setembro 16, 2024
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Artigo de Simone Valio: 'A lenda de Eva Leite' (uma homenagem ao mês do Folclore)

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Foto closeSimone Válio – Viva Eva! Eva Vive!

 

“É na carreira do a,

Ai lai, lai, lai

Vou falar pra quem me ouve

Que o folclore é coisa séria

Como no mundo não há…”

(Trecho de um Cururu paulista)

 

Já se tornou um clichê mais que surrado, mas o dito popular “Quem conta um ponto aumenta um ponto”, além de verdadeiro, é uma afirmação que expressa a essência do que muitos chamam de “folclore”, pois, embora muitas vezes seja “antiquado”, está permanentemente agregando elementos novos e mantendo-se, portanto, sempre vivo, mutante, moderno até. Aliás, o folclore é um fato, ou fenômeno, difícil de definir, como mostram as diversas, insuficientes e/ou polêmicas tentativas de conceituação que dele se fizeram.

Comemorado em agosto, mais especificamente no dia 22 − data em que foi publicada (mas há duzentos anos!) a carta na qual o britânico William John Thoms criou a palavra “folclore” (“folklore”: fusão das palavras inglesas “folk”, povo, e “lore”, sabedoria”), como nos informa Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti[ii] −, o “fato folclórico” recebeu, e recebe até hoje, as mais diversas definições. Na opinião de alguns, por exemplo, é tudo o que o homem do povo realiza e reproduz como tradição. Na de outros, engloba apenas uma pequena porção das tradições populares. Há também quem acredite que o âmbito do “folclore” é tão vasto quanto o da cultura. E ainda existem aqueles para quem, por essa mesma razão, o “folclore” não existe, sendo melhor denominar “cultura” ou “cultura popular” o que tantos chamam de “folclore”.

Como se não bastasse, para algumas pessoas essas palavras têm o mesmo significado e podem “conviver” com harmonia em um mesmo parágrafo… O nosso mais célebre folclorista, Luís da Câmara Cascudo, sabiamente preferiu fundir os conceitos de folclore e cultura popular. Para ele, folclore é “a cultura do popular tornada normativa pela tradição”. Por sua vez, um documento importante, a Carta de Folclore Brasileiro, de 1951, fruto do I Congresso Brasileiro do Folclore, estabeleceu claramente o que seria o fenômeno de que estamos falando: “Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação e conservação do patrimônio científico e artístico humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica”.

O curioso é que aqueles que produzem o que tantos chamam (ou não) de “folclore” ou “cultura popular” pouco usam a primeira palavra e mal conhecem a última expressão. Quando muito, preferem adaptar a seu uso o vocábulo “folclore”, visto quase como um elemento alienígena, conforme observou o estudioso do assunto Carlos Rodrigues Brandão[iii], cujo livro nos forneceu os principais elementos para esta breve apresentação acerca do fenômeno a que chamam “folclore”. Quanto a nós, preferimos o pensamento de Maria de Loudes Borges Ribeiro, que diz: “O povo, aceitando o fato, toma-o para si, considerando-o como seu, e o modifica e o transforma, dando origem a inúmeras variantes. Assim, uma estória é contada de várias maneiras, uma cantiga tem trechos diferentes na melodia, os acontecimentos são alterados e o próprio povo diz: ‘quem conta um conto, acrescenta um ponto’.”

Nossa intenção, neste breve texto, no entanto, não é dizer “o que é folclore”, mas acrescentar mais um “ponto” à “lenda” de Eva Leite (ou seja, preservar a essência do que se denomina “folclore”). Essa lenda, como tantas outras histórias ditas “folclóricas”, vem sendo passada de geração a geração por itapetininganos, alambarinhenses e habitantes vizinhos. Alguns “pontos” foram somados à legendária história por João Batista da Costa a Maria Nunes da Costa Menk e Luciane Camargo, autoras do livro Lendas de Itapetininga e Região: revivendo a riqueza da literatura oral do interior paulista.[iv]

Incluída no mencionado livro como uma lenda de Alambari (antigo distrito de Itapetininga), a história de Eva Leite, tal como é contada por Seu João Batista, provavelmente deve ter inúmeras versões, como todo fato folclórico − embora a personagem principal tenha realmente existido, conforme revela ninguém menos que… minha mãe, Dona Aparecida Silva Válio.

