“O importante não é o que eu fiz, é aquilo que eu deixei de fazer, e aquilo que ainda está para ser feito”. Orlando Parolini em ‘Sangue Corsário’.
Uma figura exótica de olhar fixo, perdido e contemplativo, frequentemente agregava aos filmes de Carlos Reichenbach, emprestando uma aura profética e indiretamente ominosa aos densos e subjetivos enredos concebidos pelo saudoso cineasta gaúcho radicado em São Paulo. Constantemente interpretando personagens igualmente complexos e misteriosos, conhecemos o poeta, dramaturgo e ator Orlando Parolini, (1936 -1991), eminente representante da contracultura e desdobramentos da poesia Beatnik no Brasil.
Especialista em cinema japonês, crítico e ator visceral, recebeu a alcunha de o ‘Poeta Maldito’ e ‘O Profeta da Galeria Metrópole’, ao passo que distribuía panfletos de poesia profana aos transeuntes do viaduto do chá.
Um dos aspectos fascinantes dessa figura, repise-se, enigmática, é a escassez de dados biográficos mais substanciais, bem como a acessibilidade à sua obra com teor fortemente oral, pois não deixou publicações promovidas por grandes editoras, havendo concebido as coletâneas poéticas ‘Poemas’ (1957-1961), ‘Poemas do pequeno assassino’ (1963-1964), ‘O pântano (1964-1968)’, e ‘Cartas de Babilônia” (1968-1972). No campo teatral, escreveu duas peças, ‘Divirta-se’ e ‘O frango e a freira’, bem como o romance “Culus ridendus” (1986).
O finado cineasta Reichenbach é conhecido como um dos principais representantes do cinema marginal vertente da sétima arte nacional com alto desenho experimental e de viés autoral, com expoentes como Ozualdo Candeias João callegaro e José Mojica Marins.
Discípulo de Luiz Sérgio Person, de quem foi aluno na faculdade de cinema da São Luiz, ‘Carlão’, como era conhecido na Boca do Cinema paulistana, teve a percepção para escalar Parolini em papéis nos quais sua veia poética arraigada ao existencialismo, ainda que de feições concretas, poderia ser explorada em paralelo ao perfil dramático dos roteiros nos quais era inserido.
Atuou como o louco messiânico de ‘Império do Desejo’ (1981); o professor idealista de ‘Amor, palavra prostituta’ (1982); além de ter instigado e indiretamente guiado o peregrino Fausto (Ênio Gonçalves) na procura por seu refúgio em Miraceli, no aclamado ‘Filme Demência’ (1986).
Acerca do histórico criativo entre os dois realizadores, o estudioso de literatura comparada Fabiano Calixto, escreveu em texto publicado na Revista Cult: “Além de dirigir aquele que seria o primeiro filme underground no Brasil, o Via sacra (1965), cuja fotografia foi feita pelo grande cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012) que, sobre a película de Parolini, escreveu: “Misturava imagens de um Cristo esfarrapado perambulando pelas ruas do centro de São Paulo com cenas estarrecedoras de nudez frontal, sexo em grupo e canibalismo. Parolini antecedeu Pasolini em sua ascese feita de excessos”.
O filme, entretanto, não existe mais, pois, Parolini, num acesso de paranoia, em 1970, sob a ameaça de ter seu filme confiscado pela polícia federal e de ser preso, torturado, morto, sabe-se lá, picotou todo o negativo, fotograma por fotograma”,(https://revistacult.uol.com.br/home/noticias-de-outras-ilhas-fabiano-calixto/).
Robustecendo o ideário utópico libertário que permeia a obra de ‘Carlão’, e, em na forma de homenagem ao Profeta da Galeria Metrópole, existe o fascinante curta-metragem de 1979, ‘Sangue Corsário’.
No roteiro, os personagens de Parolini e Roberto Miranda, dois amigos separados pelo tempo e os rumos da vida, se encontram no centro de São Paulo, onde o bancário de vida segura e entregue à rotina, rememora de modo saudoso e admirado o pioneirismo cultural (e modus vivendi) do amigo, de olhos cerrados aos ditames sociais e às convenções.
Enquanto caminham por belas locações na Selva de Pedra, como a Praça Júlio Mesquita, Largo da Memória e Largo Paissandú, o diálogo, na verdade, quase um monólogo, representa o conflito e ruptura de gerações em meio ao cenário político e cultural dos anos sessenta e setenta, panorama da obra poética de Parolini.
