Era assim…
Um conto alusivo à década de 50/60 – Rua da Boiada – Cruzeiro/SP
Na década de 50, era quase inexistente caminhões para o transporte de gado a ser levado de um lugar para o outro. Ele era conduzido por homens denominados condutores ou boiadeiros; estes guiavam os bovinos até o destino final, que poderia ser o de uma fazenda para o matadouro ou para a estação de trem, onde seriam enviados para outras cidades. Havia sempre um boiadeiro ou peão que ia à frente, tocando o berrante, que servia, naturalmente, para acalmar o gado e impedir que se espalhasse.
A Rua da Boiada, como era conhecida pelos moradores, fora a rota essencial para transporte de gado, mas seu logradouro era Bertolino Cipriano Pinto, que recebeu essa nomenclatura em homenagem a esse homem que foi um grande pecuarista da época e proprietário de muitas terras. Descendente de uma família provedora, pioneira e tradicional da cidade de Cruzeiro, interior paulista do Vale do Paraíba. A rua, atualmente, é a principal via do bairro Vila dos Expedicionários.
A rua era de terra, larga e não havia iluminação, esta, somente no interior das casas dos moradores. As casas ficavam de um lado, e do outro, somente mato e brejos, habitados por sapos, rãs, formigueiros e outros bichos. Alguns falavam que também tinha escorpiões e que era perigoso ir para aquelas bandas. Ah! vale lembrar que havia uma parte mais habitada onde ficava o campinho, onde os meninos gostavam de jogar bola . Existia também, próximo ao campo, uma olaria (lugar onde se fabricava tijolos de barro) e, anexo a ela, morava uma família que “dava duro no barro na transformação de tijolos”. Eles não faziam contato com a vizinhança. Chamavam a atenção pelo tom de pele e pelas manchas e pintas esbranquiçadas bem definidas em algumas partes do corpo, a exemplo do rosto, braços e pernas. Era visível o quanto os vizinhos tinham medo deles e não se arriscavam chegar perto.
Hora de passar a boiada, era a hora de correr para dentro de casa, fechar os portões e pegar a cadeira, colocá-la na frente da janela, subir e assistir ao desfile dos bois. Alguns, desajeitados, esbarravam-se nos muros das casas ou nos portões ‘desembestados’, assustando a plateia. Um e outro ficavam para trás, sendo necessário o boiadeiro buscá-lo.
Na Rua da Boiada os quintais das casas eram grandes e com muitas árvores frutíferas. Na casa de Liz, cada um dos irmãos tinha a sua de preferência e se esbaldavam na época do fruto. Também era palco de muitos cenários: sabugos de milho verde e chuchus eram transformados em girafas, cachorros e outros. Mas era na rua que as coisas pegavam fogo. À tardezinha as crianças marcavam ponto. Iam chegando de mansinho, parecia que todas as casas tinham um representante. Engraçado, os antigos tinham a mania de ‘inho’: Luizinho, Vardinho, Edinho, Pedrinho, Zildinha, Cidinha, Betinha, e muitos eram os ‘inhos e inhas’. “Mamãe posso ir”, passar anel, corre cotia, amarelinha e tantas outras brincadeiras. Assim que se cansavam, voltavam para as suas casas para descansar os corpinhos suados que, na maioria das vezes, pulavam para camas e só iam acordar no dia seguinte
As crianças da ‘Rua da Boiada’ acordavam cedo e eram estimuladas pelos pais a irem tomar leite, tirada das tetas da vaquinha na hora, na fazenda do Nonô (Cipriano), que ficava no final da rua. Cada criança levava sua canequinha, alguns até colocavam um punhadinho de Toddy para causar inveja.
Tomar leite na fazenda era o máximo para a saúde e para o bolso dos pais também.
A Rua da Boiada (Rua Bertolino Cipriano Pinto) é cortada por um ‘Riozinho’, como era chamado. Outrora, cedeu águas cristalinas para as lavadeiras que moravam às suas margens. O ‘Riozinho enchia de alegrias as crianças que nele iam nadar escondidos dos pais e até mesmo em cultos evangélicos, como batizado.
De tempo em tempo acontecia os batismos, e era um dia muito esperado, não faltava público infantil para ficar de ‘bituca’ para assistir. A criançada ficava na Ponte, torcendo para alguma pessoa se afogar. Era só gargalhadas.
