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Élcio Mário Pinto: crônica 'Uma letra'

Élcio Mário Pinto Élcio Mário Pinto: ‘UMA LETRA’

 

            Não era pra menos que o Dr. Luiz Augusto de Proença e Menezes, renomado advogado trabalhista da metrópole e da capital, assim que chegou à pequena Calipilândia, terra dos bolinhos de frango e do eucalipto, dirigiu-se ao fórum com a intenção inequívoca de tratar diretamente com o juiz.

            Sem saber, exatamente, por qual rua deveria seguir, porque o GPS, estranhamente, não marcava o destino dando a entender que tal endereço não existia, foi perguntando logo na chegada da cidade:

            – Bom dia, senhora! Faria a gentileza de me dizer como é que faço para chegar ao fórum?

            O homem de gravata, conduzindo o carro que brilhava, graças ao polimento feito na véspera, não deixava dúvida: era alguém importante!

            A mulher, gente simples, da acolhedora e simpática cidade do interior, respondeu:

            – O “Dotôr” pode seguir direto até o fim, depois vira assim (fez a direção para a esquerda com mão e braço), continua em frente até o final e é subir. No final da subida, é lá que fica o “fóro”.

            – Fico-lhe mui agradecido pela atenção em me responder. Desejo-lhe um ótimo dia, senhora!

            A mulher olhou com estranheza, porque entendeu a maioria das palavras, mas, o jeito de falar causava a maior confusão em sua cabeça acostumada com frases curtas e objetivas. É que na educação rural, mais ocupada com a terra do que com as letras, as palavras são poucas e quando muitas se unem para dizer alguma coisa, a coisa dita se perde num labirinto de estranhamentos.

            Despedidas ali acontecidas, o carro desceu e o advogado, todo cuidadoso para não avançar sinal e nem ultrapassar a velocidade permitida, observou que em Calipilândia não existia um só semáforo, ou como falavam os brasileiros do Sul, nenhuma sinaleira.

            Mas, isso também não era problema, afinal, o assunto que o trazia à pequena terra dos bolinhos e da madeira cortada – diziam, reflorestada –, era outro.

            Feito o trajeto em três retas quase sem placas e com poucos obstáculos, o primeiro sorriso do garboso advogado, aconteceu.

            – Pois é, meu caro! Aqui estamos para saber o que houve…

            O homem da gravata impecável, ostentando anel de formatura e de tradição familiar, emplumado em seu orgulho por tudo o que conquistara com estudo, dinheiro e vitórias nos tribunais, orgulhava-se de ser um vencedor. As palavras ditas não eram dirigidas a ninguém, senão a ele próprio e em voz alta.

Dr. Luiz Augusto de Proença e Menezes alimentava o próprio ego quando pensava que não fazia jus à sua dignidade locomover-se da capital para ter com um juiz de primeira instância numa cidade minúscula para saber do que emperrava o processo iniciado com uma belíssima petição. Pelo menos, foi o que ouviu de seu pai, também advogado renomado, quando este, lendo o escrito, não guardou modéstia em palavras ditas ao filho:

– És o meu orgulho e aqui está a prova! Não se pode negar um pedido tão bem feito e fundamentado. E digo mais: quando o pedido é tão perfeito e completo, como este, transforma-se em ordem, antes mesmo da apreciação pelo Judiciário.

Mas, como sempre se disse em Calipilândia, não há EGO que não encontre o seu avesso num dia de “oge”. E o tal era aquele hoje, o dia com seu avesso que se aproximava.

– Boa tarde, senhorita!

– Boa tarde, doutor!

– Por favor, pode me informar qual é a sala do Dr. Benevides, juiz da Vara Única Cível?

– Pois sim, digo eu, senhor doutor. É só seguir à esquerda até o fim do corredor. Bata na porta que é única.

Com certa pressa e sem fazer “cera”, o ilustre advogado despediu-se com o olhar da funcionária e foi em direção à sala do comprido corredor.

Olhou para as paredes das duas laterais e entendeu o motivo da atendente falar da tal porta única.

Assim que bateu, já de primeira, ouviu:

– Pode entrar.

Abriu a porta, tão singela como qualquer outra.

– Com licença, excelência!

– Pois, vamos entrando, homem. Sinta-se à vontade que esta é a casa do povo.

O advogado estranhou o linguajar porque enquanto andava pelo corredor pensava que era sua prerrogativa entrar sem bater e ser atendido pelo juiz tão rápido chegasse. Era o que estava escrito no Regimento da Ordem que ele havia decorado em seus anos de profissão.

