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Ivan Fortunato: conto 'Solidão e Cura'

Ivan Fortunato publica seu primeiro conto: ‘Solidão e Cura’

Apresentação

Este ano retomo as atividades como colunista do jornal ROL.
Para começar, apresento um conto que foi escrito há alguns anos, mas, por motivos que desconheço, permaneceu na gaveta.
Espero que a leitura seja tão agradável quanto foi sua escrita!

 

Conto: Solidão e Cura

Saiu de meu consultório disposta a mudar sua vida. De novo. Era o oitavo analista, psicólogo, curandeiro que visitava. Todos lhe diziam a mesma coisa em palavras sinônimas, sugeriam-lhe ações similares e recomendavam-lhe que voltasse na semana seguinte. Ela nunca voltava.

Casada há 35 anos, sozinha há mais de vinte. A paixão por Floriano rendeu-lhe dois filhos prematuros, um aborto espontâneo e outro natimorto (seriam meninos também). Ainda, foi ameaçada a ser expulsa de casa se não consumasse o matrimônio antes do nascimento do primogênito. Tinha quinze anos e jamais terminou os estudos.

Sua história era muito parecida com dezenas de outras mulheres de meia-idade que entravam e saiam da clínica, cuja solução, quase sempre, era cuidar esteticamente de si mesma, iniciar uma atividade física e procurar um amante, caso o marido insistisse em não lhe procurar. Mas havia algo em Ana muito mais interessante do que uma crise pós-menopausa, época em que os filhos já criados saem de casa, o esposo na idade do lobo chega constantemente atrasado em casa porque está em busca de meninotas que irão resgatar-lhe a mocidade e, assim, a constante e assustadora solidão e o esvaziamento dos propósitos da vida: não há filhos e marido para alimentar e vestir, então o que fazer?

Ana contou que vivia do Tarô, aprendera ainda criança com a avó, e descobriu enquanto moça que havia pessoas dispostas a pagar bom dinheiro para alguém que pudesse lhes dizer como seria o futuro, ou se deveriam ou não sair com determinado rapaz. Assim, conquistou um belo pé de meia e, há pouco mais de dois meses, deixou um bilhete escrito ‘te amo, Flor’ e desapareceu.

Quis saber se apanhava em casa, disse que não; perguntei se o esposo saia com outras mulheres, disse que não; falamos sobre sua vida amorosa e disse que estava satisfeita no quarto, ‘apesar de não subir com a freqüência que subia antigamente’, e riu. Foi me procurar porque queria respostas, mais profundas que obtivera com seus oráculos, e menos óbvias do que ouvira das amigas e terapeutas que visitara.

Conversamos, como manda o protocolo, sobre sua infância, seu pai, sua mãe e seus irmãos. Nada. Abordamos seus filhos, suas noras e netos. Nada. Trouxemos para o consultório os dois meninos que não nasceram (na forma de almofadas), ela disse que lhes amava muito e pediu perdão por não ter sido a mãe deles nessa existência. Nada. Acabaram os cinqüentas minutos da sessão e eu tinha outra cliente.

Mais tarde resolvi ligar em seu celular. Havia deixado seu guarda-chuva e eu ameacei doá-lo para algum bazar de caridade caso não fosse buscá-lo. Disse que a única janela que tinha em minha agenda era no dia seguinte pela manhã.

Chegou no horário, colocou o guarda-chuva na bolsa e sentou-se na cadeira preta retrátil. Inclinou o encosto, fechou os olhos e disse que a resposta que veio buscar derivava da pergunta ‘se tenho amor de meus filhos e marido, por que me sinto só?’. Conversamos novamente sobre a infância, pais, irmãos. Nada. O casamento prematuro e o abandono dos estudos. Nada.

À noite, enquanto cozinhava para mim e minha esposa e lutava bravamente para manter Peludo e Bolacha (meus gatos) longe do frango que grelhava para o jantar, pensava em Ana: em 15 anos de prática nunca recebera um paciente que não relatasse problemas e/ou dificuldades, que não apresentava sintomas somáticos de algum distúrbio ou que não se queixasse de nada. Era como se lhe faltasse algo…

Foi quando corri atrás de Peludo em busca de uma fatia de peito de frango – já sabendo que aquele filé não poderia ser aproveitado senão por ele mesmo e seu colega de caçadas – que percebi o que poderia completar a vida de Ana e apagar seu sentimento de solidão.

Abracei e me despedi dos meus dois bichanos, deixei um recado na geladeira dizendo que voltaria em algumas horas, ‘te amo’, peguei minha carteira, as chaves do carro e o endereço de um velho amigo. No caminho ligaria para Ana.

Pouco antes de estacionar na frente da casa do Veloso, telefonei. Disse a Ana que deveria ir imediatamente para casa se encontrar com Floriano. Anotei o nome da rua e o número da casa.

Logo, o casal pode ver meu carro dobrando a esquina e parando suavemente próximo à calçada. Desci do carro com duas criaturinhas assustadas, de bigodes brancos, pelugem amarela e cinza e olhos azuis; carregava uma em cada mão. Disse que tinham 60 dias e que precisavam de um lar, comida, mas, principalmente, muito amor e carinho. Despedi-me com um breve ‘boa noite’.

A última notícia que tive de Ana veio de uma carta que ela deixou com a minha secretária no consultório, há alguns dias. Era um envelope lacrado com cola branca e dois grampos. Dentro, meia folha de papel sulfite com a palavra obrigada escrita em letras grandes de forma. Na letra O, Ana rascunhara o rostinho de um gato.

 

Ivan Fortunato, doutor em geografia pela UNESP, professor do Instituto Federal em Itapetininga, membro do IHGGI e secretário da Academia de Letras de Itapetininga (2017/2018)

 

São Paulo/Itapetininga, janeiro de 2017.

Helio Rubens
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