Assim principia Dona Cida, como é conhecida a angatubense que morou em Itapetininga desde meados da década de 1940 até 1991: “Eva Leite era muito uma moça muito bonita e serviçal, que gostava de ajudar sempre que podia, ajudando a cuidar de pessoas doentes ou rezando uma novena pelas falecidas”. Dona Cida conta que deveria ter uns quatro anos quando conheceu Eva, que nessa época morava em Angatuba e ia com certa frequência ao bar onde trabalhava minha saudosa avozinha, muito ocupada com a feitura de doces para venda…

Segundo Mamãe, Eva Leite tinha pele clara e cabelos negros (muito semelhante à ilustração que dela fez Magno de Almeida Cunha para o livro de Maria Nunes Menk e Luciane Camargo!). Possuía, além disso, um corpo muito bem feito, que o costume de usar roupas justas e de cor preta salientava.

Diz Dona Cida que as roupas de Eva pareciam mais antigas do que as trajadas na época (início dos anos 1940) e que a moça usava, no dedo do meio, um anel com uma enorme pedra transparente, aparentemente um cristal, que muito atraía o olhar da balbuciante mas atenta criança que era, então, Mamãe… Quantos “pontos”, portanto, acrescenta Dona Cida ao depoimento já rico de Seu João Batista! Este descreve Eva como uma moça “meiga” e de “beleza celestial”; Mamãe relata que, apesar de já ser naturalmente bonita, Eva era muito vaidosa e gostava de usar saltos altos (os quais acentuavam sua estatura já elevada), de passar batom vermelho nos lábios e de usar uma espécie de “rolo” de cabelos naturais ou artificiais, como uma tiara, sobre os cabelos pretos, levemente encaracolados e de comprimento médio.

As peculiaridades da moça que virou lenda não paravam aí, de acordo com o relato de Dona Cida. Eva gostava de celebrar seu aniversário e fazia questão de levar aos que não haviam comparecido à festa, uma bandeja com copinhos cheios de licor de folhas de figo (o qual, diga-se de passagem, Mamãe, embora criança, experimentou, aprovou e aprendeu a fazer tempos depois!).

Ainda moradora de Angatuba, Eva também tinha o costume de vestir-se, nas palavras de Dona Cida, de “bandeira do Brasil”, para participar das romarias que se dirigiam a Aparecida do Norte (SP), cidade onde hoje se localiza a basílica da santa de que era devota. Usava sobre a saia babados verdes, amarelos, azuis e brancos, feitos de papel crepom, que um dia se molharam devido a uma chuva e mancharam o restante da roupa da moça, assim como suas pernas e sapatos…

Eva acabou mudando-se de Angatuba e, depois disso, as informações que Mamãe teve da jovem chegaram-lhe por meio de outras pessoas. Mas, antes disso, revela Dona Cida que Eva namorou um médico chamado Ulisses – o único homem, portanto, a ocupar parte do coração que em Alambari a moça entregou totalmente ao moço com quem havia “de viver de um amor intenso”, conforme o relato de Seu João Batista.

O nome do felizardo que veio a conquistar o coração da curiosamente bela moça não chegou ao conhecimento de Dona Cida, o que é explicável, pois Eva havia se mudado para Alambari, e o contato tornara-se mais difícil. No entanto, disse minha avó a minha mãe que se tratava de um moço muito bonito… Seu João Batista fornece esse “ponto” importante: Eva “conheceu um jovem chamado Domingos Quendera, por quem se apaixonou”. Aqui lanço eu meu “ponto” devaneante: quão profético era o sobrenome do amor da vida de Eva: Quendera, “Quem dera”!… De fato, relata Seu João Batista:

“[…] O amor dos dois era de dar inveja a qualquer um.

Depois de alguns meses de namoro, ficaram noivos e logo marcaram a data do casamento. Ambas as famílias, tanto do lado da moça como do lado do moço, estavam empenhadas nos preparativos para a linda festa do enlace matrimonial do jovem casal.

A noiva estava radiante, mas a pobrezinha não imaginava o que iria acontecer no seu futuro…

Chegou o dia que ficou marcado na vida de Eva. Dia infeliz que o destino havia reservado para aquela noiva, uma desagradável surpresa. Estava chegando a data do casamento, era a véspera do grande dia, e logo veio a súbita notícia da morte de Domingos, o noivo, separando os dois apaixonados para sempre.”

