Elaine dos Santos:
‘Sobre compromisso e partilha do conhecimento’
Este texto vem com uma semana de atraso. As ‘moiras‘, figuras mitológicas da Grécia antiga destinadas a ‘tecer o destino’, atrapalharam-me de enviar a minha coluna na semana passada.
Na verdade, a referência às moiras é apenas um eufemismo para afiançar que a idade avançou e, com ela, os problemas de saúde: sobreviverei.
Ainda no ensino médio, olhava para a minha professora de português e pensava: “Será que eu quero fazer isso?” As moiras decidiram que eu precisava inserir-me no mercado de trabalho e assim o fiz. Acabei cursando, pela metade, Ciências Econômicas, mas, para mim, dois e dois sempre será vinte e dois, desisti do curso por causa da Matemática Financeira.
Quando regressei à universidade, optei por Letras e não poderia ter feito escolha melhor. Eu já trabalhava em escola, no serviço administrativo, quando fiz essa escolha e conhecia o universo estudantil, que era muito instigante (creio que sempre o será, apesar das dificuldades inerentes à cada geração).
O dia 15 de outubro é consagrado ao professor. Trata-se de uma pessoa que escolheu ensinar e isso, para mim, é um grande diferencial. É um ser humano que decidiu colocar o seu conhecimento a serviço do aluno, da sociedade, da humanidade. São quatro ou cinco anos frequentando um curso de graduação para aprender, além dos conteúdos característicos desse curso, como lecionar/ como ensinar.
Tinha uma companheira de viagem para a faculdade que estudava Física, certa vez, ela disse-nos que estava prestes a desistir: havia resolvido um problema qualquer, usara cinco folhas de caderno (frente e verso) e o resultado final fora zero. Se a sociedade imaginasse os conteúdos que conhecemos e não são empregados em sala de aula, mas são necessários para compreender todo o arcabouço teórico que compõe cada área…ah, o tratamento seria outro!
Eu trabalhei com alunos do curso superior – diurno e noturno -, trata-se de um público completamente diferente daquele que se atende no ensino médio, ainda que, em alguns casos, eles tenham quase a mesma idade e as mesmas angústias.
Além disso, fui coordenadora de curso da graduação em Letras, função administrativa, pedagógica, psicológica, materna (e eu confesso: nunca tive vocação para a maternidade, mas a minha professora de Literatura Portuguesa dizia que eu sou a clássica ‘pata choca’, que coloca todos embaixo das asas e protege, sejam seus patinhos ou não).
Há um processo em curso que menospreza a docência: escolas sucateadas; uma legislação que engessa o ensino; baixos salários se comparados aos profissionais com o mesmo nível de formação; ainda assim, a sociedade passa pela sala de aula, passa pelo professor que se dedica ao aprendizado do seu aluno, que o recebe com a disposição de levá-lo, nem que seja pela mão, a construir-se como cidadão.
Aliás, a cidadania talvez seja o grande desafio, que extrapola a função das ‘moiras’: é um trabalho contínuo, feito de esclarecimento, de criticidade em uma sociedade que exclui, que reprime, que segrega.
Encontramo-nos diante da mistanásia, quando o paciente morre à espera de consulta, de exames, de cirurgia, o que seria um dos direitos inerentes à nossa condição humana. A insegurança nossa de cada dia tornou-nos prisioneiros em nossos lares (quando a condição financeira assim o permite), com câmeras, alarmes e todos os dispositivos anti-gente estranha.
Tornamo-nos prisioneiros da corrupção – e se há um corruptor é porque alguém aceitou ser corrompido: dizer a verdade tornou-se um ato obsceno; confundiram ensinar com doutrinar; não sabem discernir entre questionar e afirmar e a mentira grassa solta, impávida com se fosse senhora de todo o saber.
É preciso dizer: haja coragem para ser professor, haja coragem para professar a fé no ser humano, haja coragem para seguir preparando aulas, partilhando conhecimento, ouvindo alunos, amparando alunos (disse-me uma ex-aluna que é professora na atualidade: “Professora, eles sequer têm portas em casa, vivem em lugares com apenas um cômodo!”).
A minha profissão de fé segue sendo a favor do conhecimento, creio sempre que o conhecimento liberta (e, como falava a minha falecida mãe: “Ninguém te rouba, te sonega o conhecimento. Com ele, a gente recomeça do zero”), o conhecimento empodera e, mais que isso, apavora os tiranetes de plantão.
Obrigada, senhores professores: um mundo minimamente digno ainda passa pelas vossas mãos. Em nossas salas de aula, existem seres humanos carentes de atenção, que a sociedade capitalista compreende como objetos, mão de obra barata.
Profa. Dra. Elaine dos Santos
Contatos com a autora
- Sobre compromisso e partilha do conhecimento - 22 de outubro de 2024
- Uma linha férrea, um córrego, muita nostalgia - 3 de outubro de 2024
- Para onde vamos? Como vamos? - 12 de setembro de 2024
Natural de Restinga Seca (RS), é licenciada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. Possui 29 artigos acadêmicos publicados em revistas nacionais na área de Letras com classificação Qualis, além de participação em eventos com trabalhos completos e resumos. É autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe, adaptação de sua tese de doutorado, e coautora em outros livros versando sobre Direito, História, Educação e Letras. É revisora de textos acadêmicos, cronista com textos publicados em jornais regionais e estaduais e participação em mais de 80 antologias.
Como sempre, Elaine dos Santos, nos traz excelentes textos… Parabéns pelo conteúdo. Grande abraço.
Obrigada por seu carinho e pela leitura, que eu sei, é sempre criteriosa/atenta.
Ser professor é um acto de extrema coragem.
Parabéns, Professora Elaine !