novembro 22, 2024
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O ‘Poeta Maldito’, na obra de Carlos Reichenbach

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“O importante não é o que eu fiz, é aquilo que eu deixei de fazer, e aquilo que ainda está para ser feito”. Orlando Parolini em ‘Sangue Corsário’.



Uma figura exótica de olhar fixo, perdido e contemplativo, frequentemente agregava aos filmes de Carlos Reichenbach, emprestando uma aura profética e indiretamente ominosa aos densos e subjetivos enredos concebidos pelo saudoso cineasta gaúcho radicado em São Paulo. Constantemente interpretando personagens igualmente complexos e misteriosos, conhecemos o poeta, dramaturgo e ator Orlando Parolini, (1936 -1991), eminente representante da contracultura e desdobramentos da poesia Beatnik no Brasil.



Especialista em cinema japonês, crítico e ator visceral, recebeu a alcunha de o ‘Poeta Maldito’ e ‘O Profeta da Galeria Metrópole’, ao passo que distribuía panfletos de poesia profana aos transeuntes do viaduto do chá.


Um dos aspectos fascinantes dessa figura, repise-se, enigmática, é a escassez de dados biográficos mais substanciais, bem como a acessibilidade à sua obra com teor fortemente oral, pois não deixou publicações promovidas por grandes editoras, havendo concebido as coletâneas poéticas ‘Poemas’ (1957-1961), ‘Poemas do pequeno assassino’ (1963-1964), ‘O pântano (1964-1968)’, e ‘Cartas de Babilônia” (1968-1972). No campo teatral, escreveu duas peças, ‘Divirta-se’ e ‘O frango e a freira’, bem como o romance “Culus ridendus” (1986).



O finado cineasta Reichenbach é conhecido como um dos principais representantes do cinema marginal vertente da sétima arte nacional com alto desenho experimental e de viés autoral, com expoentes como Ozualdo Candeias João callegaro e José Mojica Marins.


Discípulo de Luiz Sérgio Person, de quem foi aluno na faculdade de cinema da São Luiz, ‘Carlão’, como era conhecido na Boca do Cinema paulistana, teve a percepção para escalar Parolini em papéis nos quais sua veia poética arraigada ao existencialismo, ainda que de feições concretas, poderia ser explorada em paralelo ao perfil dramático dos roteiros nos quais era inserido.



Atuou como o louco messiânico de ‘Império do Desejo’ (1981); o professor idealista de ‘Amor, palavra prostituta’ (1982); além de ter instigado e indiretamente guiado o peregrino Fausto (Ênio Gonçalves) na procura por seu refúgio em Miraceli, no aclamado ‘Filme Demência’ (1986).


Acerca do histórico criativo entre os dois realizadores, o estudioso de literatura comparada Fabiano Calixto, escreveu em texto publicado na Revista Cult: “Além de dirigir aquele que seria o primeiro filme underground no Brasil, o Via sacra (1965), cuja fotografia foi feita pelo grande cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012) que, sobre a película de Parolini, escreveu: “Misturava imagens de um Cristo esfarrapado perambulando pelas ruas do centro de São Paulo com cenas estarrecedoras de nudez frontal, sexo em grupo e canibalismo. Parolini antecedeu Pasolini em sua ascese feita de excessos”.

O filme, entretanto, não existe mais, pois, Parolini, num acesso de paranoia, em 1970, sob a ameaça de ter seu filme confiscado pela polícia federal e de ser preso, torturado, morto, sabe-se lá, picotou todo o negativo, fotograma por fotograma”,(https://revistacult.uol.com.br/home/noticias-de-outras-ilhas-fabiano-calixto/).



Robustecendo o ideário utópico libertário que permeia a obra de ‘Carlão’, e, em na forma de homenagem ao Profeta da Galeria Metrópole, existe o fascinante curta-metragem de 1979, ‘Sangue Corsário’.


