‘A incoerência e a inconsistência do governo atual’
Após o resultado das urnas da última eleição presidencial o clima de expectativa pairou sobre os brasileiros. Afinal, o presidente Bolsonaro iria impor uma ditadura, como prognosticara em entrevistas há quase duas décadas? Ou seria apenas um fantoche nas mãos de eminências pardas que comandariam, de fato, o país? Ou toda a falácia e fanfarrice eram apenas jogo de marketing político com o objetivo de convencer as mentes menos afeitas ao exercício do pensar?
É possível, ainda, que fosse o presidente o “Salvador”, aquele que iria expurgar todo o mal impregnado como pátinas nas páginas de nossa história? Já se passaram três meses de governo e o que tem sido apresentado?
É possível que o modelo de Previdência social do Brasil esteja falido. É mais do que provável que haja necessidade de uma reforma. Porém, o que se apresenta como proposta de reforma? A mulher que hoje se aposenta com 50 anos de idade, terá que trabalhar, ao menos, mais dez anos! Desconhece-se, por essa proposta, a jornada excessiva da mulher, que não se restringe apenas na jornada de trabalho formal.
A par disso, a proposta de “contribuição” dos militares para o sacrifício é ridícula. Sem a necessidade de se ter curso superior para ingressar nas Forças Armadas, os militares apresentaram uma proposta na qual o tempo de escola ou academia militar contam como trabalho efetivo para fins de aposentadoria (reforma), bem como garante aumento entre 26 a 73% do salário para cursos de especialização realizados.
Um plano de carreira considerado “decente” para os profissionais do Magistério preveem algo em torno de 10 a 15% por curso de Mestrado ou Doutorado! Não se trata de desprestigiar a carreira militar, ao contrário. O caso aqui é criar uma distância imensa entre os militares e os trabalhadores civis. Se o tempo exige sacrifícios, esses não devem cair apenas nos ombros dos trabalhadores comuns.
Mas o governo Bolsonaro não coleciona apenas esse descompasso de propostas de reforma da Previdência. São tantos os desencontros, fiascos e gafes que parece roteiro de filme de chanchada, daquelas que fizeram de Oscarito e Grande Otelo espetaculares comediantes.
Por outro lado, há coisas que não têm graça alguma. Reviver antigos símbolos da repressão, por exemplo, além de não redimirem a figura desastrada do governo, colaboram para macular, isso sim, ainda mais o tecido roto que se tem construído ao longo desses meses.
Nesta semana, veiculou-se pela imprensa o desejo de Bolsonaro de que o dia 31 de março fosse comemorado, relembrando o Golpe que deu origem à ditadura militar de 1964. Não se sabe se a ideia partiu de alguém que procurava recuperar o prestígio abalado do governo ou se faz parte de um plano maior de trazer o sopro mofado daqueles anos terríficos para os dias atuais.
O pior é o descompasso do discurso com a prática. Incoerentemente, Bolsonaro diz que a Venezuela é uma ditadura, com um antro de terroristas, e que precisa ser combatida. Ao mesmo tempo, exalta a ditadura militar brasileira. Diz ser nacionalista e firma acordos que interessam apenas aos Estados Unidos. Usa o termo “viés ideológico” como muleta em que sustenta qualquer fala. Mas exaltar o militarismo, e, pior, a ditadura militar não é “viés ideológico”?
Nenhuma proposta que modifique a vida do povo para melhor. Nada. Apenas discursos vazios, curtos e grossos, rasos e ralos. Foi assim na apresentação de Davos, foi assim no jantar com conservadores nos Estados Unidos. Bolsonaro parece reconhecer que ainda não estava preparado para assumir tantos encargos. Por outro lado, seus discursos, sempre genéricos – como foram durante a campanha (que ninguém se diga enganado por ele) – são desatualizados também.
O tempo evocado em suas palavras é o da Guerra Fria. “Precisamos reforçar a democracia neste lado do Ocidente”… Como se alguém estivesse ainda interessado em “combater o comunismo”! Desde a década de 1990, com a derrocada da União Soviética e dos países comunistas do Leste Europeu, as relações internacionais são pautadas por interesses econômicos.
A ajuda “humanitária” oferecida pelos Estados Unidos à Venezuela, via Juan Guaidó, o presidente autoproclamado (lembra a autoproclamação do imperador Napoleão, da França do início do século XIX), não se repete quando nações africanas são assoladas por temporais, como em Moçambique com a passagem do ciclone Idai.
E em meio a tanta incoerência e inconsistência, no dia 8 de março o ator José de Abreu autoproclamou-se presidente do Brasil. E, pior de tudo, irritou Bolsonaro que prometeu processá-lo. É o Brasil da comédia e da tragédia juntas.
Carlos Carvalho Cavalheiro – carlosccavalheiro@gmail.com
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos