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Mario Persico: 'A dama que não comia alface'

Mario Persico

A dama que não comia alface

Conheci Lélia Abramo aos pedaços, ou aos pouquinhos. Sempre aqui em Sorocaba. Não, minto. Uma vez e a primeiríssima vez foi no Cultura Artística. Era uma noite festiva em que o espetáculo As Lagrimas Amargas de Petra Von Kant, com direção do Celso Nunes completava mil apresentações. Fernanda Montenegro convidou o publico para comer um pedaço de bolo com o elenco no foyer do teatro. Eu sempre voraz por doces me coloquei muito perto do bolo e vi num canto mais atrás e sozinha a Lélia em pé. Discretamente vestida. Até que foi vista pela atriz Marcia Real que fazia parte do espetáculo e que a pegou pela mão e trouxe para junto da Fernanda e do restante do elenco. Fiquei com aquela imagem por muito tempo. Uma senhora sozinha e discreta num canto do foyer. Isso foi em meados da década de oitenta. Alguns anos depois e já em Sorocaba torno a reencontra-la em diversas ocasiões. A primeira delas foi como júri do extinto Festival Tropeiro de Teatro, isso já nos anos noventa. Lélia era uma das juradas e como tal deu uma palestra à tarde em um dos dias do festival. Começou a palestra pedindo ajuda a Sebastião Milaré que também participava do festival. Mas não foi preciso. Lélia falou sobre sua carreira e sobre a ditadura militar e sua atuação política no sindicato e o preço que pagou por isso. Lélia foi colocada na geladeira da Globo. Esse jejum só foi quebrado, segundo a própria, para uma belíssima participação em O Tempo e o Vento na própria Globo e mais nada. Um ator naquele tempo entrava para gravar e só ia sair no outro dia. Lélia colocou um fim na festa. E pagou por isso. Contava com certa tristeza, mas feliz por ter colocado ordem na casa. Lembro que numa das noites do festival estou eu em meu bar o “Embriagai-vos” quando de repente chega uma comitiva da prefeitura trazendo todo o corpo de jurados do festival e atores de algumas peças. Sou logo procurado e informado que o debate havia se estendido muito e o restaurante que iria atende-los fechou. E eles precisavam de comida. Informei que não tinha comida e sim lanches e porções e o Roberto Gill que os conduzia respirou aliviado. Foi um alivio também para mim. O bar estava praticamente vazio àquela hora e eu mesmo fui tomando os pedidos e explicando o que era cada lanche. Num determinado momento chego à Lélia, Gil me pediu de canto que trouxesse o pedido dela antes por que ela estava cansada e ele iria leva-la para o hotel assim que comesse. Ela pediu o Casablanca, um lanche de frango no pão sírio que era um dos sucessos da casa. No cardápio dizia ir alface e lembro dela questionar aquele alface ali naquele lanche, pois alface e frango não cai bem. Expliquei que o alface era apenas um montinho devidamente picado e colocado sobre o pão sírio que era cortado em quatro pedaços e no meio para decorar ia aquela bolinha de alface picado com cenoura ralada. Era mais um ponto decorativo, um contraste de cores que propriamente para serem comidos. Ela pareceu entender, mas pediu que fosse suprimido assim mesmo. E Assim foi feito. E eu que não gostava muito de alterar os pratos da casa, até porque todos tinham um toque artístico tive que ceder ao desejo da velha senhora. Ela saiu logo após comer e não a vi sair. Apenas notei que não estava mais ali. Era uma turma grande e todos falando muito alto. Atores enfim. Mais uma vez ela estava discreta à mesa. Como no dia que a vi no Cultura Artística. Depois disso a veria novamente em uma montagem sobre a vida de Rosa de Luxemburgo que acabei fazendo frente e vendendo duas sessões para escolas. Lélia fazia uma participação afetiva. Entrava em cena e ficava pouco mais que cinco minutos e saia. Ao final no agradecimento lembro que alguém do elenco quis trazê-la à frente e ela murmurou que aquele lugar era da atriz Dulce Muniz que protagonizava o espetáculo. Mais uma vez ela se reservava junto ao coro. Depois disso eu a veria em uma entrevista na TV que também me marcaria fundo. Ela era entrevistada em seu apartamento em São Paulo e ao final ela dizia que ninguém naquele prédio falava com ela, nem ao menos um bom dia e sentenciava: Burguesia burra. Soube muitos anos depois de sua morte que ela veio muitas vezes pra Sorocaba e ficava hospedada na casa da atriz Ligia de Paula, atual presidente do Sated. Foi assim pelas beiradas ou de passagem que a conheci. Mas sempre sabendo quem ela era e tendo memória de muitos trabalhos principalmente na TV. Lélia Abramo foi também militante e fundadora do Partido dos Trabalhadores, tendo assinado a ata de fundação com Mário Pedrosa. Por mais discreta e sóbria que ela fosse eu sabia que estava ali com ela e nela, toda sua história como atriz e líder sindical. Nada de grande diva. Nem nas roupas. A atriz que foi a primeira Romana no Black Tie, Mãe Coragem de Brecht, Pozzo em Esperando Godot, e tantos outros personagens e textos importantes e dirigida por Antunes filho, Alberto D´Aversa, Abujamra, Jose Renato, Walmor, Vaneau, Boal para citar apenas alguns, sai de cena discretamente em 9 de abril de 2004, aos 93 anos, vitima de uma embolia pulmonar. Muitos hoje vitimas da memória ou falta de uma memória que preserve nossas tradições não sabem quem ela foi ou sua importância histórica e artística. Burguesia burra.

 

Mario Persico

mariopersico@ciaclassicaderepertorio.com.br

 

 

 

 

 

Sergio Diniz da Costa
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