Que tristeza me dá vê-lo hoje tão desprezado, na miséria, pedindo por socorro.
Na Rua da Boiada era comum as crianças se recolherem mais cedo em dias de lua cheia, principalmente quando caia em uma sexta feira “Dia de Lobisomem”. O Senhor Antonio, marido da Tianinha, era um deles. O avô de Liz, Sr. Salvador, era conhecido na região, tinha tido a experiência, “diziam”(?), mas o forte mesmo era o ataque aos cachorros da rua. Nesses dias, eles uivavam exageradamente por volta da meia-noite. Hora pesada e perigosa! Ninguém se atrevia a sair na rua. O negócio era cobrir a cabeça e ficar bem quietinho debaixo das cobertas.
‘Piloto’ era ao cachorro da Dona Filhinha, raça Policial, conhecido por toda vizinhança, pelas histórias de valentia, vivia arrumando confusão. Em uma noite enluarada de sexta-feira, Piloto sofrera ataque de lobisomem e fora encontrado morto no dia seguinte, bem cedinho, com várias perfurações pelo corpo.
Na Rua da Boiada, em noite de luar, as crianças saiam das casas para caçarem vagalumes. Vagalumes são insetos minúsculos, dotados de ‘lanternas luminosas’. Sua luz pode ser vista à distância e encanta a todos que o vê. Verdadeira obra de Deus. As crianças, adoravam pegar o ‘bichinho’ e esfregar suas lanternas (traseiro) sobre as roupas para que, por um curto período de tempo, permanecesse a brilhar; isso lhe trariam sorte, contudo, tinha que ter cuidado para não levar as mãos aos olhos, ‘para não ficarem cegos’.
Na Rua da Boiada existia uma casa de número 516. Uma casa de esquina, pintada da cor verde. A casa era simples, porém revestida de aconchego e muito amor. Tinha um enorme jardim na frente onde se destacavam as dálias amarelas e as margaridas, dentre as demais flores. Ah! o Sr. Oswaldo, avô de Liz, suas mãos exalavam o perfumes delas. Mãos abençoadas, onde tudo que plantava florescia. Quanta saudade! Como esquecer! Uma história de vida, de lágrimas, sorrisos, suor e esperanças…
Hoje, a Rua Bertolino Cipriano Pinto, que outrora era conhecida pelos moradores como Rua da Boiada, é totalmente povoada por residências. A saudade ficará para sempre no coração daquelas pessoas que, durante a década de 50/ 60, tiveram o privilégio de ter morado ali. A casa de número 516 não tem mais jardim.
Eliana Hoenhe Pereira
eliana.hoenhe1@hotmail.com
- A vida e suas nuances - 18 de novembro de 2024
- Permito-me ser - 1 de novembro de 2024
- Apego - 12 de outubro de 2024
É natural de Nilópolis – RJ e atualmente reside em Cruzeiro/SP. É Formada em Magistério pela antiga Escola Normal de Cruzeiro. Estudou psicologia na Faculdade Salesiana de Lorena/SP. Pós-graduada em Psicopedagogia, Terapia familiar. Curso de extensão em Dependência química e álcool. Título de especialista em Psicologia clínica, concedido pelo CRP. Trabalhou como psicóloga do CEMTE (Centro Educacional Municipal Terapêutico Especializado) Madre Cecília de Taubaté – SP de 1984 a 2014. Atuou como Psicóloga, coordenadora do núcleo ‘Autismo’ e, nesse universo, participou de vários cursos e congressos. Responsável técnica da clínica ‘Performance’; Assistência psicológica e psicopedagógica a familiares de funcionários da Volkswagen de Taubaté – SP de 1984 a 2013. Escritora, poetisa e contista da ALAC (Academia de Letras e Artes de Cruzeiro). Autora dos livros: O peixinho X Editora Scortecci, 1989); Flora por que comigo? e Em paz com o passado. Projeto: Escritoras Revisionistas, representantes do Vale do Paraíba e região nos eventos literários. Tendo participado da Feira de São Bento do Sapucaí, Passa Quatro, Cruzeiro, Cachoeira Paulista e Resende. Defende a Causa no Combate à Violência contra a Mulher. É vice-presidente do CMM (Conselho Municipal dos Direitos da Mulher) Cruzeiro – SP.