Decerto, o próprio meio urbano catalisador de números sentimentos e tragédias, e que encapsula vidas e dramas (erros?), também serviu de matéria-prima às composições do autor, num reflexo entre ser, cidade, meio concreto e espaço sentimental.
Um ressuscitar e regurgitar do romantismo mórbido de Álvares de Azevedo transposto e ampliado ao elemento funéreo de Augusto dos Anjos, perpassando de forma sensível os pontos mais sombrios que habitam a mente do homem sensível.
O final de ‘Sangue Corsário’, pessimista, antevê e entrevê a aquiescência às normas protocolares de convivência que cerceiam sonhos, tendências e aspirações, conscientes ou não. Ainda em tom epilogal, uma mensagem se protrai, como se o diálogo instigasse o expectador ao questionamento: “Vale a pena ousar?”. A pergunta remanesce sem resposta.
ALGUNS POEMAS DE ORLANDO PAROLINI extraídos do volume Azougue 10 anos (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004). (http://revistamododeusar.blogspot.com/2010/10/serie-sonda-nas-jazidas-orlando.html)
Descrição da Praça da República para a amada que mora no interior
Orlando Parolini
os lagos de tão rasos
não permitem afogamentos:
se temos fomes
não há que nos alimente
– os peixes
vivem
(de excrementos)
os pombos não nos pertencem
roubá-los será inútil por enquanto
e que valem os pombos para a fome de uma geração inteira?
sedentos
a sede aplacaremos com Coca-Cola
no bar mais próximo
algumas pontes o contacto estabelecem
entre o vazio e o vazio
sugerindo paisagens que não vivemos
ao meio-dia
se debruçarmos sobre as ferragens
esperando a volta para os estábulos de ar condicionado
nos chamarão de pederastas
estátuas há
que olham para as árvores
contemplando as estátuas
no grande parque infantil
de arame rodeado
crianças são treinadas
como cães de apartamento
a beber nas horas certas
urinar nos w.c.
sem sujar o uniforme
na parte mais baixa se repararmos
sem muita preocupação
agências de turismo aveludadas
casas bancárias de velhas tradições
restaurantes e cafés
lojas de créditos
rodeiam o que mais se salienta no local:
o mictório público
moralmente dividido
para homens e senhoras
não importa a condição
A perdição
Orlando Parolini
porque estou arrependido
de cinzas cobrirei a cabeça
os pés lavarei com água benta carismal
com cacos de telha a epiderme rasparei
porque estou arrependido
a boca encherei de pedregulhos
as costas açoitarei
um cilício na cintura o sexo prenderá
os rins amortecendo
em cruz abertos braços jejuarei
7 dias 7 noites
comendo pão ázimo de judeus
gafanhotos mel
porque estou arrependido
conhecerei a Av. São João
da Cruz ou Evangelista não sei
e na primeira praça pública me despirei
em sinal de humilhação
porque estou arrependido
vomitarei nas portas das igrejas
nos umbrais dos cemitérios defecarei
que tudo é pó diz o Testamento
e se quiserem saber por que estou arrependido
não me perguntem.
– ah, perdida geração,
o último avião passou e nos esqueceram
na plataforma nos deitamos
esperando
esperando
esperando
Acesso ao curta-metragem ‘Sangue Corsário’, disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=eh857N3VU_8
Marcus Hemerly
marcushemely@gmail.co
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Nasceu em Cachoeiro de Itapemirim/ES, em 1989. Formado em Direito, é servidor do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. Autor da obra “Verso e Prosa: Excertos de Acertos”, originalmente publicada em formato físico, coautor em antologias poéticas e de contos. Membro de Academias Literárias, recebeu prêmios e comendas, tais como: “Prêmio Monteiro Lobato”, “Prêmio Cidade de São Pedro da Aldeia de Literatura”, “Grande Prêmio Internacional de Literatura Machado de Assis”, “Medalha Patrono das Letras e das Ciências, Dom Pedro II”, “Medalha Notório Saber Cultura” e foi um dos vencedores do concurso internacional de poesias “Covid Times Poetry” promovido pela ONG “WHD – World Humanitarian Drive”. Foi agraciado com o Título de Doutor Honoris Causa em Literatura, pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Históricos e Filosóficos, com a Comenda Olavo Bilac Príncipe dos Poetas, pela Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes (FEBACLA), o título de Cavaleiro Comendador da Ordem de Gotland, pela Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente, dentre outras honrarias. É colunista de cinema e literatura, contribuindo para sites e jornais eletrônicos