi agraciado com o Título de Doutor Honoris Causa em Literatura, pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Históricos e Filosóficos, com a Comenda Olavo Bilac Príncipe dos Poetas, pela Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes (FEBACLA), o título de Cavaleiro Comendador da Ordem de Gotland, pela Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente, dentre outras honrarias. É colunista de cinema e literatura, contribuindo para sites e jornais eletrônicos
O Marcus é brilhante!
Eu sou fascinada em tudo q vem dele! Pois tudo é poesia, arte, sabedoria, uma imensidão de possibilidades, é alegria, provoca explosões das melhores sensações.
De uma muito fã.
Muito bom, saber mais detalhes dessa obra do cinema novo…
Marcus parabéns pela iniciativa de escrita, O cinema lido desta forma num enredo tão rico e bem distribuído é muito prazeroso e gratificante. Suas matérias arrasam.