Dona Cida conta que, segundo lhe chegou aos ouvidos, o namorado de Eva Leite adoeceu gravemente, ficou acamado durante muito tempo, até que… até que… certo dia um padre realizou o casamento de Eva e seu amado no leito de morte deste último. Eva estaria vestida de noiva, não se sabe se com o traje nupcial que usaria quando o moço se restabelecesse ou se com um vestido “provisório”, apropriado apenas para aquele enlace terreno transitório…

Mamãe e Seu João Batista são unânimes ao contar que Eva ficou arrasada com a morte de seu noivo e foi à casa dele buscar os pertences do moço. Seu João afirma que a viúva os pendurou na sala de sua casa, mas minha mãe conta que Eva os guardou, junto com um vestido de noiva, num baú ou numa mala. E que, daí em diante, a moça nunca mais se interessou por ninguém. Eva, apesar de precocemente viúva, fazia questão de dizer a todos que havia se casado com o noivo em seu leito de morte e que, portanto, era uma mulher casada… Seu João Batista tem sua versão desse fato:

“No sofrimento de seu coração, Eva chorou muito, durante muito tempo. A tragédia lhe causou uma profunda desilusão. Triste e desolada, Eva foi à casa do falecido, juntou seus pertences, levou para sua casa e deixou-os pendurados na sala.

O comportamento de Eva mudou muito depois da perda de seu amado. Quando alguém chegava à sua casa e perguntava:

− A senhora é casada?

Ela respondia:

− Sou.

E a pessoa acrescentava:

− E cadê seu marido?

Eva dizia:

− Está trabalhando.

Às vezes ela falava:

− Está viajando.”

Em seguida à reprodução desse diálogo, Seu João Batista relata que Eva ia todo ano a Iguape (SP), com os romeiros de Alambari. “O que os romeiros estranhavam”, acrescenta ele, “é que ela ia vestida de noiva, na cabina do caminhão que levava os religiosos”. Ele não menciona a informação, mas, pela progressão de seu relato, dá a entender que o curioso comportamento da jovem viúva começou a partir da morte de Domingos Quendera. Mamãe diz desconhecer o fato, mas acredita que bem pode ter sido verdadeiro; afinal, vestir-se com as cores da Bandeira Nacional, como dantes, deve ter passado a não mais refletir o estado de espírito daquela antiga e desditosa conhecida da família, que emagrecera, empalidecera e passara a usar óculos de aros escuros… Dona Cida afirma que realmente Eva sonhava casar-se vestida de branco, conforme a tradição, a qual exigia também, dada a moral rígida da época, que as noivas fossem virgens. A virgindade de Eva, a propósito, é um ponto comum a todas as versões da história infeliz da moça. Diz Mamãe que todos achavam que Eva era uma viúva “intocada” e que parecia ansiar pela noite de núpcias, a qual consumaria o amor e a felicidade do casal de noivos… A história de Eva contada por Seu João Batista, de acordo com as palavras com que foi registrada no livro de Menk e Camargo – sob o título de “A Viúva Virgem” −, além de proporcionar um detalhe desconhecido por minha mãe, parece confirmar o anseio de Eva:

“Outro momento estranho na vida de Eva acontecia todo ano na véspera do dia de finados. Ela pernoitava no cemitério junto ao túmulo do noivo e sempre com algum item que usaria no dia do seu casamento, como o vestido de noiva.”

A respeito da mudança de comportamento da “viúva virgem”, Mamãe afirma que pouco lhe chegou a seu conhecimento (tirante o uso dos óculos, a palidez e o emagrecimento da moça). Dona Cida já se mudara para Itapetininga e soube por outras pessoas da morte de Eva, a qual, segundo Seu João Batista, se deu muitos anos após a morte de Domingos Quendera. Assim reza a lenda, conforme a variante de Seu João:

“Eva viveu por muitos anos, mas nunca mais teve nenhum outro namorado. Vivia em sua humilde casa, que passou a ser chamada pelo povo do lugar de ‘Rancho do Sossego e Paz’. Ali ela rezava muito. Só saía de casa para fins religiosos e, quando morria alguém, ela ia à casa do falecido e rezava uma novena.

Passaram-se anos e Eva veio a falecer. Foi sepultada junto ao túmulo do noivo, sobre o qual construíram uma capelinha. Sobre o túmulo colocaram alguns pertences de Eva, sendo o principal seu lindo vestido de noiva.”

