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Artigo de Guaçu Piteri: BAR DO POVO – UM BALCÃO DE HISTÓRIAS

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 Em sequência à publicação de tópicos selecionados do livro  “Sonhar é Preciso – Comunidade e Política nos Tempos da Ditadura”, (Edifieo; 2008), esgotado, damos início, hoje, ao capítulo que me traz boas recordações da infância no Quilômetro Dezoito, bairro periférico típico de Osasco de meados do século passado:

Guaçu

 1 – TERTÚLIAS DOMINGUEIRAS

Minha família radicou-se no Quilômetro Dezoito, após a instalação de um modesto bar, inaugurado em sete de setembro de 1947.

Com o tempo e a expansão do bairro, o comércio familiar também cresceu e, em 1950, estava funcionando a padaria. Apesar da implantação da padaria, o estabelecimento ficou conhecido como Bar do Povo, denominação usada nesta narrativa.

O Bar do Povo logo se transformaria no ponto de encontro de figuras da política, do sindicalismo, do movimento estudantil e da ação comunitária. Era para lá que convergia quem buscava foro democrático para discutir temas diversos e polêmicos. Elzo, meu irmão, que gerenciava o estabelecimento, organizava os eventos do bairro: corridas, pau-de-sebo e gincana na comemoração do dia da Pátria. No dia primeiro de maio promovia mini-maratona, o torneio de futebol entre gordos e magros, solteiros e casados e a equipe feminina — de jogadores vestidos em trajes de mulher, maquiados, equilibrando-se em sapatos de salto alto — e os adversários do time masculino vestindo terno e gravata. Lembro-me dos folguedos típicos das festas juninas, com fogueira, balão, quadrilha, comidas típicas e cordões de bandeirinhas coloridas esticadas na rua. Tudo o que se passava na comunidade acabava inserido no pátio, na frente do Bar do Povo.

 Com o tempo, Elzo providenciou uma sala ao lado do bar onde a comunidade fazia suas reuniões. Todos os domingos a cena se repetia. Pela manhã, como se tivessem combinado horário e local, chegavam os vários grupos: sindicalistas sobraçando pacotes de “VOZ OPERÁRIA”; grupos de tendência conservadora folheando “O ESTADO DE SÃO PAULO”; alguns moradores que paravam e ouviam antes de entrar no bar.

A rotina era sempre a mesma. No início, os debates não tinham conotação ideológica. Havia os que se manifestavam em defesa da autonomia de Osasco e os que entendiam que o melhor era seguir na condição de distrito da capital. Nessa polêmica envolviam-se vários contendores. Os mais apaixonados eram o tenente Ferreira, o barbeiro Honório e Jaime Moreira Lima, conhecido pelo apelido de “Engole Faca”. Os três eram vizinhos do Bar do Povo e ardorosos debatedores. Quando o assunto era a política estadual, as opiniões se dividiam: Cantu era janista; a professora do bairro – dona Luzia – e meu compadre Antônio Dias Neto declaravam-se ademaristas. Nesse tempo, a dicotomia Jânio – Ademar concentrava as preferências do eleitorado do estado de São Paulo. No Dezoito, entre meus conhecidos, havia apenas dois juscelinistas declarados. Ambos eram mineiros: um, Antônio Miguel, já idoso, gabava-se da amizade de líderes do PSD, partido de JK; o outro, ainda jovem, em decorrência do inusitado de sua inclinação política, era apelidado “Kubi.” O apelido, como se pode observar, era uma alusão ao sobrenome de Juscelino.

Só depois de debaterem esses assuntos tidos como menores, a controvérsia se concentrava nas questões ideológicas. O tema que mais empolgava era a política internacional, com destaque para o confronto entre as superpotências – Estados Unidos e União Soviética – nos tempos da guerra fria.

Lembro-me que, certa manhã, a polêmica girou em torno do depoimento de um sindicalista muito estimado que acabava de retornar da União Soviética. Na visita participara de reuniões, de debates e de congressos. Certamente trazia novidades. Alguns dos presentes dispersos e desinteressados aproximaram-se atentos.

Instado a relatar o que vira durante a viagem, Conrado Del Papa avançou dois ou três passos. Os que não o conheciam viram que era corpulento e já um pouco obeso. Seus olhos pequenos e profundamente azuis, apesar de cansados, moviam-se inquietos. Suas características marcantes eram a vasta cabeleira prateada e a voz mansa. Se fosse possível encontrar nexo entre aparência e temperamento, podia-se afirmar, com toda a segurança, que era de índole pacífica e conciliadora.

Antes de iniciar seu relato, Papa olhou ao redor um pouco reticente. Não se considerava versado em questões doutrinárias. O que sabia havia juntado na prática do ler e do ouvir em função da militância e da consciência política. Não tinha dúvida, entretanto, em afirmar que regressara impressionado com o progresso científico, o avanço tecnológico e o desenvolvimento cultural do mundo socialista. Na ciência, nas artes e na tecnologia, a União Soviética seguia na vanguarda.

Nessa altura da reunião alguns dos presentes desinteressaram-se do assunto e se retiraram. A assembléia ficou restrita, mas, se perdeu em quantidade, ganhou em animação. Dinho Belini, um dos mais antigos moradores do bairro, que aguardava a oportunidade de se manifestar, não disfarçou a ironia. Perguntou se era só isso que transmitiam aos convidados na União Soviética. Mostravam-lhes shows de tecnologia e do Bolshoi, porém, pelo jeito, não lhes permitiam conhecer o “paraíso soviético” nos confins da Sibéria.

Papa não se irritou. Ouviu o comentário com certa indiferença e reagiu com serenidade. Respondeu que viu o que foi possível . Sempre atento procurou avaliar o que lhe mostravam, com os olhos críticos de militante consciente. De tudo o que lhe fora dado ver e ouvir regressava trazendo na bagagem balanço positivo. Apesar das conhecidas dificuldades na agricultura, o progresso da classe trabalhadora era marcante.

José Arévalo, imigrante espanhol bem sucedido e futuro vereador, sempre presente às reuniões domingueiras, quis saber no que a vida do trabalhador soviético era melhor do que a do brasileiro.

O essencial para viver com dignidade, o trabalhador tinha. Não faltava moradia, nem saúde, educação, lazer, trabalho e segurança. Além de tudo, o proletário soviético tinham como recompensa a certeza de que colaborava para a construção de uma sociedade nova e igualitária.

Arévalo, com o seu “portunhol” que se acentuava quando os debates eram mais acalorados, discordou:

– “Nosotros somos amigos e yo te respecto. Pero voy falar claro: o comunismo nada logró además de llevar la classe operária a la miséria.”

Antes da resposta de Papa, Luiz, jovem estudante operário provocou:

– Não dá confiança companheiro. Isso é conversa de burguês franquista despeitado.

– Alto lá moço, interferiu Dinho Beline. Eu não sou burguês, nem franquista, mas penso como o espanhol.

Arévalo levantou-se colérico e avançou na direção de Luiz:

– Que le passa a esse loco. Cállate “coño,” se no quieres …

A confusão generalizou-se e os contendores partiram para as ofensas pessoais e ameaças de agressão. A reunião esteve a ponto de degenerar em conflito, mas após muitos apelos restabeleceu-se a ordem e os participantes, reconciliados, se retiraram prometendo regressar no domingo seguinte no mesmo horário e local.

II – O PRAZER DE DISCORDAR – Na próxima terça-feira. Aguarde! 

Helio Rubens
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