outubro 05, 2024
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O leitor participa: Manoel Peres Sobrinho e o conto 'Pão com ovo'


O leitor participa: Manoel Peres Sobrinho e o conto ‘Pão com ovo’

— De que me serve todo esse conhecimento, se não sou feliz?

— A felicidade não é algo que possa ser encontrado no conhecimento.

— Então, onde?

— Aí é que está. Em lugar algum! De maneira alguma!

— Em lugar algum? De maneira alguma?

— Sim! Não se assuste por isso.

— Como não me assustar?! Nunca ouvi alguém dizer isso!

— Eu sei. É porque você está imerso num mar de imediatismos e, as pessoas assim, pensam que ser feliz é ter mais, e cada vez mais. Serem donas dos seus narizes. E, ainda, pensam que a felicidade é um lugar onde se pode chegar.

— Então, o quê se pode fazer para achá-la? Para conquistá-la?

— Nada! E não se pode achá-la, também. Ela nos encontra, se preenchermos as suas exigências.

— Não, não, você está pirando a minha cabeça!

— Hum, hum, assim mesmo o que você ouviu.

Aquela conversa parecia não ter fim e, pelo jeito, não chegaria a lugar algum. Mas, pelo tom da coisa, ninguém queria abandonar o assunto, pois parecia que ambos estavam muito interessados em saber onde aquilo tudo iria dar.

Vou ilustrar isso contando uma pequena história, quem sabe o que eu disse fique mais claro.

Havia uma família muito pobre e sem nenhum conhecimento. Seus membros viviam à margem da sociedade. Suas vidas resumiam em trabalho, trabalho e trabalho. Com o tempo, as crianças foram crescendo. Arrumaram um bom emprego, estudaram, se casaram, e, como se diz por aí, ‘fizeram a vida’.

Mas nenhum deles se sentia feliz. Parecia que a felicidade era alguma coisa que não se podia compreender e achar, nem ao menos imaginar o que fosse.

Por isso, fizeram um pacto: todos iriam fazer o máximo em prol da felicidade, de tal maneira que só buscariam a felicidade, tudo estaria sendo focado nela.

Passaram-se os anos e eles um dia se encontraram para ver o que haviam conseguido. Se, porventura, alguém podia ter tido êxito naquela insólita competição.

Primeiro falou a irmã mais velha. Havia corrido mundos, feito fortuna, conseguido grandes empresas, o reconhecimento, várias vezes, como a maior administradora. Conseguiu ganhar prêmios e mais fama ainda. Com isso, e por causa disso, teve que deixar a família longe dos seus olhos. Não viu crescer suas crianças, de maneira que elas se tornaram estranhas à própria mãe. Tinha muita força ao dirigir muita gente, administrar grandes conglomerados empresariais, falava com fluidez e desenvoltura a língua dos poderosos, porém nunca teve um momento para um carinho do marido, um afago de mãos com as crianças, uma atenção trivial da vida, como tomar um sorvete, comer um lanche, ou fazer compras num shopping qualquer. Lançou toda a sua vida numa empreitada que a fez rica, como o mitológico rei Midas, mas solitária e miseravelmente sem ninguém. Nos hotéis onde passava as noites, via tudo muito de longe, convivia com a solidão do poder.

Ao terminar sua fala, havia um silencio terrível e acusador. Era como se pesasse sobre as suas cabeças um tenebroso julgamento dos céus. Até que o irmão do meio começou sua exposição pessoal.

Como tinha uma cabeça acadêmica, ingressou logo cedo na universidade, pensando que ali encontraria a resposta que tanto necessitava. Passou anos e anos estudando toda classe de conhecimento, mas principalmente as filosofias. Buscou centenas de obras que expusessem todo o conhecimento humano, de tal maneira que nada pudesse escapar ao fio do seu julgamento científico-filosófico. Estudava a fundo todos os assuntos e não permitia que nada lhe ficasse obscuro. A profundidade de seus conhecimentos tornou-o distante das pessoas simples. Já não conseguia entabular uma conversa de mais de cinco minutos, com alguém que não pudesse acompanhar o seu raciocínio nem seu rebuscado vocabulário. Irritava-se com frequência, quando o que expunha não era percebido com inteligência; mais ainda, quando a pessoa não tinha argumentos que pudessem levar a conversa uma pouco mais adiante. De modo que seus amigos de conversa ou de entretenimento passaram a ser somente os livros. Cada vez mais complicados e cada vez mais distantes da trivialidade da vida. Por isso, sua solidão era vista a olhos nus. Tornou-se um homem taciturno, amargo, crítico, ranzinza, e cheio de desconfiança. Tudo pra ele estava fora de lugar, tudo era imperfeito. Ele não cabia mais no mundo de meros mortais. Com o tempo desenvolveu uma espécie de melancolia espantosa, o que lhe ocasionou uma série de úlceras e, por fim, uma depressão crônica.

Terminado seu relato, ninguém ousava dizer coisa alguma. Estavam estupefatos. Com o coração batendo a mil. Era como se o telhado houvesse caído em suas cabeças. Mais um infeliz que, tendo encontrado muito, revelava-se um sem nada!

Até que, por fim, começou o relato do menor.

Este seguira a carreira religiosa. Desde sempre tinha uma tendência acentuada no que tocava ao santo, ao sagrado. Seu rosto era de uma santidade ingênua, como uma escultura barroca. Suas atitudes eram mansas e recheadas de bondade e clarividência. Estava sempre perto dos mais oprimidos. Vivia a mitigar o sofrimento alheio, de maneira que em sua região todos os chamavam de “pastor”. Logo ingressou num seminário. Fez cursos teológicos, estudos das religiões mais exóticas, conheceu todas as formas de revelação de Deus, buscou saber a história de todas as atitudes do divino. Sabia tudo de todas as fés que se apresentavam no mundo. Era já doutor em várias universidades, de sorte que era muito convidado para palestras em todo mundo. Falava com fluência várias línguas, vivas e mortas e, quando lia os compêndios sagrados, o fazia em sua língua original. Era um verdadeiro colosso. Com o tempo, porém, já não podia ser encontrado com pessoas simples e seus problemas tão triviais. Seus assuntos agora eram as altas esferas dos clérigos internacionais. Vivia andando de conclave em conclave, traçando planos para a salvação do mundo, de forma que nem podia orar direito, nem ler as Sagradas Escrituras, para o seu alimento espiritual. Seus projetos, sempre urgentes, o tornou um homem ansioso e pouco sereno, sempre estafado e sem cuidado com a própria alma. Era um religioso que muito conhecia de Deus e deuses, mas a si mesmo pouco servia. Assim, passou a ser distante do que era simples e santo, cultivando uma desconfiança acentuada das pessoas e suas tradições religiosas. Sentia-se mais santo que os outros; mais entendido que os outros, e, mais capacitado, em matéria de fé, que os outros. Diante de um panteão de santidade, sentia-se humilhantemente sozinho, tocando às raias do ceticismo.

Ao término da exposição do caçula, a mesma atmosfera pesada, densa e ofensiva. Foi quando a mãe, daquelas três infelizes criaturas, entrou na sala e disse com voz confiante e pausada:

— Vamos hoje comemorar a presença de vocês três em nossa casa com uma alimentação muito usada nos tempos de suas infâncias: pão com ovo, — e saiu para buscar o desjejum.

Houve uma comoção geral, e uma alegria que há muito não experimentavam. Riam como crianças travessas, e começaram a lembrar dos chistes que cada um fizera a seu irmão. Era como uma classe de infantis. Haviam descoberto, enfim, o caminho ao coração da vida.

Sergio Diniz da Costa
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