Dona Cida diz que, realmente, Eva foi enterrada junto a seu noivo e que na capelinha erguida sobre seu túmulo está exposto um vestido de noiva, o qual, entretanto, pode tanto ser o que a moça usou em seu casamento ao pé do leito de morte do amado, quanto um outro (a ser usado na eternidade, em seu encontro com o finado noivo?). Seja como for, de acordo com Mamãe, as pessoas diziam que Eva sempre expressava a vontade de ser sepultada vestida de noiva, para finalmente rever seu amado da maneira que ela queria, e que esse desejo lhe foi concedido.

Como inúmeras lendas folclóricas, o desfecho da história contada por Seu João Batista tem um toque fantástico, assustador mesmo, pelo menos para as pessoas que temem o “sobrenatural”. Arremata ele:

“Muitos moradores afirmam ver uma noiva perambulando pelo cemitério à noite. Contam ainda que Eva tornou-se um mito no município de Alambari, tanto é que seu túmulo é o mais visitado pela população daquele lugarejo.”

O pormenor fantasmagórico da lenda de Eva Leite também é mencionado por Dona Cida, embora ela não acrescente mais “pontos” a esse costumeiro desfecho das lendas de nosso folclore. Embora seja uma exímia contadora de “história de fantasmas”, Mamãe parece se lembrar de Eva mais como uma pessoa “festeira”, prestativa, bela e alegre – viva, como o folclore que a cerca…

 

***

Imaginamos que a lenda contada nas linhas anteriores deva ter intrigado e fascinado seus leitores. Mas não só isso. Quem leu a história de Eva Leite pode estar perguntando-se, conforme indagou o próprio estudioso de folclore Carlos Brandão já no início de seu livro sobre o assunto: “Por que as pessoas contam e recontam as histórias das avós e entre si” as repetem? A nosso ver, o comentário feito por um búlgaro que assistia a uma festa folclórica em Goiás, na qual Brandão e seu interlocutor estrangeiro estavam presentes, responde com surpreendente exatidão a essa pergunta: “As pessoas parece que estão se divertindo […] mas elas fazem isso para não esquecer quem são”. A precisão da resposta avulta ainda mais nestes tempos de memórias substituídas pelo Google; de despersonalização; de identidades substituídas por perfis em redes sociais; de fascínio pelas inovações tecnológicas e de desprezo pelas “coisas antigas” − evidente na demolição dos belos casarões antigos de Itapetininga e prédios históricos de outras cidades deste enorme Brasil, entre outras atitudes desconsoladoras. Por outro lado, a agudeza da resposta destaca-se também por aludir aos esforços dos poucos mas persistentes apreciadores da cultura passada ou atual, popular ou de elite; sejam eles eruditos ou não – como as autoras e o ilustrador do livro sobre o folclore de Itapetininga e região; os membros do IHGGI (Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga), do (MIS-I) Museu da Imagem e do Som de Itapetininga e de outros órgãos dedicados à preservação da história e da cultura locais e nacional. Todos esses bravos “nadadores” que bracejam contra a corrente da massificação e do esquecimento desempenham o que pode ser considerado o principal propósito do folclore: resistir ao esquecimento e à expropriação dos valores culturais pelos mais diversos poderes adversários do conhecimento e do povo; não permitir que esqueçamos quem somos, nem que para isso seja preciso incorporar ao chamado folclore elementos modernos e suprimir alguns dos antigos, mas de forma a manter-se sempre mutável ou, em uma palavra, VIVO!

 

Simone Válio

Itapetingana ‘da gema’, Simne Válio atualmente está morando na cidade de Assis/SP, mas numa esqueceu de sua terra natal (Helio Rubens, editor)

[i] Membro correspondente do IHGGI (Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga) em Assis (SP); mestre e doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

[ii] CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Entendendo o folclore e a cultura popular. Governo Federal; Ministério da Cultura; IPHAN: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. O portal afirma que seu objetivo é constituir-se em um espaço de comunicação, dinâmico e atualizado, prestando serviços para todos os interessados no campo do folclore e da cultura popular brasileira  Disponível em: <http://www.cnfcp.gov.br/pdf/entendendo_o_folclore_e_a_cultura_popular.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.

[iii] BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Princípios, 60). Os itálicos que aparecem nos trechos citados são nossos.

[iv] MENK, Maria Nunes da Costa; CAMARGO, Luciane. Lendas de Itapetininga e Região: revivendo a riqueza da literatura oral do interior paulista. Ilustração Magno Almeida Cunha. Itapetininga, SP: Gráfica Regional, 2014.

Helio Rubens
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