No roteiro, os personagens de Parolini e Roberto Miranda, dois amigos separados pelo tempo e os rumos da vida, se encontram no centro de São Paulo, onde o bancário de vida segura e entregue à rotina, rememora de modo saudoso e admirado o pioneirismo cultural (e modus vivendi) do amigo, de olhos cerrados aos ditames sociais e às convenções.


Enquanto caminham por belas locações na Selva de Pedra, como a Praça Júlio Mesquita, Largo da Memória e Largo Paissandú, o diálogo, na verdade, quase um monólogo, representa o conflito e ruptura de gerações em meio ao cenário político e cultural dos anos sessenta e setenta, panorama da obra poética de Parolini.



Decerto, o próprio meio urbano catalisador de números sentimentos e tragédias, e que encapsula vidas e dramas (erros?), também serviu de matéria-prima às composições do autor, num reflexo entre ser, cidade, meio concreto e espaço sentimental.


Um ressuscitar e regurgitar do romantismo mórbido de Álvares de Azevedo transposto e ampliado ao elemento funéreo de Augusto dos Anjos, perpassando de forma sensível os pontos mais sombrios que habitam a mente do homem sensível.



O final de ‘Sangue Corsário’, pessimista, antevê e entrevê a aquiescência às normas protocolares de convivência que cerceiam sonhos, tendências e aspirações, conscientes ou não. Ainda em tom epilogal, uma mensagem se protrai, como se o diálogo instigasse o expectador ao questionamento: “Vale a pena ousar?”. A pergunta remanesce sem resposta.



ALGUNS POEMAS DE ORLANDO PAROLINI extraídos do volume Azougue 10 anos (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004). (http://revistamododeusar.blogspot.com/2010/10/serie-sonda-nas-jazidas-orlando.html)


Descrição da Praça da República para a amada que mora no interior

Orlando Parolini

os lagos de tão rasos

não permitem afogamentos:

se temos fomes

não há que nos alimente

– os peixes

vivem

(de excrementos)

os pombos não nos pertencem

roubá-los será inútil por enquanto

e que valem os pombos para a fome de uma geração inteira?

sedentos

a sede aplacaremos com Coca-Cola

no bar mais próximo

algumas pontes o contacto estabelecem

entre o vazio e o vazio

sugerindo paisagens que não vivemos

ao meio-dia

se debruçarmos sobre as ferragens

esperando a volta para os estábulos de ar condicionado

nos chamarão de pederastas

estátuas há

que olham para as árvores

contemplando as estátuas

no grande parque infantil

de arame rodeado

crianças são treinadas

como cães de apartamento

a beber nas horas certas

urinar nos w.c.

sem sujar o uniforme

na parte mais baixa se repararmos

sem muita preocupação

agências de turismo aveludadas

casas bancárias de velhas tradições

restaurantes e cafés

lojas de créditos

rodeiam o que mais se salienta no local:

o mictório público

moralmente dividido

para homens e senhoras

não importa a condição

A perdição

Orlando Parolini

porque estou arrependido

de cinzas cobrirei a cabeça

os pés lavarei com água benta carismal

com cacos de telha a epiderme rasparei

porque estou arrependido

a boca encherei de pedregulhos

as costas açoitarei

um cilício na cintura o sexo prenderá

os rins amortecendo

em cruz abertos braços jejuarei

7 dias 7 noites

comendo pão ázimo de judeus

gafanhotos mel

porque estou arrependido

conhecerei a Av. São João

da Cruz ou Evangelista não sei

e na primeira praça pública me despirei

em sinal de humilhação

porque estou arrependido

vomitarei nas portas das igrejas

nos umbrais dos cemitérios defecarei

que tudo é pó diz o Testamento

e se quiserem saber por que estou arrependido

não me perguntem.

– ah, perdida geração,

o último avião passou e nos esqueceram

na plataforma nos deitamos

esperando

esperando

esperando

Acesso ao curta-metragem ‘Sangue Corsário’, disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=eh857N3VU_8


Marcus Hemerly
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