Mas, para evitar constrangimentos e garantir sua segurança, já na chegada, bateu, pediu licença e entrou.

– E então, doutor, o que deseja de mim e o que posso fazer pelo senhor?

– Excelência, digo, Dr. Benevides, permita-me a manifestação objetiva de não entendimento, de minha parte, quanto ao emperramento do processo pela negativa de vosso despacho, antes mesmo de qualquer análise.

– Vejo que o doutor é homem cerimonioso! Tens a minha simpatia, mas, com o tempo, meu caro, todos os poderes, assim como os orgulhos, caem por terra. E, às vezes, por coisas mínimas, tão pequenas e insignificantes que causam um considerável estrago naquele que as provocou. Mais ainda, quando o sujeito reflete sobre sua qualidade de profissional excepcional e ilibado em quaisquer minúcias de seus escritos produzidos à base de pesquisa e muita reflexão.

O advogado, ao ouvir, sentiu que devia recuar porque o juiz não era um ignorante de uma cidadezinha perdida num interior qualquer. Ao mesmo tempo, pensava que o homem falava como se estivesse enviando mensagens subliminares para que ele as entendesse e aplicasse ao que seu cotidiano produzia e enviava às Varas e Tribunais do Judiciário.

– Pois bem, excelência, em poucas e curtas palavras, gostaria de entender seu despacho e por isso estou aqui.

– Nem precisa me dizer, doutor, de qual processo se trata. Ele está comigo porque eu o aguardava. Fiz questão de segurá-lo, sabendo de sua dedicação ao trabalho e presteza às ações de seus afazeres profissionais. Sabia que não se demoraria em vir para saber, pessoalmente, de quais razões minha decisão se munia e se sustentava. Estou certo?

– Sim, excelência, está certíssimo!

– Aproxime-se, sente-se e se desejar, tome de nosso café. Devo dizer que na capital não existe outro com qualidade igual.

– Agradeço pela hospitalidade, mas, estou bem assim.

– Sinta-se à vontade, então!

– Obrigado, excelência!

– Vejamos… o processo número… barra… Aqui está. Deseja olhá-lo novamente?

– Se me permite, desejo.

– Pois então, não se acanhe. Tome-o e veja o quanto desejar.

– Agradeço-lhe, excelência!

(…)

– E então, doutor, alguma observação a fazer antes que me pronuncie?

– Devo dizer que não entendi seu despacho, como afirmei anteriormente. E aqui, olhando o processo todo, insisto que estou na mesma situação de dúvida.

– Bem, como o doutor olhou detidamente e mantém tudo o que aí se encontra escrito, quero destacar a razão de minha decisão que, neste momento, faz por trazê-lo à minha sala.

– Saiba, excelência, que estou deveras interessado em saber e entender o que aconteceu para que façamos tudo o mais rápido possível, visto que devo voltar à capital para meus trabalhos de urgência.

– Saiba, doutor, que entendo perfeitamente sua postura profissional e seu zelo pelo que faz. Mas, creio que, sem demora, assim que tudo ficar entendido, sua volta à capital acontecerá imediatamente.

– De todo o meu ser, é o que desejo!

– Pois, detenha-se no último item da ação protocolada.

– Devo dizer, excelência, que já o fiz e mantenho o pedido.

– Pois, insisto, é exatamente sobre este dito que deve deter-se.

O advogado, então, decidiu retomar a leitura do último item pelo seu título. E naquele momento, exatamente no instante que seus olhos o contemplaram, seu rosto ficou vermelho, a mão que segurava o processo começou a tremer e um incômodo generalizado passou a assumir todo o corpo que agora suava. Naquela rapidez de reações emocionais misturadas às manifestações físicas do corpo, não se podia ter dúvida: tratava-se de algo grave!

O juiz, que olhava para o advogado enquanto mantinha sua expressão de simpatia e compreensão, só fez por dizer:

– Creio que uma emenda se faça necessário.

– Com toda a razão, excelência!

O ilustre advogado, com um passo para trás, ainda disse:

– Contando com sua compreensão, dê-me licença.

Nada mais era preciso falar.

O homem do terno impecável, com anel no dedo e cheirando a perfume estrangeiro, saiu às pressas da sala e envergonhado, sem falar com mais ninguém, levando o processo embaixo do braço, evitando assim que alguém pudesse lê-lo, só pensava em salvar-se da vergonha escrita no último item da petição. Ao contrário de PEDIDO, estava: PEIDO.

 

ÉLCIO MÁRIO PINTO

22/12/2016

(Para o Jornal ROL – Itapetininga – Helio Rubens)

Helio Rubens
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