COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO
“Mecanismos de defesa no ‘setting’ analítico: quem engana quem?”
O setting analítico é mesmo um grande desafio para o psicanalista, que,
além de interpretar toda e qualquer manifestação do analisando […]
também precisa lidar com uma espécie de jogo teatral
e malabarismos ensejados pelo seu cliente.
Em uma sessão de análise muita coisa pode acontecer. Inclusive o contrário, nada. Porém, até o suposto ‘nada’ oferece muito conteúdo para o psicanalista; o silêncio é um material de análise. É claro que é muito mais difícil de ser desvelado, entretanto há que se considerar que para alguns analisandos, o silêncio pode ser um momento de elaboração. E o analista deve respeitar isso e “dar tempo ao tempo”.
Além do silêncio, gestos, olhares desviantes, postura recatada, sensualidade exacerbada, prolixidade, divagação; contar coisas que não fazem parte diretamente da vida do analisando ou sobre outras pessoas que não a si mesmo, trazer relatos de filmes ou séries que está assistindo no momento, em vez de falar sobre o que realmente incomoda; mentir, inventar situações, exagerar nos fatos etc. são mecanismos de defesa que a pessoa recorre, muitas vezes, inconscientemente, num intuito de burlar a sua sessão ou mesmo enganar o analista para não expor o seu ego fragilizado, seus afetos e neuroses, procurando evitar a experiência da dor, da angústia, da culpa, do remorso, da ansiedade, do medo, da vergonha.
É possível detectar alguns mecanismos de defesa que são mais evidentes em sessões de análise. Conheceremos alguns deles, citando exemplos, a saber: o mecanismo de negação é a recusa em admitir ou reconhecer de maneira consciente algo que está perturbando, então o ego fantasia que certos acontecimentos não ocorreram ou não são como se apresentam, de fato. Por exemplo, o paciente diz que fuma às vezes, porém não percebe que em sua fala durante a sessão, que ele tem um vício em cigarro.
O mecanismo de deslocamento também é bem recorrente, caracteriza-se pela transferência dos sentimentos e das frustrações para algo ou alguém menos ameaçador. Aqui a pulsão inicial é substituída por outra diferente e mais socialmente aceita. Por exemplo, é muito comum nutrir raiva por algo ou alguém e descontar (deslocar) em outra coisa. O analisando então relata que pratica lutas dizendo ser bom para saúde e para o condicionamento físico, quando ‘nas entrelinhas’ de sua fala estaria deslocando sua raiva em algo mais aceitável, no caso, o esporte. Outro exemplo é, num momento de fúria, arremessar um objeto contra a parece ou socar uma superfície, quando o alvo da agressão seria uma pessoa.
Outro mecanismo é a repressão. O analisando procura de todo jeito ‘tirar da consciência’ algum evento traumático ou afeto que o perturba, porém o conteúdo continua lá. Exemplo, esquecer de comparecer frequentemente às sessões de análise num intuito de ‘escapar’ da experiência de vivenciar e sentir seus próprios conflitos.
O mecanismo de defesa de projeção caracteriza-se na fala do sujeito quando este atribui tudo aquilo que o incomoda, que o afeta, que o perturba a outra pessoa ou objeto, lugar ou situação, de maneira que pareça que é outro elemento quem está vivenciando descontentamentos em seu lugar. Por exemplo, quando a pessoa traz inúmeros relatos dizendo que sua família a julga constantemente, chamando-a de incapaz, de incompetente, de fracassada, quando, na verdade, o analista, ao escutar atentamente as palavras do analisando, percebe que a família em momento algum dá indícios de tal fato. O sujeito que relata é que se sente incapaz e incompetente pelo julgamento que atribui a si mesmo. Então ele faz uma projeção, afirma que a família é que provoca tal situação de desconforto e não ele mesmo. Outra prática que nos serve de exemplo é quando uma mãe que sempre sonhou em ser uma excelente advogada, porém de alguma forma não conseguiu concretizar, projeta o seu desejo em sua filha. Então ela não mede esforços para que isto se torne realidade, faz investimentos, procura recursos, foca no desempenho e almeja resultados, até que sua filha finalmente alcance aquilo que pertence a ela.
Um outro mecanismo de defesa é a formação reativa. O analisando se apresenta ou se comporta de maneira desproporcional aos seus desejos. Exemplo, ele relata que é aversivo às práticas sexuais mais ousadas, porém, ao longo das sessões se descobre que ele nutre uma obsessão por pornografia.
No mecanismo de regressão, o ego recua fugindo de situações conflitivas atuais para um estágio anterior, podendo exprimir um comportamento infantil. Por exemplo, enquanto o sujeito relata algo extremamente traumático em sua vida, inconscientemente, vai se deitando no divã em posição fetal, fazendo uma regressão para a fase uterina, manifestando sua fragilidade na busca pelo primeiro lugar protegido e seguro que um dia desfrutou.
O mecanismo de racionalização pode se apresentar na fala e reações do analisando ao procurar meios e argumentos para justificar um comportamento que sente vergonha, remorso, arrependimento, não aceitação. A exemplo, explicar as razões e motivos, procurando enredos lógicos, para esclarecer o porquê traiu seu cônjuge.
No mecanismo de introjeção o sujeito incorpora para dentro de si normas, condutas e modos de agir e pensar que não são verdadeiramente seus. Numa tentativa de conquistar a aprovação do analista, por exemplo, ele passa a bajulá-lo, concorda com tudo o que ele fala para impressioná-lo, no intuito de que, se agir desta maneira, seu analista ‘facilitará sua vida’, tornando a sessão um momento para conversas, bate-papo, algo mais descontraído, resistindo ao máximo ao tratamento.
De modo geral, vemos que a pessoa que está em sessão, tomada por conflitos intrapsíquicos, faz uso de uma série de mecanismos de defesa com o objetivo de reduzir a tensão sentida e camuflar sentimentos que possam aflorar e causar sofrimento. No entanto, este momento é muito precioso para o trabalho de análise, pois é necessário que o sujeito experimente todas as sensações que o acometem, sejam boas ou ruins, e assim, muito deste conteúdo possa ser escoado e ressignificado.
O setting analítico é mesmo um grande desafio para o psicanalista, que, além de interpretar toda e qualquer manifestação do analisando, seja pelas palavras que profere, movimentos corporais, expressões faciais, tiques nervosos, poses, maneirismos, indiferenças, exageros, também precisa lidar com uma espécie de jogo teatral e malabarismos ensejados pelo seu cliente.
Há cada personagem! E o Oscar vai para…
Bruna Rosalem
Psicanalista Clínica
@psicanalistabrunarosalem
www.psicanaliseecotidiano.com.br
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Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.