Já no final do século passado eu me convenci da impossibilidade de conseguirmos despertar a consciência de contingentes mais expressivos da população para a necessidade e urgência da superação do capitalismo, não só como requisito indispensável para a felicidade e realização plena dos seres humanos, como também para a própria sobrevivência da humanidade.
Isto porque, como alertara Marcuse, a lavagem cerebral ininterrupta e cada vez mais eficaz da indústria cultural e a obsessão consumista manteriam a falsa consciência do rebanho, evitando que, por decisão consciente, resolvesse tomar seu destino nas mãos para, aproveitando racionalmente os avanços científicos e tecnológicos de nosso tempo, forjar uma sociedade igualitária e livre.
Sem poderem encontrar a saída do inferno atual, as pessoas comuns tendiam a continuar indefinidamente patinando sem sair do lugar, confiando em populistas de esquerda na linha dos pais dos pobres e em populistas de direita na linha dos salvadores da pátria.
Ambos coincidem em serem desprovidos de soluções reais e em estarem conscientes de que, se e quando as ditas cujas surgirem, eles próprios se evidenciarão obsoletos e vão ser descartados, daí tudo fazerem para manter a polarização retrô atual, aliados que são na empreitada de abortar o futuro.
Mas, refleti, continuava existindo a possibilidade de, em momentos de aguda desestruturação da sociedade (como os que propiciaram as revoluções soviética, chinesa e cubana), agrupamentos menores mas conscientes de onde querem chegar e da melhor forma de atingirem seus objetivos, conseguirem direcionar os acontecimentos para a ruptura necessária.
“aliados na empreitada de abortar o futuro” |
Foi quando comecei a apostar minhas fichas numa repetição ampliada dos movimentos que pipocaram por diversos países em 1968. E, efetivamente, o que mais tem abalado o stablishment, neste século 21, são tais explosões de anseios de vida represados por uma sociedade cada vez mais tendente à morte.
Diferentemente da claque do capitalismo, eu tenho perfeita noção de que a crise derradeira do regime da exploração do homem pelo homem vem sendo postergada há décadas por meio de gambiarras, mas não poderá ser evitada para sempre; e de que, quanto mais ela demorar, mais devastadora será.
A grande depressão da década de 1930 parecerá brincadeira de criança perto da que está para ocorrer.
E jamais serei tão ingênuo a ponto de acreditar que o sistema seja capaz de, antes do início das grandes catástrofes que já se anteveem no horizonte, reverter a tendência de aumento incessante do aquecimento global. Afinal, até agora nem sequer conseguiu impor o fim do transporte individual movido a combustível fóssil.
Gostaria de estar trazendo esperanças aos meus leitores, mas de que me adiantaria redigir verdadeiros tratados se hoje a grande maioria dos brasileiros enterra a cabeça na areia como as avestruzes e quer porque quer acreditar que:
— o capitalismo possa ser humanizado por meio do voto e, consequentemente, ainda valeria a pena participarmos de eleições de cartas marcadas;
— as reformas liberais do mercador de ilusões Paulo Guedes sejam remédios eficazes e não apenas paliativos de efeitos homeopáticos e curta duração, pois a crise ininterrupta do capitalismo desde 2008 sinaliza o seu esgotamento definitivo e o imperativo de sua superação;
“paliativos de efeitos homeopáticos e curta duração” |
— a imposição de um autoritarismo tosco e o fim da corrupção política trariam benefícios remotamente comparáveis aos prejuízos sociais que acarretam ao propiciarem a escalada desembestada da ignorância e da truculência;
— o eu por mim e o diabo por todos dos identitários seja algo além de uma dispersão das forças que deveriam estar todas unidas na luta contra o inimigo comum, caso contrário nenhuma conquista que uma delas obtenha sozinha estará garantida;
— Deus esteja presente nos suntuosos templos em que espertalhões oficiam o culto ao bezerro de ouro, etc.
Tudo isso posto, voltemos à pergunta crucial do Lênin: o que a esquerda deve fazer?
Não há caminho fácil à vista. Estamos extremamente inferiorizados, então nossa prioridade óbvia é a acumulação de forças.
Já que descemos ao fundo do poço, trata-se do momento ideal para nos guiarmos por Carlos Dittborn que, quando um terremoto destruiu a infra-estrutura com que o Chile contava para sediar o Mundial da Fifa de 1962, afirmou: “Porque nada tenemos, lo haremos todo“. Então, como a esquerda se tornou uma terra arrasada, é hora de reconstruí-la toda.
De voltarmos a nos organizar para as lutas sociais e para a resistência ao neofascismo por todo o território brasileiro, não para a disputa de eleições inócuas a cada dois anos (até porque os donos do PIB viram a mesa como e quando querem, conforme aprendemos em 2016) e coçar o saco no intervalo entre uma campanha eleitoral e outra.
Rumando para inevitáveis explosões sociais |
De passarmos a encarar as instituições e Poderes da democracia burguesa tão somente como ferramentas táticas, e não como prioridades estratégicas. Enquanto for possível, devemos utilizar as contradições no seio da classe dominante para evitar o pior (chacinas, volta da censura, devastação ambiental, etc.), mas sem nenhuma ilusão de que a teremos ao nosso lado nos momentos de agravamento das crises econômica e política.
E, acima de tudo, de irmos forjando uma nova vanguarda, que possa fornecer um norte aos brasileiros nos difíceis tempos que o país atravessará quando as bombas-relógio já acionadas acarretarem as inevitáveis explosões sociais.
A estupefação e a pasmaceira vêm desde 2016; ou recuperamos a combatividade perdida ou marcharemos para a insignificância. O tempo urge!
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É fundador e um dos editores do Jornal Cultural ROL e do Internet Jornal. Foi presidente do IHGGI – Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga por três anos. fundou o MIS – Museu da Imagem e do Som de Itapetininga, do qual é seu secretário até hoje, do INICS – Instituto Nossa Itapetininga Cidade Sustentável e do Instituto Julio Prestes. Atualmente é conselheiro da AIL – Academia Itapetiningana de Letras.